segunda-feira, 15 de dezembro de 2025

Crítica: O Filho de Mil Homens (2025)


Adaptação do livro homônimo escrito pelo português Valter Hugo Mãe, O Filho de Mil Homens é o projeto mais audacioso do diretor Daniel Rezende, conhecido pelo excelente Bingo, O Rei das Manhãs (2017). Trazer esta história fragmentada e de grande carga emocional para as telas não era uma tarefa simples, mas Rezende se mostrou à altura do desafio, conseguindo manter a essência do livro ao explorar com sensibilidade a solidão e as dores dos seus personagens, e como os afetos humanos podem, paradoxalmente, curar e fortalecer o sentimento de pertencimento.


Contada em capítulos, a trama inicia nos apresentando a Crisóstomo (Rodrigo Santoro), um pescador que vive recluso, sem manter contato com nenhum outro morador do vilarejo onde vive. Além da melancolia que permeia sua existência, ele carrega dentro de si uma dor muito particular: a de nunca ter sido pai, um sonho que nunca chegou perto de se concretizar. O destino, por um mero acaso, coloca Camilo (Miguel Martines), um menino órfão, no seu caminho. A relação entre os dois se torna o eixo que move o restante do filme, dando início a uma rede afetiva que vai se ampliando ao longo do filme com o adendo de outros personagens.

Uma das personagens que se junta aos dois é Isaura (Rebeca Jamir), uma mulher que está fugindo de um casamento arranjado pela mãe com Antonino (Johnny Massaro), um jovem que, por sua vez, também carrega um fardo de repressão: sua verdadeira orientação sexual é negada pela rígida estrutura familiar, sendo este, inclusive, o motivo pelo qual ele foi forçado a casar com Isaura. Agora eles se unem, mas não pelo amor carnal, e sim pelo afeto de duas pessoas que, de forma fraternal, precisam preencher os vazios internos deixados por aqueles que mais deveriam acolhê-los. Junto a estes quatro personagens principais, temos vários outros secundários que tem grande peso emocional da história, como Francisca (Juliana Caldas), uma mulher com nanismo que sofre com a solidão e com o preconceito dos demais por sua condição, e que tem sua história fortemente interligada com os demais através do tempo.


O roteiro não segue uma linha temporal linear, o que poderia facilmente cair no risco da confusão, mas a habilidade do diretor em tecer as narrativas paralelas e cruzadas faz com que o espectador, ao longo do filme, consiga montar um delicado quebra-cabeça emocional. A combinação de trechos poéticos, que muitas vezes são também duros e melancólicos, com atuações sensíveis e silêncios contemplativos, confere ao filme uma profundidade rara no cinema atual. Por fim, O Filho de Mil Homens é uma obra sobre as complexas formas de amor e afeto, que nos leva a refletir sobre o que significa ser realmente visto, compreendido e amado.

quinta-feira, 11 de dezembro de 2025

Crítica: Jay Kelly (2025)


"Filmes são fragmentos de tempo", diz o protagonista em determinado momento. De certa maneira, é sobre isso que trata Jay Kelly, novo trabalho do diretor Noah Baumbach (de Histórias de um Casamento e Frances Ha), que apresenta um claro tributo a todos aqueles que vivem da sétima arte e acompanham suas vidas se entrelaçarem com as histórias que interpretam, encontrando na ficção um reflexo da própria existência.


A trama acompanha o personagem-título, Jay Kelly (George Clooney), um veterano ator de cinema que está participando das gravações de mais um filme na carreira. Enquanto ele se preocupa com as coisas que envolvem sua atuação, como suas falas e seus gestos em cena, Ron Sukenick (Adam Sandler), seu agente, corre por trás para administrar toda a parte burocrática da carreira, como cuidar da agenda corrida e apagar "incêndios" que surgem a todo momento. Apesar de seguir na ativa, Jay está cada vez sentindo mais o peso do envelhecimento e o descompasso com o mundo ao redor, e isso se intensifica ainda mais com a morte de Peter Schneider, cineasta com quem trabalhou no passado e com quem ele manteve uma profunda amizade. Schneider, esquecido pela indústria após alguns fracassos nos anos 80, torna-se um espelho melancólico de quem já viveu a glória e passou seus últimos anos encarando o esquecimento.

