sábado, 30 de abril de 2022

Crítica: Limbo (2022)

 

Limbo, no dicionário de língua portuguesa, significa algo que está à margem, ou em um sentido mais informal, algo que se encontra esquecido, negligenciado e até mesmo sem utilidade. Desta maneira, a palavra se encaixa bem no tema proposto pelo diretor escocês Ben Sharrock em seu novo filme, onde ele apresenta um grupo de refugiados sírios que estão em uma ilha da Escócia à espera do governo decidir se irá dar asilo a eles ou não.


Enquanto esperam essa decisão sobre seus destinos, eles vão levando a vida nesse pequeno vilarejo, aprendendo inglês e tendo aulas "bizarras" sobre como se comportar em sociedade. O filme não deixa explícito a repulsa que os moradores locais têm dos imigrantes, mas podemos perceber pelos seus olhares, por algumas falas e até por alguns atos impensados, que eles não queriam sua companhia por ali. E este é o primeiro paralelo que o diretor traça em relação à maneira como os imigrantes são tratados por toda Europa, geralmente vistos como intrusos. Há uma cena específica que me marcou, quando alguns homens estão mais preocupados com as ovelhas que sumiram durante uma nevasca do que com um dos imigrantes, que também desapareceu, e isso diz muito sobre a proposta do filme.

Omar (Almir El Masry) é o protagonista da história, e é um personagem bastante calado, que carrega nos ombros a esperança que a família deposita nele para conseguir dinheiro e ajudá-los a lidar com as dificuldades no país de origem. A amizade que surge entre ele e Farhad (Vikash Bhai), um homem que é fã de Freddie Mercury e usa um bigode igual ao ídolo, é para mim o grande ponto alto da trama, já que são entre os dois que acontecem os melhores diálogos, onde versam sobre música, sonhos, solidão, e principalmente sobre a liberdade de cada um ser o que é, sem precisar esconder nada.


Limbo tem uma estrutura diferenciada e peculiar, e uma frieza que me remete ao cinema feito nos países nórdicos. Porém, também tem momentos de extrema delicadeza e sensibilidade, principalmente quando aborda mais a fundo a personalidade dos personagens e o porquê de eles estarem fugindo do seu país. As críticas estão nas entrelinhas, e quem as pega, tem uma experiência muito intensa.


quinta-feira, 28 de abril de 2022

Crítica: Tre Piani (2022)


Tre Piani, novo filme do cineasta italiano Nanni Moretti, apresenta os moradores de quatro apartamentos diferentes de um mesmo prédio localizado em um bairro de classe média de Roma. Dividido em três partes, o roteiro acompanha dez anos na vida destes personagens, com suas mudanças, seus amadurecimentos e sobretudo suas perdas ao longo do passar do tempo.


Em um primeiro momento, três personagens se destacam: Monica (Alba Rohrwacher), que está prestes a dar a luz ao primeiro filho, Andrea (Alessandro Sperduti), filho inconsequente e problemático de um casal de juristas que atropela e mata uma mulher enquanto dirigia alcoolizado, e Lucio (Riccardo Scamarcio), que é um pai superprotetor e suspeita que sua filha tenha sido abusada por Renato (Paolo Graziosi), seu vizinho idoso.

A partir dessas três histórias, temos o desenrolar de outras subtramas que se conectam através delas. Tem a história do idoso e sua luta contra o alzheimer, e o bonito amor que a esposa mantém por ele mesmo depois de décadas, o relacionamento de Mônica com o pai do seu filho, a tentativa dos pais de Andrea de seguir a vida mesmo com a ausência do filho que acabou sendo preso, e o surgimento de Charlotte (Denise Tantucci), uma personagem externa que põe em cheque o casamento de Lucio. Todos os protagonistas destes pequenos "retratos da vida humana" tentam lidar, da sua maneira, com os próprios conflitos internos, e é interessante como o diretor trabalha a personalidade de cada um.

O roteiro tem momentos criativos e boas ideias, sobretudo quando aborda a passagem implacável do tempo, que na mesma velocidade em que nos apresenta coisas novas, também leva embora pessoas que amamos, seja pela morte ou apenas por ter tomado caminhos diferentes. O que me incomodou um pouco foram as atuações, que na maior parte do tempo me pareceram artificiais, mesmo com um bom elenco envolvido. O final "Felliniano" é encantador, e com certeza é uma homenagem de Moretti ao clássico diretor italiano que morreu em 1993. Por fim, o mérito de Tre Piani é nos colocar como espectadores onipresentes na vida destes personagens tão complexos e ao mesmo tempo tão humanos.


sexta-feira, 15 de abril de 2022

Crítica: X (2022)


O termo "Slasher" surgiu em meados da década de 1970 para designar filmes de terror que geralmente consistem em um assassino psicopata matando de forma aleatória, e alguns exemplos clássicos são O Massacre da Serra Elétrica (1974), Halloween (1978) e Pânico (1996). Dirigido por Ti West e produzido pela A24, "X" revisita o subgênero e já chega dividindo opiniões, ou em outras palavras, dividindo o sentimento do público entre "ame ou odeie".


