Lançado em 2019, Coringa foi um estrondoso sucesso de público, de crítica e de premiações, sendo consagrado como um dos melhores filmes daquele ano. Não é para menos, já que o mergulho melancólico e visceral que o diretor Todd Phillips faz na mente do icônico personagem dos quadrinhos, interpretado brilhantemente por Joaquin Phoenix, possuía uma força e uma potência catártica singular. Por tudo isso, era evidente que sendo anunciada uma sequência, ela atrairia todas as atenções possíveis, principalmente por suas novas nuances: a entrada de Lady Gaga no papel de Arlequina, e o fato do novo filme ser um musical.
Extremamente divisivo, Coringa: Delírio a Dois (Joker: Folie à Deux) foi lançado comercialmente no Brasil neste começo de outubro, mas desde antes já vinha dando o que falar mundo a fora, com opiniões efusivamente negativas, que culminaram na desconfiança do público e em salas de cinema muito mais vazias do que se esperava. Por estas questões externas, confesso que fui ao cinema sem nenhuma expectativa, mas sou obrigado a dizer que para a minha surpresa, eu gostei do que vi, ainda que tenha várias ressalvas. Tudo bem, o filme não chega aos pés do primeiro e isso é evidente, mas está muito longe de ser o desastre que o pessoal vem falando por aí, e a proposta de adentrar na mente deteriorada e descolorida de Arthur Fleck (Phoenix), o palhaço e aspirante a comediante que está por trás da figura do Coringa, continua sendo fascinante à sua maneira.
Depois dos acontecimentos do primeiro filme, onde Arthur matou cinco pessoas, incluindo o âncora de televisão Murray Franklin no seu programa ao vivo, a sequência já inicia com o personagem vivendo no asilo psiquiátrico Arkham, onde está internado enquanto aguarda o seu julgamento. Sua advogada de defesa (Catherine Keener) tenta argumentar que ele é imputável em relação aos crimes por ter problemas mentais, enquanto a promotoria faz a parte dela e tenta provar o contrário. Enquanto tudo isso se desenrola nos bastidores, acompanhamos o dia a dia sombrio de Arthur na prisão, onde vemos um personagem bastante enfraquecido fisica e psicologicamente, sofrendo diariamente com insultos e abusos dos policiais e sem forças para reagir.
A primeira hora do filme segue uma estrutura bastante sóbria, até o dia em que Arthur conhece a também interna do lugar Arlequina (Lady Gaga), enquanto ela participa de uma aula de música. A aparição da personagem não apenas traz luz para a vida de Arthur, que se apaixona instantaneamente por ela (mesmo que não saiba direito o que significa isso), como também muda o tom do filme, pois deste momento em diante as cenas musicais começam a tomar conta da trama. E é justamente neste ponto de ruptura que o espectador se divide.
Mesmo eu tendo apreciado o filme como um todo, eu não posso negar que as cenas cantadas são, na maior parte do tempo, artificiais e desnecessárias. Em muitas delas não há sequer um argumento plausível para que elas existam, a não ser o fato delas tentarem mostrar o que se passa dentro da cabeça do personagem, e depois de um tempo elas se tornar repetitivas e fora do tom. Apesar de eu ter entendido a intenção do diretor, acaba sendo uma extravagância que podia ter facilmente ficado de fora, já que a parte do tribunal na segunda metade do filme, por si só, já seria altamente satisfatória. Outro ponto negativo, é que à medida em que o Coringa vai “assumindo o lugar” de Arthur mais uma vez, agora diante do tribunal, somos levados a crer que uma nova catarse se aproxima, como aquele momento inesquecível do primeiro filme, algo que infelizmente não acontece.
O filme trabalha também a questão da idolatria, já que após os acontecimentos passados, o Coringa ganhou uma leva de admiradores. Pessoas, estas, que acompanham avidamente todo o julgamento. Além disso, ele também lançou um livro que se tornou um sucesso, e teve até um filme feito sobre sua história (aqui a metalinguagem foi certeira). Joaquin Phoenix acaba sendo muito menos exigido nesta sequência, já que não há nenhuma novidade em relação ao que já vimos do personagem no primeiro filme, mas isso não impede que ele esteja ótimo em todos os momentos que aparece em cena. Já Lady Gaga, por sua vez, também não compromete, mas sofre pela falta de profundidade na sua personagem, que principalmente na reta final acaba "escanteada". No entanto, apesar dos defeitos evidentes, repito mais uma vez que Coringa: Delírio a Dois está longe de ser uma catástrofe, já que quando abraça a sobriedade, faz isso com muita competência. O pecado talvez tenha sido justamente o excesso.
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