segunda-feira, 1 de dezembro de 2025

Crítica: Bugonia (2025)


Pode-se falar qualquer coisa do cineasta Yorgos Lanthimos, até mesmo detestar seus filmes, mas chamá-lo de convencional está fora de cogitação. A mente fértil de Lanthimos, somada a toda liberdade criativa que ele costuma receber dos seus produtores, resultou numa filmografia única e ao mesmo tempo bastante divisiva. Eu mesmo tenho essa relação ambígua com suas obras; amo algumas, como Pobres Criaturas, e abomino outras, como o seu último trabalho Tipos de Gentileza. O fato é que, ao iniciar um filme de Lanthimos, o espectador nunca sabe o que esperar, e com Bugonia não é diferente.


A trama acompanha Teddy Gatz (Jesse Plemons), um apicultor que mora com seu primo Don (Aidan Delbis) e é completamente dominado por teorias conspiratórias. Uma delas o leva a acreditar cegamente que Michelle Fuller (Emma Stone), a CEO de um grande empresa farmacêutica, é uma alienígena que está na Terra como parte de um plano maior para exterminar a raça humana. Ela também é vista por ele como grande culpada pela doença da sua mãe, que está internada entre a vida e a morte no hospital local.

Decididos a frear as ações dos supostos emissários de outro mundo, Teddy e Don sequestram Michelle, determinados a fazer com ela os leve até o seu "líder supremo". Humilhada, presa e obrigada até mesmo a usar um creme pelo corpo todo que, segundo Teddy, impediria ela de pedir socorro aos seus líderes, Michelle começa a usar toda a sua inteligência para jogar o jogo deles, na tentativa de escapar e sobreviver.

O filme mistura elementos de suspense, ficção científica e até mesmo pitadas de comédia satírica, como na cena em que Teddy obriga seu primo, um rapaz que literalmente não tem voz ativa para nada e só vai na onda, a usar um terno na primeira aparição de frente com a CEO, evidenciando o quão a sério ele levava aquela missão delirante. O roteiro inteligentemente faz com que nós espectadores também adentremos de cabeça na espiral de insanidade e paranoia dos personagens, não sabendo exatamente no que acreditar. É justamente essa "semente" da dúvida que torna o filme instigante até o final.


Um dos trunfos do filme é Emma Stone, em sua sexta parceria com o diretor, que já lhe rendeu até mesmo o Oscar de melhor atriz no ano passado. Ela se sai incrivelmente bem em mais um papel exótico, que exige não somente sua excelente carga dramática, mas também muita entrega física. No entanto, quem rouba a cena é Jesse Plemons, para mim um dos atores mais subestimados do cinema atual, que mais uma vez tem uma atuação de altíssimo nível ao interpretar um dos personagens mais enigmáticos do ano. Alternando entre o assustador e o cômico, Plemons dosa bem todos os gêneros aos quais o filme visita, dando vida a um psicótico que simplesmente não mede esforços para levar suas convicções até o fim. Por fim, Bugonia é mais um filme excêntrico do diretor que desafia e provoca o espectador, e que mesmo soando exagerado em alguns momentos, jamais se mostra desinteressante.

sexta-feira, 28 de novembro de 2025

Crítica: Foi Apenas um Acidente (2025)


O cineasta Jafar Panahi carrega uma trajetória marcada por resiliência e enfrentamento aos regimes políticos do Irã, conhecidos por suas repressões e arbitrariedades contra o povo iraniano. Há anos proibido de filmar em seu próprio país e alvo de prisões sucessivas, Panahi sempre encontrou meios de fazer sua voz ecoar pelo mundo através de seus filmes, mesmo nos períodos em que esteve atrás das grades. Seu último longa, No Bears (2023), trazia o próprio diretor como personagem principal de uma narrativa fictícia, mas que não deixava de mostrar a dura realidade do país, um elemento recorrente em suas obras independente se documentais ou ficcionais.


