quinta-feira, 28 de março de 2024

Crítica: Que Nadie Duerma (2024)


Uma odisseia da vida real, sobre uma mulher que perde o emprego após muitos anos trabalhando no mesmo lugar e é obrigada a se reinventar em uma nova profissão e uma nova rotina de vida. É assim que eu começaria descrevendo Que Nadie Duerma, filme do espanhol Antonio Méndez Esparza, adaptado de um romance escrito por Juan Jose Millás, e que sagrou Malena Alterio com o prêmio de melhor atriz no Prêmio Goya deste ano.


O roteiro acompanha Lucía (Alterio), uma mulher que trabalha há anos na parte de tecnologia da informação em uma grande empresa odontológica de Madrid. Após serem descobertas fraudes e rombos milionários nas contas da empresa, a polícia fecha o local para as investigações e os donos desaparecem. Assim como outras dezenas de funcionários, Lucía fica sem rumo, sem emprego e sem dinheiro, já que além de tudo a empresa estava com salários atrasados, e ela decide então se aventurar como motorista de táxi enquanto espera a prometida quantia de indenização prometida pelo advogado do caso.

Lucía nunca trabalhou como taxista, mas enfrenta com a cara e a coragem a nova missão que a vida lhe impõe. Imediatamente podemos montar um paralelo com as milhares de pessoas que viram motoristas de aplicativos nos dias de hoje como alternativa de renda, sobretudo em momentos de dificuldade. Por incrível que pareça, mesmo sendo um emprego digno e honesto, há muita gente que ainda tem preconceito com isso, o que é inacreditável. Durante o novo trabalho, Lucía passa a ouvir muitas histórias e enfrenta situações das mais diversas possíveis. No meio desta rotina acelerada, ela também redescobre o amor ao se apaixonar por seu vizinho, o ator Bráulio Brotas (Rodrigo Poisón).


O filme toma um rumo muito inusitado e surpreendente do meio para o final, na medida em que Lucía vai descobrindo algumas traições de pessoas em que ela confiava, desde uma amiga de muitos anos, até seu próprio affair. O final é, talvez, o mais inesperado e maluco que vi no ano, mas não darei mais detalhes para não soltar spoilers. O fato é que o diretor consegue apresentar questões morais e sociais de uma maneira muito envolvente e até mesmo engraçada, num universo que explora o realismo mas não deixa de apresentar situações completamente imprevisíveis e excêntricas. E é preciso dizer que apesar de ter seus méritos, o filme não seria o mesmo sem a atriz Malena Alterio, que dá vida a esta personagem tão ambígua de maneira brilhante.

segunda-feira, 25 de março de 2024

Crítica: The First Slam Dunk (2023)


Dirigido por Takehiko Inoue, The First Slam Dunk é a sequência final do famoso mangá Slam Dunk, escrito e ilustrado pelo próprio diretor do filme. Não vou mentir para vocês que conhecia a história de antemão, porque na verdade eu cheguei ao filme totalmente por acaso e sem saber absolutamente nada a respeito. Porém, apesar de não ter nenhuma referência básica do anime original, o filme funcionou muito bem comigo de uma maneira individual, apenas pelo ótimo material que apresenta nas suas intensas duas horas.


O enredo começa com dois irmãos treinando basquete na quadra de um parque da cidade onde moram. O mais velho é Sota, um jogador promissor de basquete, que acaba morrendo em um acidente de barco logo após esta cena inicial. O menor, Ryota, sonha seguir os passos do irmão no esporte, e se esforça para conseguir alcançar espaço no time titular da escola Shohoku. Apesar de parecer simples, este arco entre os irmãos tem uma carga dramática muito potente e importante, que ditará todo o restante do longa.

Todo o filme se passa durante uma partida de basquete decisiva entre o time de Shokohu, do qual agora Ryota já crescido faz parte, e a escola rival, a Sannoh, e durante todo o tempo em que passa na quadra de basquete, o filme é inteiramente frenético, mostrando a recuperação heroica de um time que chegou a estar perdendo por mais de 20 pontos de diferença. Enquanto isso, vários flashbacks vão sendo lançados nos intervalos entre uma jogada e outra, e servem não somente para desacelerar um pouco o ritmo, como também para adentrar mais a fundo na vida de alguns dos principais atletas da Shokohu, incluindo o próprio Ryota, mostrando principalmente a forma como ele lidou com o luto junto com sua mãe. São muitas camadas apresentadas nestes breves momentos, e todas muito bem trabalhadas.