No enterro de Schneider, Jay reencontra figuras que ele não via há muitos anos, como Tim (Billy Crudup), que largou a carreira de ator após perder um papel em uma audição justamente para Jay, quando os dois ainda eram amigos na juventude. Durante o diálogo, descobrimos que na verdade Jay "roubou" não somente a carreira de Tim, mas também sua namorada, o que até hoje causa raiva em Tim. O encontro, carregado de ressentimento, escancara o dinamismo cruel da indústria e mostra como as relações pessoais se entrelaçam com a competição profissional, e funciona como gatilho para Jay reavaliar sua trajetória e embarcar numa viagem de autodescoberta pela Europa.


Por meio de flashbacks, muito bem elaborados por sinal, com um Jay sendo quase um espectador de sua própria vida, Baumbach costura presente e passado, revisitando o início da carreira do personagem, e tudo que ele abriu mão para alcançar o sucesso. Porém como tudo na vida, isso teve seu preço, e hoje Jay vive com remorso por ter se dedicado demais à carreira e deixado de lado algo importante e que não tem preço: a família. O filme encontra um de seus momentos mais contundentes quando ele reencontra uma das filhas e lê uma carta escrita por ela ainda criança, um bilhete que questiona como Jay podia ser um bom pai na tela, se na vida real mal estava presente. É uma ferida antiga que reaparece com delicadeza e precisão.

O roteiro também reserva espaço para aprofundar o arco de Ron, o agente que passou dezesseis anos ao lado de Jay, sacrificando vida pessoal, casamento e qualquer noção de tempo livre. Hoje, já distante da juventude, ele enxerga as renúncias com certo arrependimento, mas também com a serenidade de quem sabe que faria tudo de novo. Suas tentativas de manter contato com a esposa (Greta Gerwig), mesmo sempre ocupado, ganham contornos de uma solidão silenciosa, tão comum na engrenagem do entretenimento.


Com um senso de humor irônico e singular, Baumbach constrói um filme que funciona também como um tributo sutil à carreira de George Clooney. Isso se intensifica nos minutos finais, quando imagens de diversos filmes do ator são projetadas durante uma homenagem que Jay Kelly recebe em um grande cinema na Itália. É um gesto que mistura ficção e realidade, e que encerra o filme com a sensação de que, ao falar de um artista fictício, Baumbach está também revisitando o próprio cinema e as marcas que o tempo deixa em quem vive dele.

terça-feira, 9 de dezembro de 2025

Crítica: I Had a Legs I'd Kick You (2025)


A maternidade sempre foi uma ideia romantizada, tratada quase como um destino natural para todas as mulheres. Porém, nos últimos anos, este imaginário tem sido tensionado por debates cada vez mais abertos, impulsionados por mulheres que se sentem mais livres para recusar a pressão social e familiar de ter filhos. Porque, embora o amor materno seja profundo e inigualável, ele não elimina o peso de uma rotina que pode se tornar exaustiva, especialmente quando a mulher é deixada sozinha contra um mundo que parece nunca desacelerar. No cinema, alguns trabalhos recentes abordaram o tema com muita sensibilidade, como A Filha Perdida (2021), Tully (2018) e o impactante Daisy Diamond (2007), e If I Had Legs I'd Kick You, da diretora Mary Bronstein, é mais uma obra que mergulha nesse território. 


A trama acompanha Linda (Rose Byrne), uma terapeuta que atravessa um verdadeiro período de provação. Sua filha pequena está enfrentando uma doença que exige alimentação por sonda e cuidados contínuos, o que prende Linda a uma rotina de vigilância ininterrupta. Mas a vida além da maternidade não para: ela precisa ser atenciosa com seus pacientes, lidar com um marido física e emocionalmente ausente, e ainda enfrentar um enorme vazamento no teto da própria casa, que obriga mãe e filha a se mudarem momentaneamente para um hotel. A cada novo problema que se acumula, mais evidente se torna a ausência de qualquer rede de apoio. Linda precisa, literalmente, lidar com tudo sozinha, e mesmo sendo organizada e diligente, vê sua energia se esgotar diante de um cotidiano que parece sempre um passo além da sua capacidade.

