terça-feira, 23 de dezembro de 2025

Crítica: Vivo ou Morto: Um Mistério Knives Out (2025)


Não sou um entusiasta da saga Knives Out, criada por Rian Johnson, e acho os dois primeiros filmes até mesmo sem graça, para falar a verdade. No entanto, preciso dar o braço a torcer: neste terceiro capítulo da franquia, que recebeu o nome de Vivo ou Morto (Wake Up Dead Man), Johnson acertou em cheio. O tom do suspense segue o mesmo, mas a trama, que desta vez tem a igreja católica como pano de fundo, é concebida de uma forma muito mais organizada e instigante que nos filmes anteriores, o que faz com que as reviravoltas se tornem muito mais orgânicas e, sobretudo, envolventes.

A trama traz de volta o detetive Benoit Blanc (Daniel Craig), que desta vez é convocado para investigar um crime ocorrido em uma pequena cidade interiorana. O ponto central é a morte de um religioso poderoso, que se considera quase como um "Deus" na Terra, e tem seus seguidores mantidos na linha dura,numa relação que se assemelha a de uma seita. Interpretado com imponência por Josh Brolin, Jefferson Wicks se vê ameaçado quando um padre mais novo, interpretado por Josh O'Connor, chega ao local para compartilhar as missas, trazendo uma visão mais moderna e menos autoritária da fé. A "disputa de território" entre os dois cria uma rixa interna na igreja, que culmina na morte do sacerdote mais velho.

De maneira óbvia, o principal suspeito acaba sendo o padre recém chegado. No entanto, o detetive Blanc rapidamente percebe que a solução não é tão simples e que o jovem religioso talvez seja o personagem menos culpado de toda a história. Logo, todos os membros da igreja passam a figurar como potenciais suspeitos. Entre eles temos um médico recém-separado (Jeremy Renner), um youtuber polêmico (Daryl McCormack) e sua irmã (Kerry Washington), uma jovem violoncelista que possui uma doença que dificulta sua mobilidade (Caille Spaeny), um escritor em crise que está escrevendo a biografia de Wicks (Andrew Scott) e por fim Martha (Glenn Close), uma presença quase fantasmagórica que acompanhou o crescimento da igreja local desde os primórdios e conhece todos os segredos escondidos por trás de suas paredes silenciosas.

Rian Johnson dedica bastante tempo de tela à apresentação desses personagens, permitindo que suas motivações e contradições emerjam com calma. O mistério, assim, se constrói como um quebra-cabeça, onde o espectador é convidado a montar as peças junto com o detetive. E se eu sempre critiquei as atuações do Daniel Craig, aqui novamente preciso dar um passo atrás e reconhecer que finalmente o ator encontrou o tom certo para o personagem, equilibrando excentricidade e sagacidade sem exageros. 

Ainda assim, o grande destaque do filme é Josh O’Connor, que confirma o excelente momento de sua carreira. Sua atuação confere camadas de ambiguidade moral e humanidade ao padre jovem, tornando-o uma figura central não apenas para o mistério, mas também para os dilemas éticos que o filme propõe, principalmente em discussões árduas com o próprio Blanc, um ateu convicto, sobre os "desígnios" de Deus e os rumos da igreja católica.

É inegável que Vivo ou Morto acaba sendo o capítulo mais maduro e interessante da franquia até agora. Além de uma narrativa mais coesa e empolgante, o filme se destaca pelo apuro visual, com uma direção que explora a arquitetura da igreja e os espaços fechados como extensões do próprio mistério, reforçando a sensação constante de opressão. O resultado é um trabalho mais sóbrio, e mais interessado em discutir os temas que traz à tona, o que faz deste terceiro capítulo não apenas um bom entretenimento, mas um avanço real dentro da série de filmes.

Crítica: O Bom Bandido (2025)


Quase dez anos após seu último longa-metragem, o cineasta Derek Cianfrance (de Namorados para Sempre e O Lugar Onde Tudo Termina) retorna às telas com O Bom Bandido (Roofman), filme inspirado em uma história real que transita com surpreendente leveza entre o drama moral, a comédia e até mesmo o romance. O resultado é uma obra que conquista menos pela engenhosidade de sua trama e mais pelo carisma irresistível de seu protagonista.