 

O estilo da animação, que mescla 2D com 3D, é de fato o que mais me impressionou. Fiquei realmente impressionado com o realismo de algumas cenas, com bastante foco nas expressões e nos gestos minimalistas dos personagens. The First Slam Dunk é acima de tudo um filme sobre superar barreiras, na vida e no esporte, mas foge de clichês e traz uma abordagem muito original ao tema. Um filme que vai agradar tanto quem já acompanhava o mangá, como quem, assim como eu, caiu de para-quedas.


quinta-feira, 21 de março de 2024

Crítica: Atiraram no Pianista (2023)


Dirigido pelo espanhol Fernando Trueba, em uma nova parceria com Javier Mariacal (eles já haviam trabalhado juntos no premiado Chico & Rita), Atiraram no Pianista (The Shot the Piano Player) é um "docudrama" em formato de animação que conta um pouco da história da música popular brasileira, com foco na Bossa Nova, usando como pano de fundo a investigação pessoal de um escritor norte-americano à cerca do sumiço de Francisco Tenório Jr., um dos maiores pianistas da nossa história, e que tocava na banda de Vinicius de Moraes.


Na trama, Jeff Harris (voz de Jeff Goldblum) é um jornalista de Nova Iorque que está escrevendo um livro sobre a Bossa Nova e seus nomes mais conhecidos, quando se depara com um solo de piano gravado nos anos 1970 que o deixa maravilhado. Ao pesquisar sobre o criador da obra, ele fica intrigado com a sua história e com o fato dele não ter lançado mais nada desde então. Após chegar no Rio de Janeiro para uma série de entrevistas, ele descobre que o pianista em questão era Tenório Jr., e que ele sumiu durante uma breve turnê que fez na Argentina em 1976, ano que o país vizinho estava afundado no pior momento de sua ditadura militar.

Para tentar descobrir mais sobre o que aconteceu com Tenório, Jeff passa a entrevistar muitos amigos e conhecidos do pianista, além de familiares que ainda estão vivos. Sua investigação ganha tantos novos contornos, que ele muda até mesmo o foco do livro que estava escrevendo, e passa a escrever apenas sobre este caso específico que o deixou obcecado. Oficialmente, o corpo de Tenório jamais foi encontrado, assim como milhares de outros mortos naquele período sombrio. Mas o porquê de um brasileiro ter sido morto em Buenos Aires é que é a grande questão que Jeff tenta desvendar. Tenório teria desaparecido após sair do hotel à noite para buscar um remédio para sua namorada da época, e a teoria mais viável é a de que ele teria furado um toque de recolher do exército que ele não sabia que existia.

Durante suas quase duas horas de duração, o filme nos traz uma série de representações de artistas consagrados da nossa música, o que o torna apaixonante a cada nova aparição. Vemos Vinicius de Moraes, Tom Jobim, João Gilberto, Elis Regina, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Chico Buarque, entre outros, todos recriados por animação de maneira primorosa. Um trabalho incrível, com uma gama de detalhes impressionantes, tanto nos personagens como nos cenários, o que torna o filme visualmente fascinante. Para quem mora no Rio de Janeiro, creio que a reconstituição da cidade seja ainda mais impressionante, e alguns pontos famosos do jazz e do samba ganham vida de forma abundante, como o famoso "Beco das Garrafas", que reunia centenas de músicos e entusiastas na era de ouro de ambos os ritmos.


