domingo, 10 de novembro de 2024

Crítica: Ainda Estou Aqui (2024)


A ditadura militar no Brasil durou 20 anos, mas deixou cicatrizes para a eternidade. Foram centenas de mortos durante o regime, e em muitos destes casos os corpos sequer foram encontrados, deixando suas famílias aflitas e em busca de respostas por décadas. Um dos desaparecimentos mais célebres foi o do político Rubens Paiva, cuja morte só foi confirmada 40 anos depois durante depoimento de ex-militares na Comissão Nacional da Verdade, instaurada no ano de 2011 durante o governo Dilma Roussef. Baseado no livro escrito por seu filho, Marcelo Rubens Paiva, Ainda Estou Aqui conta um pouco do que aconteceu com Rubens, mas sobre a visão de sua esposa, Eunice Paiva, uma mulher batalhadora, e que virou um símbolo na luta pelos direitos humanos.


O filme inicia em 1970, durante o mandato do presidente Emílio Médici, e um ano após a instauração do AI-5, que definitivamente deu início ao período mais radical e sangrento da ditadura militar no país. Durante a vigência do AI-5, era dado ao presidente poderes absolutos para que fossem cometidas prisões arbitrárias, censura prévia, cassações de mandatos de políticos da oposição, entre outros absurdos. Foi também o período onde o exército tinha plena liberdade de prender qualquer suspeito de dissidência na rua, e onde a tortura virou um instrumento crucial para tentar capturar aqueles que iam contra o regime.

Neste ínterim, acompanhamos o dia a dia da família Paiva, com Rubens (Selton Mello), Eunice (Fernanda Torres), e seus cinco filhos. Eles moram na zona sul do Rio de Janeiro, em um sobrado próximo ao mar, e aparentemente vivem uma vida tranquila e próspera. No entanto, é possível perceber que por trás dessa suposta serenidade algo anormal está acontecendo, principalmente quando Rubens recebe telefonemas e cartas. Logo, a rotina da família é drasticamente atravessada quando Rubens, Eunice e a filha de quinze anos Eliana (Luiza Kosowski) são levados a interrogatório por homens do governo. Dos três, só Eunice e Eliana voltam para casa, e é a partir de então que começa a busca incessante para saber o paradeiro de Rubens.


Toda a construção da base familiar, tanto antes do desaparecimento de Rubens, como depois, quando Eunice precisa ser forte e lidar com tudo sozinha, é feita com maestria, e uma gama de detalhes que impressiona. É difícil não se sentir, ao longo das duas horas de duração, mais um membro daquela família. E justamente por ser tão orgânico e tão palpável, que nós acabamos sentindo na pele a agonia dos personagens. Adentrando brevemente em spoiler, não posso deixar de comentar que a cena em que Eunice volta para casa após enfrentar o interrogatório, é uma das mais impactantes que eu já vi no cinema atual.

A força motriz do roteiro é a personagem de Fernanda Torres, e não há palavras para descrever o quanto a atriz está brilhante no papel. Sua voz doce ao repreender os filhos, sua calma na fala mesmo em momentos de tensão, e até mesmo suas raras explosões, são fruto de uma construção primorosa de personagem. Além de Fernanda, é preciso dizer que todo o elenco também trabalha muito bem. Não há uma atuação sequer fora do tom, e até mesmo as crianças estão impecáveis. Junto a isso, temos uma trilha sonora apaixonante e uma direção de arte caprichosa, o que ajuda a criar ainda mais imersão nesta história dolorida, porém linda. A cereja do bolo é a participação especial de Fernanda Montenegro nos minutos finais, que nos emociona sem falar nenhuma palavra. Ela não precisa, o olhar diz tudo.


Quarenta anos depois do fim do regime militar no Brasil, ainda é importantíssimo relembrar o que aconteceu durante aquele período, principalmente para que a geração mais nova não deixe isso se repetir jamais. Enquanto existir pessoas saindo nas ruas com cartazes pedindo intervenção militar, filmes como Ainda Estou Aqui seguirão sendo necessários.

sexta-feira, 18 de outubro de 2024

Crítica: Strange Darling (2024)


Um filme que chegou de mansinho, sem grande alarde, mas que já é, pelo menos para mim, o melhor thriller do ano. Estou falando de Strange Darling, escrito e dirigido por JT Mollner, que é um respiro e tanto de originalidade no gênero, e que me deixou completamente absorto na história desde o seu primeiro minuto até a cena final. No entanto, para que a trama funcione da melhor maneira, é importantíssimo que se saiba o menos possível do filme antes dele começar, já que suas surpresas e reviravoltas são exatamente aquilo que o tornam tão fascinante, então por isso evitarei falar detalhes da história.


