quarta-feira, 23 de agosto de 2023

Crítica: Nimona (2023)


Baseado na HQ criada pela cartunista ND Stevenson, a animação Nimona por pouco não saiu do papel após ter uma pré-produção bastante complicada, onde chegou a ser engavetada pela Disney. Porém, após ter os direitos adquiridos pela Netflix, o projeto enfim ganhou sequência e acabou sendo lançado mundialmente na própria plataforma em junho deste ano. E ainda bem, pois o filme emociona e cativa na medida certa ao trazer questões sociais muito importantes e atuais, sendo uma das boas surpresas neste ano de 2023.


Se em um primeiro momento somos apresentados a cavaleiros com armaduras e armas que remetem ao período medieval, logo percebemos que ao mesmo tempo outros personagens estão usando celulares, computadores e carros voadores, e que o mundo na verdade está na pós-modernidade. A mistura destes dois estilos temporais não chega a ser explicada, mas a metáfora fica evidente: apesar dos avanços tecnológicos, a sociedade ainda tem pensamentos ultrapassados e segue tradições arcaicas. Entre elas, o fato de que ninguém pode se tornar um cavaleiro da Rainha sem vir de uma linhagem nobre. Quem está prestes a quebrar esse paradigma e mudar os rumos dessa sociedade é Ballister, um plebeu que cresceu nas ruas e sempre teve o sonho de lutar pelo reino. Apesar da forte resistência da população, ele está prestes a fazer história chegando em um espaço onde até então seria impossível de ele chegar, mas algo inesperado acontece e ele acaba sendo acusado de um crime que não cometeu.

Considerado vilão, e perseguido pela cidade inteira, Ballister acaba fugindo, e encontra no meio do caminho a jovem Nimona, uma menina de cabelos vermelhos e estilo alternativo, que na verdade é uma metamorfa que consegue se transformar em qualquer ser vivo que queira, desde outras figuras humanas até mesmo animais das mais diversas espécies. Apesar deste seu dom, Nimona nunca conseguiu ser compreendida e se encaixar em nenhum espaço, tendo sido sempre chamada de monstro e perseguida por ser diferente. Ela é mais uma metáfora inteligente da história, como uma figura que de certa forma tentou se encaixar no mundo e ao ser rejeitada acabou tendo que aceitar ser aquilo que os outros decidiram que ela seria. A relação destes dois personagens "excluídos" é muito bem construída, e gera cenas divertidíssimas, principalmente pela diferença de personalidade dos dois. Em alguns momentos, o filme também puxa para o drama, sobretudo quando fala da vida da personagem título antes dos acontecimentos do presente.


Os traços dos desenhos são belíssimos, com muito destaque aos olhos dos personagens e suas expressões. Na dublagem americana, tem dois nomes conhecidos que fazem um ótimo trabalho: Chloe Grace Moretz (Nimona) e Riz Ahmed (Ballister). E apesar de ter críticas sociais bem definidas, Nimona também funciona em uma camada mais superficial, sendo também um bom entretenimento para todos os públicos, desde que o espectador abrace as ideias que ele propõe de cabeça aberta. A questão da aceitação do "diferente", já vista em muitos outros filmes de animação, aqui se concentra em dois elementos, com a história podendo ser vista tanto pelo ponto de vista da temática LGBTQIA+ como também na questão que envolve a luta de classes.


terça-feira, 15 de agosto de 2023

Crítica: As Oito Montanhas (2023)


Dirigido por Felix Van Groeningen (de Alabama Monroe e Querido Menino) em parceria com sua esposa e também cineasta Charlotte Vandermeersch, As Oito Montanhas (Le Otto Montagne) é uma verdadeira ode à amizade e aos laços que formamos durante a vida e que perduram através do tempo e da distância, e chegou a se sagrar como vencedor do Prêmio do Júri no Festival de Cannes do ano passado.