Foi Apenas um Acidente (It Was Just an Accident) apresenta um dilema moral instigante e de grande força emocional. Na trama, acompanhamos Eghbal (Ebrahim Azizi), que está viajando com sua filha e esposa em um clima bastante descontraído, até que ele atropela um cachorro na estrada. Apesar do susto, ele segue em frente com o carro, mas logo precisa parar novamente por causa de problemas mecânicos. Ali, o caminho de Eghbal cruza com o de Vahid (Vahid Mobasseri), um homem que, de imediato, demonstra inquietação e convicção de já conhecer aquele motorista de algum lugar. De onde, ainda não sabemos. A tensão cresce rapidamente quando Vahid passa a observar Eghbal, a segui-lo até sua casa e acompanhar seus passos com uma certa obsessão, e Panahi conduz esse suspense inicial com precisão, sem pressa em revelar suas peças.

A revelação quando vêm, no entanto, é devastadora. Vahid acredita fortemente que Eghbal é o inspetor do governo responsável por torturá-lo anos antes na prisão, fato que destruiu para sempre sua vida e que o faz carregar traumas pesados até os dias de hoje. Dividido entre o desejo de tomar uma atitude drástica e o medo de cometer uma injustiça, ele procura outros ex-prisioneiros que teriam sofrido nas mãos daquele homem, buscando confirmação. Assim entram em cena Shiva (Mariam Afshari), Goli (Hadis Pakbaten) e Hamid (Mohamad Ali Elyasmehr), cada qual respondendo ao passado da sua maneira: alguns pregando cautela, outros ansiando por vingança imediata. As discussões e tensões entre eles, impulsionadas por memórias, dores e visões divergentes de justiça, movem o restante da narrativa, que se desenrola ao longo de um único dia, e que a cada nova cena traz um elemento novo para discussão. O que os une, contudo, é a cicatriz coletiva deixada pela violência estatal e a sensação de que a justiça formal jamais lhes devolveu aquilo que perderam.


Nenhum desses personagens tem instinto criminoso, isso fica bem claro, e é justamente aí que reside o cerne do filme. Se o sistema que deveria punir os abusadores se omitiu, ou pior, legitimou seus atos, teriam as vítimas o direito moral de revidar? Mais do que isso, seria Eghbal realmente o algoz que merece ser responsabilizado, ou ele era apenas alguém que cumpria ordens dentro de um mecanismo muito maior? Panahi transforma essas perguntas em cinema pulsante, convidando o espectador a enfrentar, junto com eles, o peso ético de uma resposta que nunca é simples.

O que o governo fez a estas pessoas não foi um acidente, e o que eles estão fazendo em retaliação, também, não é. São atos que geram consequências, numa espiral de acontecimentos que mostra como funciona o ciclo da violência e da opressão. Vencedor da Palma de Ouro em Cannes este ano, Foi Apenas um Acidente é um dos filmes mais interessantes do ano, que reafirma a potência de Panahi como contador de histórias que expõem as fraturas mais profundas da sociedade iraniana.

quinta-feira, 27 de novembro de 2025

Crítica: Nouvelle Vague (2025)


Mais do que um movimento cinematográfico, a Nouvelle Vague, surgida na França entre o final da década de 1950 e início da década de 1960, marcou uma geração e redefiniu, de maneira profunda, a forma de se fazer cinema no país. Inspirado pelo neorrealismo italiano, o movimento rompeu com convenções narrativas, apresentando técnicas inovadoras para a época, privilegiando filmagens leves, abusando dos improvisos e da liberdade formal, e trazendo uma aproximação radical dos filmes com a vida real.


Ao recriar as gravações de Acossado (1960), de Jean-Luc Godard, um dos ícones daquele período, o cineasta Richard Linklater nos entrega um trabalho que soa como um "filme da Nouvelle Vague perdido em pleno século XXI". As composições dos planos e os movimentos de câmera, a grafia das legendas, os figurinos e até as marcantes frases de impacto entre os diálogos, evocam com precisão o espírito e a estética daqueles filmes lançados há mais de sessenta anos atrás.