O filme conta a história de Jeffrey Manchester (interpretado por Channing Tatum), um veterano do exército americano que no final dos anos 1990 ficou conhecido nos noticiários como "Roofman" (o homem do telhado, em uma tradução literal). Jeffrey cometeu dezenas de assaltos em redes de fast food como Mc Donald's e Burguer King, sempre entrando pelo telhado dos estabelecimentos. Apesar de apontar uma arma para os funcionários e clientes dos locais, ele tinha uma característica que ficou marcada: era sempre gentil e educado com todas as vítimas, o que conferiu uma fama curiosamente ambígua a ele.

Após ser capturado pela polícia e condenado a 45 anos de prisão, ele usa toda sua inteligência e astúcia para fugir do local, e decide se esconder em uma enorme loja de brinquedos. Durante o dia, permanece oculto em meio ao caos do comércio, e à noite, percorre livremente seus corredores vazios, como se estivesse suspenso entre dois mundos. É nesse limbo que ele conhece Leigh (Kirsten Dunst), uma mãe solo de duas filhas que é funcionária do local. Sob a identidade falsa de John, Jeffrey se aproxima dela, constrói um vínculo afetivo com as crianças, passa a frequentar a igreja que Leigh congrega e, por um breve período, experimenta a ilusão de uma vida comum, aquela que sempre desejou, mas nunca soube como alcançar.

A grande força do filme está na construção de seu protagonista. Ainda que não haja qualquer tentativa de justificar a entrada para o mundo do crime, Cianfrance opta por observar Jeffrey com empatia, explorando suas contradições internas. Sem recursos financeiros e emocionalmente perdido, ele acredita estar fazendo o melhor possível para oferecer uma vida digna à filha e tentar salvar um casamento já condenado. Há, nesse impulso, algo de genuinamente humano, ainda que profundamente equivocado, e suas escolhas vem acompanhadas de perdas irreversíveis, reforçando o caráter trágico de sua jornada.


A proposta do enredo, para funcionar, precisava de um ator carismático e com capacidade para dar conta das contradições do personagem, e Channing Tatum acaba sendo o nome certo. O roteiro, embora recorra a certas conveniências narrativas, funciona naquilo que se propõe.. Por fim, O Bom Bandido é, ao mesmo tempo, o retrato de um criminoso improvável e uma reflexão melancólica sobre família, solidão e arrependimentos. Uma grata surpresa no ano.

Os 10 Filmes que Mais me Decepcionaram em 2025

Como o próprio título já adianta, este lista contém aqueles filmes lançados no Brasil em 2025 ao qual eu esperava alguma coisa, seja pelos burburinhos no lançamento, seja pelos nomes envolvidos na produção, e que no final me deixaram bastante decepcionado. Segue ela:

10º Morra, Amor, de Lynne Ramsay

Muita expectativa se criou em torno deste filme, principalmente depois de Jennifer Lawrence ter tido sua atuação bastante elogiada no último Festival de Cannes. De fato, a atriz está muito bem no papel de uma mulher desequilibrada e paranoica (parece que ela nasceu pra fazer personagens assim). Porém, todo o resto é uma desordem completa, começando pelo roteiro, que não deixa claro suas intenções. Descartável, e facilmente esquecível.

9º O Macaco, de Oz Perkins

Oz Perkins chamou a atenção de todos no ano passado com o excêntrico Longlegs, e a expectativa para O Macaco acabou sendo grande, sobretudo por se tratar da adaptação de um conto de Stephen King. Infelizmente, o resultado na tela foi um fracasso. Um filme que não sabe se quer ser terror ou comédia, e mistura os dois gêneros de forma bagunçada.

8º Mickey 17, de Bong Joon-ho

É realmente uma pena ter o nome de Bong Joon-ho nesta lista, mas o fato é que desta vez o cineasta sul-coreano errou, e errou feio. Depois de vários adiamentos, finamente saiu do papel Mickey 17, que prometia ser a volta triunfante do diretor de Parasita para as telas. Mas o que se viu foi uma ficção científica recheada de situações caricatas, e que no fim de tudo deixa um enorme sentimento de frustração.

7º Código Preto, de Steven Soderbergh

O prêmio de suspense completamente descartável do ano vai para Código Preto, do veterano Steven Soderbergh. A trama de espionagem, no papel, parece ser extremamente intrigante, mas na prática, não funciona em momento algum, nem mesmo com um elenco de peso envolvido, com nomes como Cate Blanchet e Michael Fassbender.