A trama acompanha Pietro (Lupo Barbiero) e Bruno (Cristiano Sassella), dois meninos na fase da pré-adolescência que se conhecem e formam uma amizade forte e incondicional, apesar de virem de realidades bem distintas. Pietro é uma menino quieto e pouco sociável que mora na cidade grande, e vai passar alguns dias com a mãe em uma casa que eles alugaram nas montanhas dos Alpes, no noroeste italiano. Já Bruno é "montanhês" de nascença, nunca visitou a cidade, e tem nessas formações rochosas o seu espaço natural, onde passa os dias ajudando a mãe nos afazeres com os animais e na fabricação de queijo. De comum os dois tem apenas uma coisa: o distanciamento emocional na relação com o pai.

Essa diferença social não impediu que os dois se conectassem de maneira irreversível, e o filme nos mostra essa relação ao longo de três décadas. No entanto, os dois ficaram sem se ver por cerca de vinte anos devido a distância e também às próprias consequências naturais da vida, mas quando o reencontro acontece, sem nenhuma pompa ou cerimônia, percebemos que há laços que o tempo não destrói. Unidos por uma causa pessoal (a construção de uma casa inacabada pelo pai de Pietro em um dos pontos mais altos da montanha), Pietro (agora interpretado por Luca Marinelli) e Bruno (agora interpretado por Alessandro Borghi) passam a trabalhar juntos neste projeto,  fortalecendo ainda mais a relação enquanto misturam experiências e anseios de vida.


Gostei como o filme não derrapa em nenhum sentimentalismo barato, e mostra tudo com muita naturalidade, trazendo excelentes reflexões. Além da amizade entre os dois, o roteiro aborda temas como a relação entre pais e filhos, a passagem do tempo e o modo como nossas vidas são maleáveis diante dela, e também a forma como nós da cidade enxergamos a relação com a natureza. A fotografia é encantadora, e diria que é o ponto alto do filme, mas senti que o roteiro carece um pouco de ritmo, e em certos momentos a longa duração acaba não sendo justificada com uma montagem pouco atrativa.


quinta-feira, 10 de agosto de 2023

Crítica: Asteroid City (2023)


Poucos diretores na atualidade tem uma assinatura tão própria e notável como Wes Anderson, e esta estética única de seus trabalhos é o que faz ele ser tão aclamado pela crítica e pelo público mundo a fora. No entanto, se analisarmos a parte narrativa dos seus últimos filmes, a discussão acaba sendo um pouco mais embaixo, e eu diria até que costuma ser o ponto fraco da sua filmografia. Não posso negar que Asteroid City me divertiu bastante enquanto assistia, mas infelizmente apresenta os mesmos defeitos do seu antecessor, A Crônica Francesa: é fragmentado e disperso, sendo impossível se apegar a qualquer um dos personagens por falta de profundidade neles.


Anderson mais uma vez tem a disposição um cast extraordinário, mas que acaba sendo subutilizado em cenas rápidas, como se fossem esquetes de humor e nada mais do que isso. Do elenco estrelado, apenas alguns dos nomes ganham mais tempo de tela, como é o caso de Bryan Cranston, que é o primeiro a aparecer e serve como uma espécie de narrador onipresente ao longo do filme, sempre aparecendo com a fotografia em preto e branco. É ele que logo de cara nos informa de que iremos acompanhar uma peça de teatro chamada "Asteroid City", escrita por Conrad Earp (Edward Norton), dividida em três atos e que se passa em 1955.

A partir de então, o filme ganha cores e o visual deslumbrante que já é marca registrada do diretor. Adentramos nessa cidade fictícia no meio do deserto norte americano, que apesar de quase não ter habitantes, é famosa por conta de uma enorme cratera causada pela queda de um meteorito há centenas de milhares de anos. A cidade está se preparando para a festa anual de comemoração ao aniversário da queda do objeto espacial, onde alunos prodígios de ciências do país inteiro são chamados para receberem premiações por suas invenções no mínimo "estranhas".

