quinta-feira, 11 de abril de 2024

Crítica: O Reino Animal (2023)


Não é comum vermos filmes de gênero vindos da França, sobretudo uma ficção científica distópica como O Reino Animal (La Régne Animal), que surpreendentemente obteve um sucesso expressivo de público e crítica desde que foi lançado. Dirigido por Thomas Cailley, a produção franco-belga acabou sendo indicada em nada menos do que doze prêmios César, o Óscar do cinema francês, superando inclusive o badalado Anatomia de uma Queda. Este já é o primeiro ponto que chama a atenção, mas o que exatamente este filme tem de tão legal e diferente?


A trama começa com François (Romain Duris) e Émile (Paul Kircher), pai e filho, presos em um engarrafamento gigantesco. Do carro, eles avistam uma movimentação estranha em uma ambulância logo à frente, de onde logo sai uma espécie de "homem pássaro", um ser misto com asas que foge desesperado dos médicos. Apesar do pânico que a situação cria, os humanos parecem já estar acostumados com isso, sendo este o "novo normal". Pois sim, o mundo está vivendo uma espécie de pandemia, onde a doença não apenas deixa as pessoas doentes, mas faz com que elas sejam vítimas de mutações genéticas que as transformam em híbridos de outras espécies. Em outras palavras, o que vemos são humanos com asas, como o da cena inicial, mas também humanos com pelos, escamas, garras, e feições de animais silvestres.

Como esperado, o filme logo levanta a questão: como lidaríamos em uma situação dessas? Como as autoridades lidariam com isso? Primeiramente, o governo decide, por segurança, manter todos os doentes em hospitais isolados, longe dos centros urbanos, e é para um desses lugares que a esposa de François (Billie Blain) é levada após começar a sofrer mutações e virar uma espécie de "mulher-loba". Para ficar mais próximo dela, François e Émile se mudam momentaneamente para o sul da França, e paralelamente à história principal, passamos a acompanhar também a adaptação dos dois nesta nova região, tanto de François no trabalho como a de Émile na nova escola, e principalmente a relação de afeto que existe entre eles, onde o filme ganha contornos mais emotivos. Os problemas começam quando Émile passa a notar que também está em processo de mutação, ao mesmo tempo em que o caos se instaura na região após um acidente liberar dezenas de "criaturas".


O roteiro conduz muito bem a mistura de gêneros, com elementos de drama, de ficção científica e até mesmo de terror, mas o que eu mais gostei foi da escolha de utilizar efeitos práticos, e não CGI. Tenho certeza que um filme desses, feito em Hollywood, teria inúmeros efeitos computadorizados que deixariam tudo com um ar superficial, mas aqui tudo é tão orgânico que acaba sendo bastante verossímil, ainda que seja tudo "fantasioso". Acima de tudo, é um filme sobre como o ser humano lida de maneira hostil em situações adversas e com o "diferente", podendo servir de metáfora para muitas situações reais.

sexta-feira, 5 de abril de 2024

Crítica: O Caso Goldman (2024)


Filmes de tribunais que são compostos de apenas diálogos e uma única locação podem ser tanto empolgantes quanto entediantes, e esta linha tênue que separa a experiência do espectador varia muito de acordo com a maneira com que a direção apresenta a história na tela. Os franceses já provaram que sabem fazer filmes do gênero muito bem, e O Caso Goldman (Le Procès Goldman), dirigido por Cédric Kahn, é mais um exemplo satisfatório.


O filme acompanha um julgamento real ocorrido na Suprema Corte de Amiens na década de 1970. O réu na ocasião era Pierre Goldman (Arieh Worthalter), acusado de três assaltos à mão armada na cidade de Paris durante o ano de 1969. Ele confessa os crimes com exceção de um, onde duas mulheres acabaram mortas em um assalto a uma farmácia. Sentenciado à prisão perpétua pelo crime, agora ele ganha uma nova chance de revisão do caso diante da côrte, com um novo advogado (Arthur Harari).

Provocador, Goldman chegou a escrever livros durante sua estadia na cadeia, o que o fez ganhar um número expressivo de seguidores, sobretudo adeptos da esquerda. Seu passado como revolucionário, unido à forma como ele enfrenta seus acusadores e a polícia chamando-os de racistas e antissemitas (já que ele é oriundo de uma família judia da Polônia), é mais um ingrediente que inflama quem está do seu lado e transforma o julgamento num verdadeiro ato político. Segundo Goldman, tudo não passou de uma manipulação da própria polícia para achar um culpado do crime, e ele tenta o tempo todo mostrar isso com falas ácidas e eloquentes.