Mais do que uma carta de amor à música brasileira e a todo o movimento artístico da época, ou ainda sobre a figura do próprio Tenório Jr., Atiraram no Pianista não deixa de ser um filme denúncia, que mostra não somente a violência das ditaduras militares em toda a América Latina, como também todo o apoio que elas tiveram dos Estados Unidos. Trueba não deixa de lembrar este fato, colocando o dedo na ferida e deixando claro que a memória disto jamais deve ser apagada. Um filme magnífico, não somente na parte visual, como também na própria história que aborda.

quarta-feira, 20 de março de 2024

Crítica: Bob Marley: One Love (2024)


As cinebiografias de músicos famosos viraram a "galinha dos ovos de ouro" de Hollywood há algum tempo. A quantidade de filmes do gênero lançados nestes últimos anos é impressionante, e existe o lado bom e o lado ruim desta "febre". O bom é que sim, é possível conhecer mais da vida de alguns artistas que crescemos ouvindo e admirando através de um filme, o ruim é justamente o fato de que estas obras acabaram caindo em um lugar comum e tornando-se extremamente repetitivas. Sem contar que por já saber de antemão que o filme terá seu público cativo, a qualidade da produção muitas vezes não é tão levada a sério. É o caso de Bob Marley: One Love, um filme que tem toda a boa vontade do mundo por trás, mas que infelizmente acaba sendo bastante superficial na hora de pôr suas ideias em prática.


O filme, dirigido por Reinaldo Marcus Green (de King Richard), pega um recorte na vida do cantor jamaicano, interpretado por Kingsley Ben-Adir, entre os anos de 1976 e 1978, época em que a Jamaica estava afundada em uma grave crise política e em uma violenta guerra civil. Bob é mostrado no filme como uma figura que buscava a paz por meio de sua música, e para isso planejava fazer um grande concerto com a intenção de unir os dois lados e propagar o fim dos conflitos internos. O início do filme até consegue nos contextualizar sobre este caos político e social, principalmente com o uso de legendas explicativas, mas não demora para perder o fio da meada graças a uma condução horrorosa. Pois sim, a montagem é o ponto mais defeituoso da obra.

O roteiro não consegue desenvolver direito nenhum dos temas propostos, já que as cenas são atropeladas e desconexas entre si, numa ordem cronológica confusa e nada atrativa. Há, por exemplo, um exagero de cenas do cantor se apresentando em shows, o que deixa claro que o filme não passa de um "fan service", sem ter intenção de realmente adentrar na mente criativa e militante do artista. O ativismo de Bob Marley, as suas ideias de paz, e até mesmo a sua religiosidade Rastafari, acabam sendo tratadas de forma abstrata. O diretor também opta por encher o filme de flashbacks, e todos com o uso de um filtro amarelado tenebroso. Isso deixa a história ainda mais repetitiva e cansativa.


A verdade é que falta muita profundidade, tanto na figura do cantor em si, como nas pessoas que fizeram parte de sua história. Os coadjuvantes tem pouco ou nenhum espaço de desenvolvimento, e quando ganham algum tempo de tela, como acontece com a mulher de Bob, Rita (Lashana Lynch), é para trazer um conflito entre eles que surge do nada sem uma devida explicação. Kingsley Ben-Adir é esforçado, mas não consegue passar a energia que o músico tinha na vida e no palco, sendo uma atuação bem amorfa, e isso fica ainda mais evidente quando imagens reais do cantor aparecem nos créditos finais. Como disse no início, é um filme que tem muita boa vontade por trás, e isso é inegável, mas fica muito abaixo do que um músico com a grandeza e importância do Bob Marley merecia.

domingo, 17 de março de 2024

Crítica: Green Border (2023)


O tema da migração de refugiados tem sido de grande preocupação nos últimos anos, sobretudo no continente europeu, e muitos diretores estão usando o cinema para trazer à tona a dor e sobretudo a perseverança destas pessoas que deixam todas as suas coisas para trás, o seu país para trás, e enfrentam milhares de quilômetros atravessando lugares desconhecidos, correndo riscos de vida e sem saber o dia de amanhã. Novo filme da diretora polonesa Agnieszka Holland, Green Border mostra esta dura realidade focando em fatos reais que aconteceram e ainda acontecem especificamente na fronteira entre a Polônia e a Bielorrúsia, uma região que vive em constante tensão.