6º Maria Callas, de Pablo Larraín

Depois de filmar as histórias de Pablo Neruda, de Jackie Kennedy e da princesa Diana, o chileno Pablo Larraín continua sua saga pelas cinebiografias, desta vez contando a história da cantora Maria Callas, uma das sopranos mais famosas do século XX. No entanto, o que temos em tela é um filme bastante modorrento, e uma atuação forçada ao extremo da atriz Angelina Jolie, que não consegue ser crível em momento algum.

5º A Luz, de Tom Tykwer

Responsável por obras já consagradas, como Corra, Lola, Corra (1998), Perfume - A História de um Assassino (2006) e A Viagem (2012), o cineasta alemão Tom Tykwer errou feio a mão com A Luz, filme que abriu o ultimo Festival de Berlim, e que por sinal foi completamente rechaçado na sessão. Não é para menos, o filme tenta fazer várias críticas à sociedade moderna, mas empaca na confusão de ideias, que não são claras e se embaralham em um roteiro indigesto e confuso.

4º Babygirl, de Halina Reijn

Babygirl é um filme que prometia ser ousado, mas teve medo da sua própria ousadia e acabou sendo apenas mais um filme genérico e sem sal. Uma tentativa de drama com pitadas de um thriller erótico, e que não consegue acertar em nenhum dos gêneros que aposta. Personagens sem carisma e colocados em situações que beiram o ridículo, em um roteiro completamente entediante.

3º Eddington, de Ari Aster

Eu costumava dizer que Ari Aster era um diretor que dividia opiniões, mas depois de Beau Tem Medo, e agora principalmente após Eddington, acho que ele não divide mais: todos concordam que ele se perdeu na sua própria prepotência artística. Aster parece não saber mais como aproveitar toda a liberdade narrativa que ganha em seus filmes, e mais uma vez apresenta um roteiro insosso, repleto de sátiras sociais confusas e exageradas, e uma paranoia caótica sem propósito.

2º O Esquema Fenício, de Wes Anderson

O estilo cinematográfico singular de Wes Anderson já cansou há muito tempo. Não é de hoje que seus filmes se tornaram enfadonhos, se preocupando demais com a estética e com nomes renomados no elenco, e deixando de lado o que realmente importa: o enredo. Chato, entediante e repetitivo, Esquema Fenício é mais uma grande decepção do diretor.

1º Honey, Não!, de Ethan Coen

Honey, Não! é mais um desastre na carreira solo de Ethan Coen, depois do também terrível Bonecas em Fúria (2024). Desde que passou a fazer seus próprios filmes, sem a parceria do irmão Joel, Ethan não acertou uma sequer. Com um tom de comédia abestalhado, o filme é um emaranhado de situações vexatórias, e coloca o nome do diretor pelo segundo ano seguido na lista dos piores filmes que assisti.

segunda-feira, 22 de dezembro de 2025

Crítica: A Melhor Mãe do Mundo (2025)


A coragem de uma mulher vítima de violência doméstica, que resolve finalmente denunciar o agressor, mesmo que a sua vida e a de seus filhos mude do avesso. É sobre isso que fala A Melhor Mãe do Mundo, novo filme da diretora Anna Muylaert (de Que Horas Ela Volta?), que novamente traz uma forte personagem feminina como centro da narrativa.


A trama inicia com Maria da Graça (Shirley Cruz), conhecida como Gal, dentro de uma delegacia da polícia civil, em um dos momentos mais difíceis de sua vida: ela quer solicitar uma medida protetiva contra seu companheiro, Leandro (Seu Jorge), após mais uma agressão física sofrida dentro de casa. Mesmo envergonhada, e até mesmo se sentindo culpada por estar fazendo isso, ela está decidida a seguir em frente, já que a situação em casa chegou no limite do tolerável.

Catadora de materiais recicláveis, Maria deixa para trás a casa onde vivia com os dois filhos pequenos, puxando sua carrocinha pelas ruas de São Paulo. Porém, com a intenção de disfarçar a dolorosa situação aos filhos, ela resolve fingir que eles estão em aventura, "acampando" pelas ruas da cidade, numa maneira de suavizar para os pequenos o drama vivido. O objetivo é chegar até a casa de uma prima, que mora do outro lado da cidade, numa travessia física que espelha o percurso emocional da protagonista.


Um dos maiores acertos de Muylaert é recusar qualquer idealização. A Melhor Mãe do Mundo não se constrói como uma fábula edificante, tampouco transforma Gal em símbolo ou heroína. Ela é forte e combativa, mas também é falha, contraditória e vulnerável. Uma delas é perdoar o marido quando ele consegue encontrá-los após a fuga de casa. Essa complexidade se evidencia quando, após ser encontrado pelo marido, Gal vacila e acaba cedendo. O filme, então, expõe com crueza o dilema moral enfrentado por mulheres em relações abusivas: mesmo independentes e conscientes da violência que sofrem, muitas permanecem presas a vínculos afetivos inexplicáveis, frequentemente marcados pelo medo, pela dependência emocional e pela esperança de mudança.