O que posso dizer num primeiro momento, de maneira bem superficial, é que no início somos apresentados a uma mulher (chamada apenas de Lady) correndo desesperada no meio de um matagal, aparentemente fugindo de um assassino (denominado na legenda como "the demon"). A partir de então, o filme nos conta como a história chegou até aquele momento de maneira não linear, através de seis episódios, começando pelo terceiro. Sim, os capítulos não aparecem na ordem cronológica, o que faz com a gente vá descobrindo tudo de diferentes pontos de vista, e sendo surpreendidos a cada nova cena.

A premissa parece bem simples, ao apresentar uma perseguição de "gato e rato", como já visto em muitas histórias por aí, porém o roteiro vai muito além disso, brincando com nossas perspectivas de uma maneira que, eu confesso, não lembro de ter visto nada igual. A montagem consegue nos transportar de maneira engenhosa e sólida por entre os capítulos, sendo fácil identificar em qual linha do tempo estamos, e deixando tudo muito fluído e orgânico.


Reparem que eu estou tentando, de toda forma, evitar falar sobre o roteiro, pois eu realmente não quero estragar a surpresa. Strange Darling é um filme que deixa bem claro o quanto as aparências enganam, e sobretudo, o quanto diferentes pontos de vista podem alternar a forma como uma história chega até nós. Os dois atores principais, Willa Fitgerald e Kyle Galner, estão ótimos nos papéis, e colaboram para criar um dinamismo onde ora achamos se tratar de uma coisa, ora já adquirimos outra visão, e isso a todo momento. Um grande trabalho do diretor, que pegou uma ideia "manjada" e a abrilhantou com maestria.

terça-feira, 15 de outubro de 2024

Crítica: Identidades em Jogo (2024)


A premissa da noite de jogos entre amigos que dá errado vem virando febre em filmes de terror, como nos exemplos recentes "Morte Morte Morte" e "Fale Comigo". Lançado diretamente no catálogo da Netflix, Identidades em Jogo (It's What Inside) é mais uma obra que segue o mesmo formato, e acompanha um grupo de jovens que se reencontram após um bom tempo afastados para comemorar o casamento de dois deles, até que um deles propõe um jogo diferente de tudo que já haviam visto antes.


O roteiro começa acompanhando Cyrus (James Morosini) e Shelby (Brittany O'Grady), um casal que está passando por problemas no relacionamento depois de quase uma década juntos. A relação caiu no marasmo, na monotonia, e as poucas interações que eles têm no dia a dia são insuficientes e sem graça. No meio disso, eles recebem o convite para a festa de casamento de um amigo antigo deles da faculdade, Reuben (Devon Terrell), onde reencontrarão outras pessoas desta época universitária. No caminho, Shelby dá uma olhada nas redes sociais destes outros convidados, e percebe que, aparentemente, todos possuem vidas animadas e enérgicas, enquanto a dela parece um puro suco de tédio. 

A mais badalada entre os convidados é Nikki (Alycia Debnam-Carey), que ganha a vida como influencer digital, e que desperta imediatamente a inveja de Shelby, que queria ter a vida "perfeita" como a dela. Na lista de convidados ainda tem Brooke (Reina Hardesty), Dennis (Gavin Leatherwood) e Maya (Nina Bloomgarden), além do excêntrico Forbes (David Thompson), que no passado teve um acontecimento conturbado com os outros membros do grupo, e que acabou ocasionando até mesmo a sua expulsão da faculdade na época. 

E é justamente Forbes quem chega ao local da festa com uma maleta misteriosa nas mãos, que logo sabemos se tratar do jogo que ele criou junto com amigos seus da área de tecnologia. Com uso de eletrodos conectados por fios, a máquina possibilita que os jogadores troquem de corpo por algum tempo entre si, e a intenção do jogo é tentar descobrir quem está no corpo de quem.


Abusando de elementos de terror e sci-fi, mas sem perder o tom de comédia, o roteiro vai abordando as diferentes maneiras como cada membro do grupo reage à possibilidade de ser outra pessoa por alguns minutos ou até mesmo horas. A maioria aproveita para fazer coisas que não teriam coragem, usufruindo do anonimato, e é aí que o jogo vai se tornando ao mesmo tempo perigoso, instigante e sensual. Com este artifício, afloram todos os sentimentos possíveis nos personagens, como inveja, raiva e ciúmes, e ao mostrar as diferentes personalidades mudando de corpos, o roteiro consegue extrair ótimas atuações do elenco jovem. Identidades em Jogo é um filme que brinca com a perspectiva dos espectadores, ao fazer com que também tenhamos que descobrir quem é quem no meio de toda essa confusão, e desenrola sua história sem enrolação, sendo um dos filmes mais bacanas do gênero este ano.

sábado, 12 de outubro de 2024

Crítica: A Substância (2024)


A ditadura da beleza, a auto depreciação, a procura pela perfeição estética e a pressão da sociedade em cima da aparência feminina. Estes são temas que já foram abordados em vários filmes, inclusive alguns bem recentes, mas jamais da maneira radical e grotesca como faz a diretora francesa Coralie Fargeat em A Substância, um bodyhorror para fã do subgênero nenhum botar defeito.