Ao longo de suas duas horas, o filme mostra todo o processo, desde a entrada dos jurados e a apresentação do caso até a sentença definitiva, passando por inúmeras testemunhas e pessoas do convívio de Goldman, como amigos da época e até mesmo seu pai, um imigrante que lutou pela resistência durante a Segunda Guerra Mundial. Diferente de outros filmes do gênero, não temos inserção de flashbacks ou cenas externas sobre o que ocorre fora das quatro paredes do tribunal, então acaba sendo um filme focado na eletrizante disputa de retóricas neste processo, e surpreendentemente prende do início ao fim apenas com isso. Ele serve até mesmo pequenas doses de humor, sobretudo pela intervenções de Goldman, um personagem deveras apaixonante e ao mesmo tempo extremamente controverso.

quinta-feira, 28 de março de 2024

Crítica: Que Nadie Duerma (2024)


Uma odisseia da vida real, sobre uma mulher que perde o emprego após muitos anos trabalhando no mesmo lugar e é obrigada a se reinventar em uma nova profissão e uma nova rotina de vida. É assim que eu começaria descrevendo Que Nadie Duerma, filme do espanhol Antonio Méndez Esparza, adaptado de um romance escrito por Juan Jose Millás, e que sagrou Malena Alterio com o prêmio de melhor atriz no Prêmio Goya deste ano.


O roteiro acompanha Lucía (Alterio), uma mulher que trabalha há anos na parte de tecnologia da informação em uma grande empresa odontológica de Madrid. Após serem descobertas fraudes e rombos milionários nas contas da empresa, a polícia fecha o local para as investigações e os donos desaparecem. Assim como outras dezenas de funcionários, Lucía fica sem rumo, sem emprego e sem dinheiro, já que além de tudo a empresa estava com salários atrasados, e ela decide então se aventurar como motorista de táxi enquanto espera a prometida quantia de indenização prometida pelo advogado do caso.

Lucía nunca trabalhou como taxista, mas enfrenta com a cara e a coragem a nova missão que a vida lhe impõe. Imediatamente podemos montar um paralelo com as milhares de pessoas que viram motoristas de aplicativos nos dias de hoje como alternativa de renda, sobretudo em momentos de dificuldade. Por incrível que pareça, mesmo sendo um emprego digno e honesto, há muita gente que ainda tem preconceito com isso, o que é inacreditável. Durante o novo trabalho, Lucía passa a ouvir muitas histórias e enfrenta situações das mais diversas possíveis. No meio desta rotina acelerada, ela também redescobre o amor ao se apaixonar por seu vizinho, o ator Bráulio Brotas (Rodrigo Poisón).


O filme toma um rumo muito inusitado e surpreendente do meio para o final, na medida em que Lucía vai descobrindo algumas traições de pessoas em que ela confiava, desde uma amiga de muitos anos, até seu próprio affair. O final é, talvez, o mais inesperado e maluco que vi no ano, mas não darei mais detalhes para não soltar spoilers. O fato é que o diretor consegue apresentar questões morais e sociais de uma maneira muito envolvente e até mesmo engraçada, num universo que explora o realismo mas não deixa de apresentar situações completamente imprevisíveis e excêntricas. E é preciso dizer que apesar de ter seus méritos, o filme não seria o mesmo sem a atriz Malena Alterio, que dá vida a esta personagem tão ambígua de maneira brilhante.

segunda-feira, 25 de março de 2024

Crítica: The First Slam Dunk (2023)


Dirigido por Takehiko Inoue, The First Slam Dunk é a sequência final do famoso mangá Slam Dunk, escrito e ilustrado pelo próprio diretor do filme. Não vou mentir para vocês que conhecia a história de antemão, porque na verdade eu cheguei ao filme totalmente por acaso e sem saber absolutamente nada a respeito. Porém, apesar de não ter nenhuma referência básica do anime original, o filme funcionou muito bem comigo de uma maneira individual, apenas pelo ótimo material que apresenta nas suas intensas duas horas.


O enredo começa com dois irmãos treinando basquete na quadra de um parque da cidade onde moram. O mais velho é Sota, um jogador promissor de basquete, que acaba morrendo em um acidente de barco logo após esta cena inicial. O menor, Ryota, sonha seguir os passos do irmão no esporte, e se esforça para conseguir alcançar espaço no time titular da escola Shohoku. Apesar de parecer simples, este arco entre os irmãos tem uma carga dramática muito potente e importante, que ditará todo o restante do longa.