Todos os meses, são registradas milhares de tentativas de atravessar a fronteira entre os dois países, e o governo polonês acusa o governo bielo-russo de orquestrar o tráfico ilegal destes refugiados como forma de retaliação às sanções impostas ao país após graves violações dos direitos humanos. Segundo os poloneses, os bielo-russos estariam atraindo os imigrantes de países do oriente médio e do norte da África sob o discurso de que a fronteira da Polônia é a mais fácil de ser atravessada, e tudo isso para criar um conflito diplomático ainda maior do que o que já existe entre as duas nações. Mais do que isso, acusam também o governo russo de estar apoiando estas ações, financeiramente e militarmente. E no meio de toda esta confusão, quem mais sofre são justamente os refugiados, que acabam acreditando que estão sendo ajudados, quando na verdade estão sendo apenas massa de manobra.

O filme se divide em capítulos, e o primeiro deles começa apresentando uma família síria que está indo em direção a Suécia, onde um familiar deles os espera. Após a chegada no aeroporto de Minsk, capital da Bielorrússia, eles são levados até a fronteira dentro de uma van, onde são ainda mais extorquidos pelos guardas. Logo após a travessia para o lado polonês, eles são abandonados, e na tentativa de sobreviver acabam sendo capturados pela guarda de fronteira, que imediatamente tentam deportá-los de volta. É aí que começa o jogo de "pingue-pongue", onde essas pessoas são jogadas de um lado para o outro, sempre de forma violenta e sem nenhum tipo de perspectiva.

Os demais capítulos mostram os outros lados desta complexa teia de acontecimentos. No segundo, por exemplo, acompanhamos o guarda de fronteira Janek, que está se preparando para ser pai. Neste capítulo também tomamos ciência da opinião geral da sociedade polonesa em relação aos refugiados, que em sua grande maioria rechaça de maneira preconceituosa a ajuda humanitária dada a eles. Em outro capítulo, acompanhamos um grupo de ativistas que luta para ajudar estes refugiados, mas que mesmo com toda boa vontade do mundo, não podem ultrapassar as leis que regulamentam a situação.


Extremamente angustiante, Green Border é um filme que acima de tudo denuncia a forma como o governo polonês está tratando os casos, em paralelo à aproximação com grupos de extrema direita e neonazistas. Mais do que isso, mostra a hipocrisia de um governo que lida de um jeito rigoroso e até mesmo desumano com refugiados dos países subdesenvolvidos, mas que acolheu milhares de ucranianos após a invasão russa. "Meu pecado é ter nascido com o pior passaporte possível", diz um dos personagens, e serve como um grande tapa na cara desta ajuda humanitária seletiva.

sexta-feira, 15 de março de 2024

Crítica: 20.000 Espécies de Abelhas (2023)


Dirigido por Estibaliz Urresola Solaguren, 20.000 Espécies de Abelhas é um filme muito terno e sensível sobre a construção da identidade de uma criança que começa a perceber que não se encaixa no corpo que veio ao mundo. Após muitos elogios recebidos em festivais mundo à fora, o filme se sagrou com o prêmio de melhor roteiro no Goya (o Oscar espanhol), o que só engrandeceu ainda mais a estreia desta diretora que se mostra extremamente promissora.


Na trama, Ane (Patricia López Arnaiz) é mãe de três crianças, e entre elas está Aitor (Sofía Otero), um menino de oito anos. Ele não gosta de ser chamado pelo nome, mas mais do que isso, não consegue se identificar com o gênero com que fisiologicamente nasceu. Durante umas férias passadas na casa da família em uma zona rural, Aitor começa a se questionar de maneira mais contundente sobre a sua identidade de gênero, mas o processo é amargo, já que ninguém sabe lidar muito bem com isso. A avó de Aitor, Lita (Itziar Lazkano), que trabalha como apicultura, é quem acaba encarando a situação de maneira muito sensível, inclusive nos diálogos com a própria filha, que parece de certa maneira querer fugir da responsabilidade de aceitar o que o filho, ou filha, é.