Não há julgamento por parte da direção, apenas a exposição de uma realidade dura, dolorosa e frequentemente incompreensível para quem observa de fora. Muylaert filma esse retorno com sobriedade, evitando explicações fáceis ou discursos didáticos, apostando na ambiguidade emocional da personagem. Nesse contexto, a presença de Leandro ganha contornos ainda mais perturbadores graças à atuação de Seu Jorge. O ator constrói um personagem passivo-agressivo, que alterna ameaças veladas e apelos sentimentais, manipulando Gal com uma falsa fragilidade. Sua performance evita caricaturas e torna o agressor ainda mais inquietante, justamente por sua aparente normalidade. Shirley Cruz também tem uma presença inquietante em cada cena, bem como as crianças, que juntas trazem uma fluidez elogiável.


Por fim, A Melhor Mãe do Mundo se afirma como um filme profundamente humano, interessado em compreender os mecanismos invisíveis que mantêm tantas mulheres presas a ciclos de violência. O resultado é um retrato sensível e incômodo de uma maternidade atravessada pelo medo, pela sobrevivência e pela dignidade possível. Anna Muylaert reafirma, assim, seu cinema atento às desigualdades sociais e às subjetividades femininas, entregando uma obra necessária, desconfortável e urgente.

segunda-feira, 15 de dezembro de 2025

Crítica: O Filho de Mil Homens (2025)


Adaptação do livro homônimo escrito pelo português Valter Hugo Mãe, O Filho de Mil Homens é o projeto mais audacioso do diretor Daniel Rezende, conhecido pelo excelente Bingo, O Rei das Manhãs (2017). Trazer esta história fragmentada e de grande carga emocional para as telas não era uma tarefa simples, mas Rezende se mostrou à altura do desafio, conseguindo manter a essência do livro ao explorar com sensibilidade a solidão e as dores dos seus personagens, e como os afetos humanos podem, paradoxalmente, curar e fortalecer o sentimento de pertencimento.


Contada em capítulos, a trama inicia nos apresentando a Crisóstomo (Rodrigo Santoro), um pescador que vive recluso, sem manter contato com nenhum outro morador do vilarejo onde vive. Além da melancolia que permeia sua existência, ele carrega dentro de si uma dor muito particular: a de nunca ter sido pai, um sonho que nunca chegou perto de se concretizar. O destino, por um mero acaso, coloca Camilo (Miguel Martines), um menino órfão, no seu caminho. A relação entre os dois se torna o eixo que move o restante do filme, dando início a uma rede afetiva que vai se ampliando ao longo do filme com o adendo de outros personagens.

Uma das personagens que se junta aos dois é Isaura (Rebeca Jamir), uma mulher que está fugindo de um casamento arranjado pela mãe com Antonino (Johnny Massaro), um jovem que, por sua vez, também carrega um fardo de repressão: sua verdadeira orientação sexual é negada pela rígida estrutura familiar, sendo este, inclusive, o motivo pelo qual ele foi forçado a casar com Isaura. Agora eles se unem, mas não pelo amor carnal, e sim pelo afeto de duas pessoas que, de forma fraternal, precisam preencher os vazios internos deixados por aqueles que mais deveriam acolhê-los. Junto a estes quatro personagens principais, temos vários outros secundários que tem grande peso emocional da história, como Francisca (Juliana Caldas), uma mulher com nanismo que sofre com a solidão e com o preconceito dos demais por sua condição, e que tem sua história fortemente interligada com os demais através do tempo.


O roteiro não segue uma linha temporal linear, o que poderia facilmente cair no risco da confusão, mas a habilidade do diretor em tecer as narrativas paralelas e cruzadas faz com que o espectador, ao longo do filme, consiga montar um delicado quebra-cabeça emocional. A combinação de trechos poéticos, que muitas vezes são também duros e melancólicos, com atuações sensíveis e silêncios contemplativos, confere ao filme uma profundidade rara no cinema atual. Por fim, O Filho de Mil Homens é uma obra sobre as complexas formas de amor e afeto, que nos leva a refletir sobre o que significa ser realmente visto, compreendido e amado.