quarta-feira, 4 de setembro de 2019

Crítica: Bacurau (2019)


Considerado um dos nomes mais fortes do cinema brasileiro atual, não somente no país mas no mundo todo, o pernambucano Kléber Mendonça Filho (de O Som ao Redor e Aquarius) se juntou ao também pernambucano Juliano Dornelles para nos apresentar um dos filmes mais provocadores do ano, que finalmente chega aos nossos cinemas depois de rodar o mundo e colecionar prêmios por onde passou. Bacurau não é um filme de fácil absorção, muito pelo contrário, mas é uma obra instigante, daquelas que vão ficando melhor cada vez que você pára para analisá-la novamente. Um faroeste tipicamente tupiniquim, ainda que fuja de qualquer tipo de rotulação.


A primeira cena (um close em câmera lenta do globo terrestre) já indica onde estamos chegando para acompanhar a trama: sertão nordestino, mais precisamente em Bacurau, vilarejo fictício no interior de Pernambuco. Pouco a pouco, sem pressa e sem pretensão, e em meio ao velório de alguém que foi muito importante para a cidade, a direção vai nos colocando na vida e no cotidiano de seus habitantes, todos com características bastante fortes. Isso se arrasta por toda a primeira parte do filme, e serve para que o espectador se sinta parte desse amontoado de vidas e histórias.

A partir do meio do filme é que a "ação" começa de fato a acontecer, quando a vila passa a ter que enfrentar uma ameaça externa bastante peculiar. E é então que aparece, para mim, uma das grandes mensagens que os diretores quiseram passar, que é a importância do coletivo em tempos difíceis. Sozinha Bacurau não seria nada, cada um na sua individualidade não seria páreo para o que estava por acontecer, mas quando todos resolvem resistir juntos, a situação muda de lado.


O filme possui críticas políticas bem pontuais começando pela figura do prefeito, que não vive na cidade e só faz visitas esporádicas. A cena em que ele doa livros para a biblioteca da cidade é bastante marcante pelo fato do desleixo (derrubados de cima de um caminhão como se fossem lixo), uma crítica ao valor que nossos governantes dão para a nossa cultura. Outra cena pertinente é quando ele doa, junto com comida vencida, alguns medicamentos psicotrópicos, numa tentativa clara de sedar a população para que ela aceite fazer o que ele quiser. O pior ainda fica para o final, mas sobre isso não irei me alongar demais para que não haja spoilers, digo apenas que é revoltante e super atual.

Outra crítica oportuna do filme é a respeito da cisão que existe entre nordestinos e alguns sulistas, que pensam ser europeus e carregam consigo o velho "complexo de vira-latas" onde acham tudo que os estrangeiros fazem legal e tentam de alguma forma ser um deles. É um retrato fidedigno do "brasileiro classe média" do sul e sudeste do país, que muitas vezes subjuga o povo nordestino e não os trata como seus conterrâneos. Na realidade, americanos nos tratam e nos vêem como verdadeiros animais, sem distinções de região, e a analogia que o filme faz disso é brilhante.

A tecnologia também tem um papel interessante na trama. Sabemos, desde o início, que o filme se passa daqui alguns anos, e isso vai ficando mais evidente a cada cena. Um momento muito inteligente do enredo acontece quando um dos habitantes mais velhos da cidade está andando de bicicleta e é perseguido por um drone em formato de disco voador. Em qualquer outro filme filmado na região, ele provavelmente acharia se tratar de algo de outro mundo, ou mal assombrado, mas aqui não, aqui ele sabe se tratar de um drone porque não existe mais aquele estereótipo do sertão ignorante, no sentido mais puro da palavra.


Numa realidade em que morrem todo dia inocentes na política pública de combate ao crime no Rio de Janeiro, uma cena específica é bastante contundente. Um menino, morto com uma lanterna na mão, e seu algoz, declarando que o matou pois achava que ele era mais velho e estava armado. Esses "enganos" ocorrem todos os dias nas ruas, principalmente pelas mãos de quem deveria estar ali para proteger o cidadão. 

Em um dado momento do filme, aparece em um dos televisores uma manchete (a lá programa do Datena) mostrando o agendamento de mais uma execução pública coordenada pelo governo no centro de São Paulo. Parece absurdo hoje pensar que isso um dia poderia virar realidade, mas no momento em que escrevo essa crítica me deparo com uma notícia de um jovem negro despido, amordaçado e amarrado que foi chicoteado por seguranças dentro de um supermercado, também em São Paulo, acompanhada de muitos comentários de pessoas apoiando e dizendo que ele merecia mais. Não preciso dizer mais nada.


Por fim, Bacurau é uma obra aberta a inúmeras interpretações, e faz você sair da sala de cinema cheio de conflitos internos. Tem filmes que quanto mais a gente pensa sobre, menos a gente vai gostando, mas Bacurau é o oposto, quanto mais eu penso nele e destrincho suas diversas camadas, mais eu consigo captar sua grandeza. Uma pena que quem precisa entender a mensagem que ele passa, nunca irá entender de verdade. Em tempos de obscuridade, o cinema nacional tem um dos seus respiros mais profundos.

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