Ainda que a direção opte por utilizar elementos surreais na narrativa, a trama tem o pé no chão no cenário realista. Uma escolha particularmente curiosa, e eficaz, é a de não mostrar o rosto da menina, apenas fragmentos: bracinhos e pernas que balançam, uma orelha atenta à canção improvisada pela mãe antes de dormir, uma mão estendida à espera de afeto. Tudo o que temos, de fato, é sua voz doce e afetuosa. Essa decisão afasta o espectador de uma comoção fácil e evita transformar a criança em objeto de piedade. O marido (Christian Slater), que trabalha longe e também só aparece por voz, surge sempre fazendo cobranças duras ao telefone, como se o que Linda fizesse dentro do "olho do furacão" nunca fosse o suficiente.


A ausência em tela dos personagens secundários faz com que Linda seja o grande centro das atenções, com a câmera sempre focada em seu rosto e suas expressões, o que exige muito de Rose Byrne, que brilha no papel. Seu prêmio de melhor atuação no último Festival de Berlim foi justíssimo, e não me surpreenderia de vê-la sendo destaque em demais premiações nestes próximos meses. Linda naturalmente ama sua filha, e justamente por isso, sente culpa quando pensamentos indesejados emergem, como o desejo de não ter sido mãe. É uma contradição dolorosa, mas muito humana. E diante da rotina sufocante, esses pensamentos só encontram espaço para serem verbalizados à frente de seu terapeuta, interpretado por Conan O'Brien. Por fim, If I Had Legs I'd Kick You é um filme sobre sobreviver enquanto tudo ao redor desaba, por dentro e por fora. Mary Bronstein evita qualquer idealização e entrega o retrato cru de uma mulher como tantas milhares ao redor do mundo, que segue adiante não por heroicidade, mas porque não existe outra alternativa senão continuar sendo forte.

sexta-feira, 5 de dezembro de 2025

Crítica: Valor Sentimental (2025)


Depois do extraordinário A Pior Pessoa do Mundo (2021), o norueguês Joachim Trier alcançou um novo patamar em sua carreira e passou a carregar expectativas cada vez maiores sobre seus trabalhos seguintes. Quatro anos depois, ele retorna às telas com Valor Sentimental (Sentimental Value), um drama familiar ovacionado no último Festival de Cannes, que atravessa gerações de uma mesma família para refletir sobre luto, memória e as cicatrizes emocionais que nos acompanham por toda a vida.


O filme abre com uma narração em off, que conta a história da casa da família Borg através de uma redação escrita pela filha mais nova. Nesse prólogo, a casa assume quase o papel de protagonista, testemunha silenciosa do crescimento das meninas Nora e Agnes, mas também do lento desmoronamento da família após o divórcio dos pais. Décadas mais tarde, é a morte da mãe das irmãs que desencadeia o reencontro com o pai, Gustav Borg (Stellan Skarsgard), ausente desde que deixara o lar.

Agora um cineasta consagrado, Gustav aproveita a ocasião para convidar Nora, hoje uma atriz de teatro reconhecida, a protagonizar seu novo filme, em um papel que, segundo ele, foi escrito especialmente para ela. Seu plano é filmar justamente na antiga casa da família, numa tentativa de transformar em criação artística as memórias guardadas (e muitas vezes enterradas) naquele espaço. Nora, porém, não está pronta para perdoá-lo tão facilmente e recusa o projeto, que acaba sendo assumido pela atriz norte-americana Rachel Kemp (Elle Fanning). A recusa de Nora não é profissional, mas emocional: uma resistência quase instintiva à ideia de permitir que o pai converta em arte a dor que ele mesmo provocou ao se ausentar por anos.

Renate Reinsve, que despontou para o mundo no filme anterior de Trier, comprova aqui que sua ascensão meteórica não foi um mero acaso. Ela entrega mais uma vez uma personagem complexa, cheia de conflitos internos e movida por silêncios que dizem tanto quanto suas falas. Ao mesmo tempo, Stellan Skarsgard compõe um Gustav ambíguo, carismático e frágil, cuja sensibilidade artística convive com a incapacidade emocional de assumir suas falhas como pai. Já Elle Fanning surge como uma espécie de contraponto luminoso: sua personagem, Rachel Kemp, encarna o olhar externo, alguém que mergulha naquela história sem saber dos traumas que pesam sobre ela.