Elizabeth Sparkle (Demi Moore) foi uma grande estrela no passado, chegando a ganhar um Oscar por um trabalho que ninguém nem lembra mais, mas que foi o suficiente para ela ter eternizado o seu nome na calçada da fama. Agora, anos depois, ela sobrevive fazendo programas de aeróbica na televisão, até o dia em que o diretor (Dennis Quaid) decide demiti-la por a acha-la velha demais. Ela descobre isso da pior maneira, ouvindo ele dizer isso de forma nojenta para alguém ao telefone, o que a deixa terrivelmente abalada. Saindo do estúdio, ela se acidenta com seu carro, e no hospital recebe um bilhete misterioso de um dos enfermeiros. A partir de então é preciso entrar em spoilers, pois é impossível falar do filme sem abordar o mínimo da história.

Através do bilhete recebido, Elizabeth descobre a existência de uma substância criada por uma empresa tecnológica que é capaz de fazer uma cópia sua mais nova, e decide utiliza-la sem pensar muito. Ao injetar o líquido no corpo, ela literalmente dá a luz (de uma maneira absurdamente bizarra) a uma versão mais nova e perfeita dela mesma, e quem interpreta esta versão jovem de Elizabeth é Margaret Qualley, que adota o nome de Sue. O uso desta substância, no entanto, possui diversas regras que precisam ser seguidas para evitar consequências graves, e uma delas é que as duas versões precisam coexistir, sendo uma semana para cada, de forma alternada. Enquanto uma estiver vivendo perante a sociedade, a outra "descansa" desacordada no chão de algum cômodo da casa. Sue, no entanto, começa a burlar as regras para ficar mais tempo curtindo os prazeres da juventude, e Elizabeth perde o controle sobre sua própria "criação", transformando a experiência em algo cada vez mais macabro, repugnante e fora de controle.


Impressiona tamanha destreza com que a diretora trabalha o uso da câmera desde o primeiro minuto, de uma maneira bastante frenética, o que acaba criando uma atmosfera intensa e fascinante. Os cenários também são caprichosamente formidáveis, desde os espaços internos, como a enorme casa de Elizabeth ou os corredores coloridos e cheios de cores vivas do estúdio de televisão, até as tomadas externas com o panorama pulsante de uma Los Angeles efervescente.

Mais do que tudo, é preciso falar da atuação de Demi Moore, que não por coincidência, é uma atriz que viveu seu auge nos anos 1980 e 1990, mas que após ficar mais velha, perdeu espaço. Ou seja, ela conhece muito bem tudo aquilo que o roteiro se propõe a criticar. E ele critica mesmo, sem rodeios,  sendo bastante direto e reto, sem utilizar de alegorias. O papel de Moore exige uma coragem que poucas atrizes teriam, e ela faz isso com maestria.  Margaret Qualley também encanta em tela, sendo perfeita em todos os momentos em em que é exigida, quase uma força da natureza com sua beleza e carisma.


Não dá para negar que o filme possui algumas perguntas sem resposta, mas o roteiro premiado em Cannes "engole" você de tal maneira, que é impossível se apegar aos detalhes enquanto ele passa na sua frente. Sinto que a ideia da diretora era justamente não se preocupar em explicar muita coisa, principalmente em relação a origem da substância ou a maneira como os personagens reagem diante das consequências de seu "mal uso". Então se você comprar naturalmente a ideia do filme desde o início, e aceitar algumas facilitações que o roteiro apresenta, você terá, sim, uma grande experiência. 