É nesta pacata localidade que Augie (Jason Schwartzman) acaba ficando isolado com seus filhos após o carro em que viajavam apresentar um defeito grave. Ele está tentando encontrar a melhor maneira de contar às crianças sobre a morte da mãe deles, e para isso conta também com a ajuda do seu sogro aposentado (Tom Hanks). Aos poucos, outros personagens também vão se juntando à história, como a atriz de cinema Midge Campbell (Scarlett Johansson) e o dono do único motel do lugar (Steve Carrell), além de outros que vão chegando na cidade especialmente para as comemorações. Após um extraterrestre aparecer na cidade durante o evento, o governo norte-americano decide colocar todos em quarentena, e daí em diante vão surgindo várias pequenas tramas envolvendo cada um destes personagens, que impossibilitados de sair da cidade passam a interagir entre si de várias maneiras.


Como já era esperado, a fotografia é de fato o que mais chama a atenção durante toda a exibição. São planos caprichosamente assimétricos, cores em tons pasteis e cenários em 2D que verdadeiramente encantam os olhos de quem vê. As atuações acabam combinando com esse clima "teatral" criado por Anderson, sendo um pouco espalhafatosas e até mesmo caricatas na maior parte do tempo, o que não incomoda tanto se você conseguir comprar a ideia desde o início. O ponto negativo fica mesmo por conta do roteiro, que não consegue desenvolver bem as ideias que queria justamente por ser bastante desconexo entre um ato e outro, além de terminar tudo de forma abrupta e insatisfatória. No fim, é um filme que vale a pena pelo elenco, pela fotografia, e por algumas cenas cômicas bem inspiradas, mas fica a pergunta: até quando Wes Anderson vai continuar insistindo nesta mesma fórmula vencida?


terça-feira, 8 de agosto de 2023

Crítica: Blue Jean (2023)


Marcando a estreia da diretora britânica Georgia Oakley, Blue Jean é um filme sensível e poderoso que retrata um período de repressão agressiva e covarde contra os homossexuais na Inglaterra do final dos anos 1980, comandada pela conservadora Margaret Thatcher, e que infelizmente ainda tem muitas semelhanças com coisas que a gente vê em pleno 2023.


A trama acompanha Jean (Rosy McEwen), uma professora de educação física do ensino médio que leva uma vida bastante discreta no ambiente de trabalho, mas que nas horas vagas costuma sair a noite com um grupo de amigas lésbicas para beber, ouvir música e jogar sinuca. Ela também mantém um relacionamento casual mas afetuoso com Viv (Kerrie Hayes), que por sua vez é o extremo oposto dela, sendo bastante incisiva quando o assunto é política e direito dos homossexuais. É bom situar que o filme se passa em meio a implementação da "Cláusula 28" em 1988, que proibia que a homossexualidade fosse vista como algo positivo nas escolas, além de incitar como algo anormal, abominável e "destruidor da família tradicional"

Jean tentava esconder a todo custo a sua orientação sexual principalmente por medo de perder o emprego, já que tanto a diretora da escola como a grande maioria dos colegas professores apoiavam explicitamente as ideias homofóbicas da primeira-ministra, e certamente fariam de tudo para expulsá-la caso descobrissem. De repente entra na escola uma nova aluna, Lois, (Lucy Halliday), que em plena adolescência vive os conflitos internos a respeito da sua própria sexualidade e não tem nenhuma referência para lhe ajudar a entender isso. Além de sofrer bullying das demais colegas por ser introspectiva, ela também é chamada "pejorativamente" de lésbica pelas demais meninas, que a afastam e a veem até mesmo como uma ameaça, o que aumenta ainda mais seu sentimento de isolamento e não pertencimento. Ela passa então a enxergar Jane como a única pessoa que a compreende e que pode lhe acolher.