Em termos formais, o roteiro reafirma o que já sabemos sobre Trier: sua habilidade de equilibrar leveza e profundidade, humor e dor. A direção aposta em pequenos gestos, silêncios e memórias fragmentadas que, aos poucos, constroem um mosaico emocional complexo. Ao mesmo tempo, insere pequenos alívios cômicos, como a cena em que Gustav dá alguns DVD's para o neto pequeno com histórias adultas como Irreversível de Gaspar Noé, ou ainda quando ele precisa participar de uma desastrosa entrevista, marcada pela financiadora do seu filme, a Netflix (que tem sua maneira de fazer negócios explicitamente criticada). Por fim, Valor Sentimental perde um pouco o ritmo na parte final, mas não deixa de ser um filme interessantíssimo, e um verdadeiro estudo sobre a própria natureza do cinema: essa arte que tenta capturar o que escapa, que transforma dor em imagem, e que acima de tudo eterniza lembranças.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2025

Crítica: Bugonia (2025)


Pode-se falar qualquer coisa do cineasta Yorgos Lanthimos, até mesmo detestar seus filmes, mas chamá-lo de convencional está fora de cogitação. A mente fértil de Lanthimos, somada a toda liberdade criativa que ele costuma receber dos seus produtores, resultou numa filmografia única e ao mesmo tempo bastante divisiva. Eu mesmo tenho essa relação ambígua com suas obras; amo algumas, como Pobres Criaturas, e abomino outras, como o seu último trabalho Tipos de Gentileza. O fato é que, ao iniciar um filme de Lanthimos, o espectador nunca sabe o que esperar, e com Bugonia não é diferente.


A trama acompanha Teddy Gatz (Jesse Plemons), um apicultor que mora com seu primo Don (Aidan Delbis) e é completamente dominado por teorias conspiratórias. Uma delas o leva a acreditar cegamente que Michelle Fuller (Emma Stone), a CEO de um grande empresa farmacêutica, é uma alienígena que está na Terra como parte de um plano maior para exterminar a raça humana. Ela também é vista por ele como grande culpada pela doença da sua mãe, que está internada entre a vida e a morte no hospital local.

Decididos a frear as ações dos supostos emissários de outro mundo, Teddy e Don sequestram Michelle, determinados a fazer com ela os leve até o seu "líder supremo". Humilhada, presa e obrigada até mesmo a usar um creme pelo corpo todo que, segundo Teddy, impediria ela de pedir socorro aos seus líderes, Michelle começa a usar toda a sua inteligência para jogar o jogo deles, na tentativa de escapar e sobreviver.

O filme mistura elementos de suspense, ficção científica e até mesmo pitadas de comédia satírica, como na cena em que Teddy obriga seu primo, um rapaz que literalmente não tem voz ativa para nada e só vai na onda, a usar um terno na primeira aparição de frente com a CEO, evidenciando o quão a sério ele levava aquela missão delirante. O roteiro inteligentemente faz com que nós espectadores também adentremos de cabeça na espiral de insanidade e paranoia dos personagens, não sabendo exatamente no que acreditar. É justamente essa "semente" da dúvida que torna o filme instigante até o final.


Um dos trunfos do filme é Emma Stone, em sua sexta parceria com o diretor, que já lhe rendeu até mesmo o Oscar de melhor atriz no ano passado. Ela se sai incrivelmente bem em mais um papel exótico, que exige não somente sua excelente carga dramática, mas também muita entrega física. No entanto, quem rouba a cena é Jesse Plemons, para mim um dos atores mais subestimados do cinema atual, que mais uma vez tem uma atuação de altíssimo nível ao interpretar um dos personagens mais enigmáticos do ano. Alternando entre o assustador e o cômico, Plemons dosa bem todos os gêneros aos quais o filme visita, dando vida a um psicótico que simplesmente não mede esforços para levar suas convicções até o fim. Por fim, Bugonia é mais um filme excêntrico do diretor que desafia e provoca o espectador, e que mesmo soando exagerado em alguns momentos, jamais se mostra desinteressante.