O final catártico também é bastante divisivo, e talvez seja o único ponto do filme que realmente me perdeu um pouco, ao atingir um extremo que eu jamais imaginava ver em um filme hoje em dia. É como se Coralie pensasse "se eu já vim até aqui, porque não ir um pouco mais além?", e esse além, na minha visão, ficou um pouco forçado. Porém, reitero mais uma vez minha admiração pela coragem da diretora em fazer o filme do jeito que ela queria, sem se preocupar se seria bem aceito ou não, e pelas críticas mundo a fora e a massiva aceitação do público, creio que deu certo.

terça-feira, 8 de outubro de 2024

Crítica: Coringa: Delírio a Dois (2024)


Lançado em 2019, Coringa foi um estrondoso sucesso de público, de crítica e de premiações, sendo consagrado como um dos melhores filmes daquele ano. Não é para menos, já que o mergulho melancólico e visceral que o diretor Todd Phillips faz na mente do icônico personagem dos quadrinhos, interpretado brilhantemente por Joaquin Phoenix, possuía uma força e uma potência catártica singular. Por tudo isso, era evidente que sendo anunciada uma sequência, ela atrairia todas as atenções possíveis, principalmente por suas novas nuances: a entrada de Lady Gaga no papel de Arlequina, e o fato do novo filme ser um musical.


Extremamente divisivo, Coringa: Delírio a Dois (Joker: Folie à Deux) foi lançado comercialmente no Brasil neste começo de outubro, mas desde antes já vinha dando o que falar mundo a fora, com opiniões efusivamente negativas, que culminaram na desconfiança do público e em salas de cinema muito mais vazias do que se esperava. Por estas questões externas, confesso que fui ao cinema sem nenhuma expectativa, mas sou obrigado a dizer que para a minha surpresa, eu gostei do que vi, ainda que tenha várias ressalvas. Tudo bem, o filme não chega aos pés do primeiro e isso é evidente, mas está muito longe de ser o desastre que o pessoal vem falando por aí, e a proposta de adentrar na mente deteriorada e descolorida de Arthur Fleck (Phoenix), o palhaço e aspirante a comediante que está por trás da figura do Coringa, continua sendo fascinante à sua maneira.

Depois dos acontecimentos do primeiro filme, onde Arthur matou cinco pessoas, incluindo o âncora de televisão Murray Franklin no seu programa ao vivo, a sequência já inicia com o personagem vivendo no asilo psiquiátrico Arkham, onde está internado enquanto aguarda o seu julgamento. Sua advogada de defesa (Catherine Keener) tenta argumentar que ele é imputável em relação aos crimes por ter problemas mentais, enquanto a promotoria faz a parte dela e tenta provar o contrário. Enquanto tudo isso se desenrola nos bastidores, acompanhamos o dia a dia sombrio de Arthur na prisão, onde vemos um personagem bastante enfraquecido fisica e psicologicamente, sofrendo diariamente com insultos e abusos dos policiais e sem forças para reagir.


A primeira hora do filme segue uma estrutura bastante sóbria, até o dia em que Arthur conhece a também interna do lugar Arlequina (Lady Gaga), enquanto ela participa de uma aula de música. A aparição da personagem não apenas traz luz para a vida de Arthur, que se apaixona instantaneamente por ela (mesmo que não saiba direito o que significa isso), como também muda o tom do filme, pois deste momento em diante as cenas musicais começam a tomar conta da trama. E é justamente neste ponto de ruptura que o espectador se divide. 

Mesmo eu tendo apreciado o filme como um todo, eu não posso negar que as cenas cantadas são, na maior parte do tempo, artificiais e desnecessárias. Em muitas delas não há sequer um argumento plausível para que elas existam, a não ser o fato delas tentarem mostrar o que se passa dentro da cabeça do personagem, e depois de um tempo elas se tornar repetitivas e fora do tom. Apesar de eu ter entendido a intenção do diretor, acaba sendo uma extravagância que podia ter facilmente ficado de fora, já que a parte do tribunal na segunda metade do filme, por si só, já seria altamente satisfatória. Outro ponto negativo, é que à medida em que o Coringa vai “assumindo o lugar” de Arthur mais uma vez, agora diante do tribunal, somos levados a crer que uma nova catarse se aproxima, como aquele momento inesquecível do primeiro filme, algo que infelizmente não acontece.


O filme trabalha também a questão da idolatria, já que após os acontecimentos passados, o Coringa ganhou uma leva de admiradores. Pessoas, estas, que acompanham avidamente todo o julgamento. Além disso, ele também lançou um livro que se tornou um sucesso, e teve até um filme feito sobre sua história (aqui a metalinguagem foi certeira).  Joaquin Phoenix acaba sendo muito menos exigido nesta sequência, já que não há nenhuma novidade em relação ao que já vimos do personagem no primeiro filme, mas isso não impede que ele esteja ótimo em todos os momentos que aparece em cena. Já Lady Gaga, por sua vez, também não compromete, mas sofre pela falta de profundidade na sua personagem, que principalmente na reta final acaba "escanteada". No entanto, apesar dos defeitos evidentes, repito mais uma vez que Coringa: Delírio a Dois está longe de ser uma catástrofe, já que quando abraça a sobriedade, faz isso com muita competência. O pecado talvez tenha sido justamente o excesso.