Com uma apaixonante atmosfera setentista, uma ótima trilha sonora e uma fotografia impecável, o filme me surpreendeu bastante do início ao fim, e mesmo não sendo um grande apreciador de filmes de terror, já o considero um dos trabalhos mais diferenciados do ano até então, seja pela sua originalidade, ou pela simples coragem do diretor de fazer um filme totalmente despido de pudores numa época em que isso tem sido raro de ver.

A história se passa nos anos 1970 e acompanha um grupo que está viajando de Houston para uma cidade no interior do Texas a fim de gravar um filme pornográfico em uma fazenda. Entre eles estão o produtor Martin (Wayne Gilroy) o diretor iniciante RJ (Owen Campbell) com sua namorada Lorraine (Jenna Ortega), e os atores do filme Jackson (Kid Cudi), Bobby-Lynne (Brittany Show) e Maxine (Mia Goth). Quem os recebe é o dono do lugar, um senhor de idade já avançada e que é bem pouco amistoso, mas ainda assim aceita alugar um espaço da fazenda por uns dias, sem fazer ideia dos verdadeiros planos do grupo. Aos poucos, porém, tanto o senhor como a sua esposa começam a ter interesses um tanto curiosos em relação a estes hóspedes.

A direção acerta em cheio ao criar o suspense do filme de forma lenta e gradativa. Quem espera um filme com ação e mortes desde o começo pode ficar um pouco decepcionado, mas eu gostei do desenvolvimento dos personagens e da maneira como as mortes começam a acontecer. Aliás, sobre os personagens, é bom dizer que, diferente de outros filmes do mesmo estilo, eles não têm atitudes burras que fazem a gente pensar "poxa, por que ele fez isso?", e até certo ponto agem de acordo como qualquer um de nós agiria, o que achei bem verossímil.

 

Quando o filme atinge o seu ápice, o diretor não economiza no sangue e nas cenas "gore", assim como também não economiza nas cenas de erotismo, porém sem utilizar nada disso de forma gratuita. Ele inclusive traz questões até mesmo profundas sobre a liberdade sexual, numa época em que isso ainda era um grande tabu, principalmente em relação às mulheres. Desejo e morte de certa forma se conectam nesta estranha história, por mais medonho que isso possa parecer, e o final acaba sendo bem satisfatório.


domingo, 10 de abril de 2022

Crítica: Great Freedom (2022)


Revogado inteiramente apenas em 1994, o "parágrafo 175" do código penal alemão ficou mais de 120 anos em vigor e tinha como principal medida criminalizar a homossexualidade. Durante este longo período, cerca de 140.000 homens foram condenados pela lei e acabaram nas prisões do país, principalmente durante o regime nazista e no período pós-guerra.


Great Freedom, vencedor do prêmio do júri na mostra Un Certain Regard em Cannes e representante da Áustria no Oscar 2022, conta a história de Hans Hoffman (Franz Rogowski), que ao longo de três décadas foi preso três vezes pelo até então "crime" de realizar atos sexuais com outros homens. O filme inicia em 1968, com a terceira ida de Hans para a cadeia, mas o roteiro quebra a linearidade e volta para 1945 e 1953, outros dois períodos em que ele esteve atrás das grades pelos mesmos motivos. Nestas idas e vindas no tempo, o diretor Sebastian Meise costura histórias vividas por Hans na prisão, sobretudo a sua relação com Viktor (Georg Friedrich), um homem heteronormativo que está preso acusado de assassinato.

Com uma direção extremamente competente, Meise consegue passar toda a angústia de alguém que está impedido de ter a sua liberdade, em todos os sentidos possíveis. O ambiente claustrofóbico e inóspito de uma prisão também é muito bem trabalhado aqui, assim como a figura dos carcereiros, que não possuíam nenhum pudor em torturar, fisica e psicologicamente, os seus prisioneiros, ainda mais quando sabiam se tratar de um condenado pelo 175. Franz Rogowski tem uma atuação impressionante, e é possível identificar a época que o filme está se passando apenas pelas suas expressões, ora de alguém assustado (que indica que estamos na sua primeira detenção), ora de alguém já experiente que sabe as regras de convivência e o que fazer pra tentar não enlouquecer nessa realidade caótica.


Great Freedom é um dos grandes filmes deste ano, e consegue aliar o peso de um tema tão dolorido com a ternura de um personagem que só queria poder se relacionar com quem quisesse sem ter sua liberdade tolhida por isso. Aliás, dói justamente por sabermos que hoje ainda existem países que criminalizam a homossexualidade da mesma forma, com prisão e pena de morte. O final, por sua vez, encerrou com maestria a ideia de pertencimento que permeia o filme todo. Brilhante!