A direção de fotografia faz um belo trabalho ao recriar a zona rural, que acaba tendo um papel importante no amadurecimento desta criança. E por falar nela, que grande atuação da menina Sofía Otero, cujos olhares e expressões conseguem captar perfeitamente todo o sentimento conflituoso pelo qual sua pequena personagem está passando. Ao perguntar de forma honesta para o irmão mais velho quando foi que ele descobriu quem ele era de verdade, vemos o quanto ela está em busca de descobrir a si mesma e principalmente o que está acontecendo, mesmo que ainda não compreenda direito o que é.


Mais do que o amadurecimento das crianças, o filme também fala sobre a relação que há entre as diferentes gerações, neta, mãe e avó, e os laços que existem e que deixaram de existir com o tempo entre elas. Um roteiro muito complexo, bem escrito, e que mesmo com um ritmo lento consegue envolver bastante quem assiste.

quinta-feira, 14 de março de 2024

Crítica: Ervas Secas (2023)


Quem já conhece o cinema do turco Nuri Bilge Ceylan, sabe que ele tem características muito próprias em seus trabalhos, das quais ele não abre mão. O primeiro ponto é a duração dos seus filmes, que sempre batem na média de três horas para cima, e isso se dá pela intensidade que ele coloca em longas e estáticas cenas de diálogos. Ele não tem pressa em contar a história e muito menos em dissecar cada nuance de seus personagens, e por isso mesmo acaba sendo uma filmografia bastante divisiva.


Escolhido para representar a Turquia no Oscar de melhor filme internacional em 2024, Ervas Secas (Kuru Otlar Ustune), levemente baseado em um conto de Tchekhov, já é para mim o melhor trabalho do diretor. O filme se passa em um vilarejo na região da Anatólia, para onde Samet (Deniz Celiloglu) acaba de voltar após as férias escolares. Ele é professor de arte do ensino fundamental na escola local, mas apesar de aparentar estar contente com o retorno para casa, logo percebemos que ele na verdade não aguenta mais viver neste lugar. Seu desejo é ser chamado para trabalhar em Istambul, onde literalmente tudo acontece, pois segundo ele mesmo, quem vive no vilarejo não tem nenhuma oportunidade de crescimento e está fadado a viver o resto da vida trabalhando no campo. Ele inclusive fala isso para seus alunos, com quem ele não tem praticamente nenhum tipo de afeto, com exceção de uma garota, Sevim (Ece Bagci).

Sem mostrar de fato a verdade, o diretor nos induz a acreditar que a menina nutre uma espécie de paixão por seu professor, enquanto ele parece se sentir confortável com isso. Como disse, não temos uma resposta definitiva sobre, mas é possível perceber através de pequenos gestos e algumas situações específicas, como a carta de amor que ela escreveu e que foi recolhida pela direção, mas cujo destinatário fica para a nossa imaginação. Talvez como retaliação por não ser "correspondida", Sevim é uma das meninas que acaba acusando Samet e seu colega professor Kenan (Musab Ekici) de assediarem meninas no ambiente escolar. Este dilema moral é o estopim de uma série de conversas entre os dois professores e a direção da instituição, que se mostra preocupada com o caso mas ao mesmo tempo tenta abafar.


Na história ainda temos uma terceira e importante personagem, Nuray, interpretada por Merve Dizdar, que inclusive ganhou o prêmio de melhor atriz no Festival de Cannes por esta sua atuação. A professora de inglês da escola estabelece um vínculo muito forte com os outros dois professores, e é responsável pelas principais discussões sociais e políticas que tomam conta do filme na segunda metade. Militante e antenada com os avanços sociais no mundo, ela parece deslocada nesta região que ainda vive com base em preceitos ultrapassados, e é uma das poucas a enxergar o mundo para além destas paisagens nevadas. Por falar nas paisagens, a neve é um elemento crucial na construção desta fábula fria e de certa maneira melancólica sobre a sociedade turca atual e seu modo de vida. Assim como em seus filmes anteriores, Nuri aproveita muito bem a interação dos personagens com elementos da natureza, e isso unido a uma fotografia belíssima cria um filme visualmente pujante.

domingo, 10 de março de 2024

Crítica: Garra de Ferro (2023)


 
Retrato de uma obsessão doentia, que direta ou indiretamente, acaba gerando uma espiral de tragédias. Garra de Ferro (The Iron Claw) conta de forma crua a história real por trás dos Von Erich, que se tornaram a família mais famosa do mundo do Wresteling (luta-livre profissional), tanto pelas conquistas nos ringues como pelas tragédias que assolaram a família durante anos, quase como uma maldição.
 