Todo o filme se passa durante uma partida de basquete decisiva entre o time de Shokohu, do qual agora Ryota já crescido faz parte, e a escola rival, a Sannoh, e durante todo o tempo em que passa na quadra de basquete, o filme é inteiramente frenético, mostrando a recuperação heroica de um time que chegou a estar perdendo por mais de 20 pontos de diferença. Enquanto isso, vários flashbacks vão sendo lançados nos intervalos entre uma jogada e outra, e servem não somente para desacelerar um pouco o ritmo, como também para adentrar mais a fundo na vida de alguns dos principais atletas da Shokohu, incluindo o próprio Ryota, mostrando principalmente a forma como ele lidou com o luto junto com sua mãe. São muitas camadas apresentadas nestes breves momentos, e todas muito bem trabalhadas.


 

O estilo da animação, que mescla 2D com 3D, é de fato o que mais me impressionou. Fiquei realmente impressionado com o realismo de algumas cenas, com bastante foco nas expressões e nos gestos minimalistas dos personagens. The First Slam Dunk é acima de tudo um filme sobre superar barreiras, na vida e no esporte, mas foge de clichês e traz uma abordagem muito original ao tema. Um filme que vai agradar tanto quem já acompanhava o mangá, como quem, assim como eu, caiu de para-quedas.


quinta-feira, 21 de março de 2024

Crítica: Atiraram no Pianista (2023)


Dirigido pelo espanhol Fernando Trueba, em uma nova parceria com Javier Mariacal (eles já haviam trabalhado juntos no premiado Chico & Rita), Atiraram no Pianista (The Shot the Piano Player) é um "docudrama" em formato de animação que conta um pouco da história da música popular brasileira, com foco na Bossa Nova, usando como pano de fundo a investigação pessoal de um escritor norte-americano à cerca do sumiço de Francisco Tenório Jr., um dos maiores pianistas da nossa história, e que tocava na banda de Vinicius de Moraes.


Na trama, Jeff Harris (voz de Jeff Goldblum) é um jornalista de Nova Iorque que está escrevendo um livro sobre a Bossa Nova e seus nomes mais conhecidos, quando se depara com um solo de piano gravado nos anos 1970 que o deixa maravilhado. Ao pesquisar sobre o criador da obra, ele fica intrigado com a sua história e com o fato dele não ter lançado mais nada desde então. Após chegar no Rio de Janeiro para uma série de entrevistas, ele descobre que o pianista em questão era Tenório Jr., e que ele sumiu durante uma breve turnê que fez na Argentina em 1976, ano que o país vizinho estava afundado no pior momento de sua ditadura militar.

Para tentar descobrir mais sobre o que aconteceu com Tenório, Jeff passa a entrevistar muitos amigos e conhecidos do pianista, além de familiares que ainda estão vivos. Sua investigação ganha tantos novos contornos, que ele muda até mesmo o foco do livro que estava escrevendo, e passa a escrever apenas sobre este caso específico que o deixou obcecado. Oficialmente, o corpo de Tenório jamais foi encontrado, assim como milhares de outros mortos naquele período sombrio. Mas o porquê de um brasileiro ter sido morto em Buenos Aires é que é a grande questão que Jeff tenta desvendar. Tenório teria desaparecido após sair do hotel à noite para buscar um remédio para sua namorada da época, e a teoria mais viável é a de que ele teria furado um toque de recolher do exército que ele não sabia que existia.

Durante suas quase duas horas de duração, o filme nos traz uma série de representações de artistas consagrados da nossa música, o que o torna apaixonante a cada nova aparição. Vemos Vinicius de Moraes, Tom Jobim, João Gilberto, Elis Regina, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Chico Buarque, entre outros, todos recriados por animação de maneira primorosa. Um trabalho incrível, com uma gama de detalhes impressionantes, tanto nos personagens como nos cenários, o que torna o filme visualmente fascinante. Para quem mora no Rio de Janeiro, creio que a reconstituição da cidade seja ainda mais impressionante, e alguns pontos famosos do jazz e do samba ganham vida de forma abundante, como o famoso "Beco das Garrafas", que reunia centenas de músicos e entusiastas na era de ouro de ambos os ritmos.


Mais do que uma carta de amor à música brasileira e a todo o movimento artístico da época, ou ainda sobre a figura do próprio Tenório Jr., Atiraram no Pianista não deixa de ser um filme denúncia, que mostra não somente a violência das ditaduras militares em toda a América Latina, como também todo o apoio que elas tiveram dos Estados Unidos. Trueba não deixa de lembrar este fato, colocando o dedo na ferida e deixando claro que a memória disto jamais deve ser apagada. Um filme magnífico, não somente na parte visual, como também na própria história que aborda.