Na trama, acompanhamos o jovem Godard (Guillaume Marbeck), então crítico de cinema da Cahiers du Cinéma, tomado pelo desejo irreprimível de fazer seu primeiro filme. O sucesso recente de François Truffaut (Adrien Rouyard) e Claude Chabrol (Antoine Besson) desperta nele um misto de admiração, insegurança e uma leve sensação de estar ficando para trás, tensão que alimenta sua busca por uma voz própria neste meio. Mesmo inexperiente, ele consegue que seu amigo e produtor Georger de Beauregard (Bruno Dreyfürst) financie seu primeiro longa, sobre a história de um casal de criminosos, obra que viria a se tornar um marco do cinema moderno.


Se a ideia era recriar toda a atmosfera efervescente que pulsava para além das telas, Linklater conseguiu isso com maestria. A lista de referências da época é imensa, e vai desde os diretores Jacques Rivette (Jonas Marmy), Jean-Pierre Melville (Tom Novermbre), Agnès Varda (Roxane Rivière) e Eric Rohmer (Côme Thieulin), até atores como Jean-Paul Belmondo (Aubry Dullin) e Jean Seberg (Zoey Deutch), que por sinal formam o casal protagonista do filme de Godard. Isso de fato enriquece a obra, principalmente para quem conhece a importância destes nomes para a história do cinema.

Filmes sobre "fazer filmes" já costumam ser cativantes para quem é apaixonado pela sétima arte, e o encanto do filme de Linklater reside justamente nos pormenores de um set de filmagens, como nas dificuldades de rodar um filme com poucos recursos, nas "gambiarras", nas tensões e nos improvisos. Algo que de certa forma lembra Uma Noite Americana (1973), clássico do diretor François Truffaut. Por fim, Nouvelle Vague não é necessariamente um filme sobre Godard, ou nem mesmo especificamente sobre Acossado, mas sim, sobre o nascimento de uma vertente cinematográfica e o instante exato em que uma geração de cineastas encontrava uma maneira própria de olhar o mundo e traduzir esse olhar através de imagens.

terça-feira, 18 de novembro de 2025

Crítica: Os Enforcados (2024)


Uma crônica feroz sobre a ganância e o seu poder destrutível, em uma história fictícia que poderia muito bem ser a realidade nua e crua do Brasil, especificamente do Rio de Janeiro, que ousa mostrar os criminosos que o cinema não costuma retratar: aqueles que vivem em casas luxuosas de frente para o mar, longe do estereótipo da favela.


A trama acompanha Valério (Irandhir Santos) e Regina (Leandra Leal), um casal que mantém uma vida de riqueza em uma casa de alto padrão no Rio de Janeiro, graças a um esquema de lavagem de dinheiro baseado em máquinas caça níqueis e jogo do bicho. O negócio, herdado pela família de Valério, é comandado pelo tio dele, Linduarte (Stepan Nercessian), um poderoso bicheiro que também é dono da escola de samba Unidos da Pavuna, e é tratado por todos como um "Rei". Entretanto, Valério e Regina começam a ter problemas financeiros quando a arrecadação dos negócios diminui drasticamente, até perceberem que, na verdade, isso é reflexo de um desvio que o próprio tio tem feito nas contas.

O casal, que não possui escrúpulo algum e não mede esforços para se manter no luxuoso padrão de vida atual, planeja matar Linduarte para ficar com o negócio todo para si. No entanto, o plano deles é movido por um sentimento maior do que apenas ganância: no passado, o pai de Valério foi morto pelo próprio tio, tornando o golpe uma espécie de vingança disfarçada de disputa de poder. Porém, eles não imaginavam que Linduarte estava até o pescoço de dividas com pessoas ainda mais perigosas. Esse é só o começo de uma descontrolada espiral de eventos, envolvendo crime organizado e milícias, onde cada ação gera uma consequência drástica e irreversível.