O patriarca da família era Fritz (Holt McClallany), um homem que pro anos batalhou para conquistar o cinturão de campeão na NWA, mas nunca conseguiu realizar seu sonho. Essa sua obsessão acaba sendo passada para cada um dos filhos, que desde pequenos foram colocados nos treinamentos para se tornarem lutadores, com o desejo imparável do pai de ver o cinturão de campeão parar na família. O mais velho, Kevin (Zac Efron), é o que está mais perto de alcançar essa conquista. Outros tentam seguir sonhos diferentes, como Mike (Stanley Simons) na música, ou até mesmo em outro esporte que não seja a luta, como Kerry (Jeremy Allen White), que vira atleta de arremesso de disco. Porém, uma hora ou outra, todos acabam sendo levados a lutar oor pressão do pai. E é interessante perceber como eles querem dar o seu melhor não apenas para ganhar, mas para se tornar o "filho preferido" do pai.

O que mais gostei em Garra de Ferro é que o filme foge completamente de narrativas clichês que são usadas constantemente em filme do tipo. Em outras palavras, não é uma cinebiografia esquemática, que segue um padrão. Temos, sim, uma abordagem muito humana e complexa da relação familiar dos personagens, e principalmente do sentimento deles em relação às fatalidades que ocorrem dentro do círculo familiar. Um fato curioso é que ocorreu tanta coisa ruim com eles, que o diretor optou até mesmo por tirar da história um dos irmãos, que segundo consta, teve a pior de todas as ocorrências.

A atuação do ator Zac Efron é o momento apoteótico da sua carreira. Ele consegue passar com firmeza toda a transformação dramática pelo qual seu personagem passa durante a jornada, e o peso de ser considerado o responsável por fazer a família dar a volta por cima de tanta tragédia com uma conquista nos ringues. O resto do elenco também está muito competente, onde todos os atores tem seu espaço na construção desta família bastante complexa. Gostei muito também da ambientação da época, que foi muito bem construída.
 


Indo muito além de um filme sobre a superação no esporte, Garra de Ferro fala principalmente sobre laços familiares, dor e luto. Tem trechos verdadeiramente angustiantes, mas ao mesmo tempo carrega uma pulsante e enérgica  vontade de vencer, tanto no esporte como na vida. Numa época onde a saúde mental de atletas tem sido muito discutida, Garra de Ferro também serve como um alerta de como a pressão pela vitória pode ser nociva. A consagração no esporte é linda, mas jamais deve passar por cima de outras coisas mais importantes.
 

quinta-feira, 7 de março de 2024

Crítica: Ficção Americana (2023)

 
Considerado uma surpresa nesta temporada de premiações, e indicado entre os dez finalistas ao Óscar de melhor filme, Ficção Americana (American Fiction), do estreante Cord Jefferson, fala sobre a hipocrisia no mundo literário norte-americano, mas sua crítica também pode ser usada em outras camadas culturais e sociais, como no próprio mundo do cinema.
 


A trama acompanha Thellonious Ellison (Jeffrey Wright), conhecido como Monk, um professor universitário e escritor negro que despreza todo tipo de conteúdo de militância racial. Ele inclusive se revolta por ver seus livros sendo expostos em uma prateleira de “livros sobre cultura afro-descendente”, pois para ele as obras que escreve são apenas livros de ficção, como os escritos por qualquer pessoa, independente de raça, e não tem porque existir esta separação. Por ter essa visão, ele acaba sendo excluído pelas editoras, que cada vez mais exigem que livros escritos por pessoas negras tragam estórias estereotipadas pelo sistema, como a vida na periferia, o vício em drogas, e sobretudo a violência policial, pois é isso o que mais vende.