O ponto alto é a atuação de Rosy McEwen, que brilha ao carregar nos olhos da personagem toda angústia de alguém que precisa viver uma vida dupla. Melancólica na maior parte do tempo, Jean é o retrato de uma parcela da sociedade que precisou ficar muito tempo (e em alguns lugares ainda fica) escondida, dentro do armário, com muito medo. O tom do filme se mantém pesado do início ao fim, até mesmo em cenas que teoricamente seriam mais leves como no momento em que Jean brinca com seu sobrinho e tem um pequeno surto de raiva, ou ainda quando ela e Vivi estão tendo relações sexuais e, emblematicamente, sempre são interrompidas por algum motivo externo ou até mesmo interno. O desgaste emocional de ser viver dessa forma é muito bem abordado, e gostei muito como em nenhum momento o filme apela para o dramalhão e muito menos nos faz sentir pena de Jean ou algo do tipo.

terça-feira, 1 de agosto de 2023

Crítica: Clonaram Tyrone! (2023)


Lançado na última semana no catálogo da Netflix Brasil, Clonaram Tyrone! é uma ficção científica que abraça fortemente o movimento "blaxploitation", que marcou o cinema norte-americano da década de 1970 pela forte presença da cultura negra em seus filmes, e apresenta uma premissa pesada e assustadora mas que de maneira divertida e instigante prende até o final.


Marcando a estreia na direção de Juel Taylor, o filme começa acompanhando Fontaine (John Boyega), um traficante que é morto a tiros por um grupo rival. No dia seguinte, no entanto, ele acorda normalmente e segue sua rotina como se nada tivesse acontecido, enquanto todos que viram ele ser morto ficam chocados e sem entender nada. Entre eles o cafetão Slick Charles (Jamie Foxx) e uma de suas prostitutas, Yo-Yo (Teyonah Parris), que junto com Fontaine passam a investigar o que está acontecendo, o que os leva até um estranho laboratório onde um plano bizarro com clones humanos está sendo posto em prática.

O roteiro consegue aliar bem o suspense sci-fi com um humor certeiro, sem ser expositivo ou forçado. Mais do que isso, possui uma boa crítica social/racial por trás, já que a ideia principal do projeto de clonagens, que visa acabar com a violência nas cidades, busca "embranquecer" a população negra sem deixar com que eles percam seus traços mais marcantes, afim de criar uma sociedade igual e simétrica. Sim, é uma ideia absurda, mas que tem um bom desenvolvimento e se torna bem plausível se formos analisar todo o contexto que o diretor busca apresentar. Há toda a questão do controle em massa da população negra, como forma de moldar os seus comportamentos e torná-los obedientes, com o intuito de evitar uma "revolução" por seus direitos, e para isso é utilizado até mesmo um pó misterioso em comidas, bebidas e outros objetos do dia a dia, que alteram a percepção das pessoas e fazem com que elas sejam facilmente manipuláveis. O próprio fato dos protagonistas ganharem a vida de uma maneira completamente estereotipada na periferia (um traficante, um cafetão e uma prostituta) acaba sendo uma crítica a esse sistema que, de uma maneira geral, tenta criar um redoma e impedir que os negros tenham acesso a  espaços que historicamente sempre foram dos brancos.  E o acerto do filme é justamente mostrar através do humor, e sem ser irritantemente panfletário, o quanto a realidade do povo periférico pouco ou nada mudou em tantos anos de luta por igualdade.


Além da ótima trilha sonora, outro ponto alto é a fotografia granulada que remete muito aos anos 1970. O diretor também brinca com a nossa percepção do tempo ao dar indícios de que a história se passa naquela década, como nas vestimentas e nos carros de época, mas ao mesmo tempo traz muitas referências contemporâneas, como as músicas, os gostos pessoais dos personagens e até mesmo uma discussão sobre bitcoins, o que nos coloca definitivamente na linha do tempo atual. Algumas atuações são um pouco caricatas, mas casaram bem com a proposta do filme, que era para ser isso mesmo, uma verdadeira comédia do absurdo. No meio de tanto filme original engessado em seu catálogo, é surpreendente ver a Netflix lançando uma história tão original, corajosa e fora da zona de conforto.