Não há mocinhos na história. Todos os personagens são extremamente imprevisíveis, alternando entre aliados e inimigos em uma fração de segundos, numa narrativa que reforça a extrema fragilidade das relações quando o que fala mais alto é o dinheiro. E o elenco desempenha muito bem a função de dar vida a estes personagens tão impetuosos e controversos. Por fim, Os Enforcados é mais um trabalho excepcional do diretor Fernando Coimbra, que explora a hipocrisia e a falência moral do ser humano, da mesma forma que ele já havia feito no também espetacular O Lobo Atrás da Porta (2013). É um retrato da violência vista com banalidade, entregue com maestria.

segunda-feira, 17 de novembro de 2025

Crítica: Uma Batalha Após a Outra (2025)


Em Uma Batalha Após a Outra (One Battle After Another), Paul Thomas Anderson adapta novamente para as telas uma obra do escritor Thomas Pynchon, retomando a veia antissistêmica que ele já havia explorado em Vício Inerente (2014). Desta vez, o cineasta constrói um épico que combina revolução, política e drama familiar, mantendo a intensidade visceral que tanto marca a sua filmografia.


A trama começa nos apresentando ao grupo French 75, um grupo de revolucionários que busca, de maneira violenta e transgressiva, reparar injustiças sociais e enfrentar as estruturas de poder. Suas ações variam desde libertar imigrantes mantidos prisioneiros, até colocar bombas em gabinetes de políticos contrários ao aborto. São atos extremos mas com propósitos bem definidos, ainda que os meios empregados sejam prejudiciais até para eles mesmos. Logo na cena de abertura, o grupo declara guerra ao coronel Steven J. Lockjaw (Sean Penn), um homem branco, extremista e supremacista, que naturalmente assume o papel de antagonista da história. Essa perseguição entre caça e caçador vai permear todo o restante do filme, mesmo quando há um salto temporal significativo.

Dentro do French 75, conhecemos dois membros de destaque: Perfidia Beverly Hills (Teyana Taylor), que literalmente sente tesão no que faz e vê a luta armada como um combustível que dá sentido à sua vida, e Bob Ferguson (Leonardo Dicaprio), parceiro de Perfidia, que compartilha os mesmos ideais, mas parece estar no grupo mais por influência, funcionando muitas vezes como um alívio cômico por conta de sua maneira desajeitada no exercício das funções.


Quando uma sucessão de eventos em cadeia leva ao desmantelamento do grupo, o filme avança dezesseis anos no tempo. Agora, vemos Bob levando uma vida tranquila, longe da insanidade revolucionária, enquanto cria sua filha adolescente Willa (Chase Infiniti). Apesar desta aparente tranquilidade, é evidente que eles ainda vivem às sombras dos acontecimentos passados, principalmente pela paranoia de Bob, que vive em constante estado de alerta. Paralelamente, o coronel Lockjaw está tentando entrar para uma espécie de seita elitista e supremacista, com um nome tão ridículo quanto os seus princípios sectários, mas vê seu ingresso no grupo correndo perigo por acontecimentos do passado que, inevitavelmente, o colocam novamente no caminho de Bob e sua filha.

O roteiro de PTA é muito dinâmico, toda hora mudando de perspectiva, mas nunca deixando o ritmo cair. É um filme vibrante por essência, que apresenta personagens riquíssimos e muito bem construídos. DiCaprio é o protagonista condutor, e se sai bem demais neste papel tresloucado e inseguro, mas a grande força do filme talvez esteja mesmo no seus coadjuvantes. Mesmo com participações breves, Teyana Taylor e Benicio del Toro estão fantásticos em cena, bem como a jovem atriz Chase Infiniti. E há ainda Sean Penn, que retorna a um papel de grande destaque e entrega uma atuação marcante ao encarnar um vilão tão execrável quanto fascinante.


A direção de Paul Thomas Anderson chega ao seu ápice em uma cena de perseguição em uma autoestrada, que sem sombra de dúvidas é uma das cenas mais tensas e memoráveis dos últimos anos. Ao confrontar a fúria representada pelo coronel e a paranoia de Bob, Anderson cria uma metáfora contundente da América contemporânea e do seu estado constante de tensão política. No fim das contas, um dos maiores trunfos do filme reside justamente na personalidade errática de seus personagens: nenhum deles é ideal, todos carregam falhas profundas e tomam decisões controversas. E é nessa imperfeição, tão humana quanto inquietante, que o roteiro encontra sua verdadeira força.