A ironia surge quando Monk decide escrever um livro que segue todo o clichê possível sobre a identidade negra, e o livro se torna um grande sucesso, mesmo sendo propositalmente muito ruim e mal escrito. O filme funciona bem na parte da sátira, mas desperdiça todo o seu potencial quando vai para o lado do drama familiar. Não consegui me conectar com nenhum dos percalços que o protagonista enfrenta quando precisa voltar para a casa da família em Boston e lidar com a mãe doente e uma irmã recém divorciada. Também não consegui me conectar com o personagem do irmão de Monk, interpretado por Sterling K. Brown, que acaba sendo bastante caricato.
 


Infelizmente, é gritante a falta de profundidade com que o diretor aborda os personagens secundários. O filme é apenas de Jeffrey Wright, e gira 100% em torno do seu personagem. Quando ele não está na tela, não há história. Ou há, mas não tem nada que cative e faça o espectador se interessar. A crítica é, sim, bastante sagaz, principalmente quando fala sobre o que a sociedade atual consome culturalmente, mas só isso não basta.
 

quarta-feira, 6 de março de 2024

Crítica: Zona de Interesse (2023)


Banalidade do mal é uma expressão criada pela teórica política alemã Hannah Arendt, cujo conceito casa perfeitamente com a história contada em Zona de Interesse, filme do diretor britânico Jonathan Glazer. A ideia de que o mal está tão enraizado na humanidade que as pessoas cometem atrocidades até mesmo sem querer, de acordo com o contexto que estão inseridas, e foi muito citada nos julgamentos dos oficiais nazistas após a Segunda Guerra, sob o pretexto de que tudo que eles fizeram nos campos de concentração tinham o respaldo da lei vigente na época.


A verdade é que as maiores atrocidades da humanidade não foram cometidas diretamente pelos vilões conhecidos dos livros de história, mas sim por pessoas comuns, que viviam suas vidas normalmente entre uma morte e outra. É o caso de Rudolf Hoss (Christian Friedel), que comanda o campo de concentração de Auschwitz, considerado o maior do período nazista. O filme começa nos ambientando na casa grandiosa onde Hoss vive com a esposa Hedwig (Sandra Hüller) e os filhos, com piscina e belos jardins, ao lado dos prédios precários onde judeus são mantidos em situações desumanas. Hoss e a família nadam no rio local em um dia quente, comemoram aniversários, recebem visitas e fazem planos a longo prazo para a residência. Tudo aparentemente normal, não fosse o que está do outro lado dos muros.

 

Nós não vemos o campo em si, muito menos os prisioneiros, pelo menos não da maneira como estamos acostumados a ver em outros filmes do gênero. A única exceção são suas torres e alguns pedaços dos telhados que surgem por cima do muro. que incomoda o espectador é justamente saber de antemão o que está acontecendo do outro lado, e o quanto esta família parece alheia a tudo. Enquanto as crianças brincam na piscina, atrás podemos ver a fumaça dos crematórios subindo pelas chaminés, ou a fumaça dos trens chegando, que sabemos, novamente apenas pelo conhecimento prévio da história, estarem abarrotados com mais prisioneiros. Hedwig mostra à sua mãe as hortas e jardins que ela cultiva no pátio, enquanto gritos de pavor são ouvidos do lado de fora. E absolutamente ninguém se importa.


Um dos pontos principais a se destacar em Zona de Interesse é o som do filme. É um trabalho realmente impressionante. São tiros, gritos, tudo abafado, mas praticamente onipresente. Gosto também da fotografia do filme, com seus planos estáticos, como se fôssemos observadores de tudo que acontece à nossa frente. meu problema com o filme, é que em certo momento ele se torna um tanto quanto monótono. E antes que digam qualquer coisa, eu não tenho problema algum com filmes de ritmo lento, mas este definitivamente não funcionou comigo da mesma forma que funcionou com outras pessoas (e tudo bem). O diretor também utiliza alguns elementos experimentais que acabaram me afastando um pouco da história, como a história da menina que é mostrada sempre por uma câmera de visão noturna. Acredito que o filme é satisfatório na demonstração de sua ideia, e é bem fácil entendê-la, mas infelizmente peca no desenvolvimento.