Quantos sonhos existem
dentro de cada casa da periferia? E quantos destes sonhos ganham a
oportunidade de se tornarem realidade? É esse Brasil, de gente
trabalhadora e com muita vontade de lutar por dias melhores, que é
mostrado em "Marte Um", primeiro filme solo do cineasta mineiro Gabriel
Martins e que foi escolhido para representar o país no Oscar 2022.
O
filme se passa em um bairro periférico de Belo Horizonte e acompanha
uma família que luta diariamente para se manter firme diante das
dificuldades. A mãe (Rejane Faria) trabalha como faxineira, e o pai
(Carlos Francisco) como porteiro de um condomínio. A filha mais velha
(Camilla Damião) já faz parte de uma geração que consegue sonhar um
pouco mais alto, e graças a uma bolsa na faculdade está prestes a
realizar o sonho de se formar em Direito. Já o filho mais novo,
"Deivinho" (Cícero Lucas), passa os dias assistindo vídeos de ciências
no computador e sonha se tornar um astrofísico, sobretudo para fazer
parte da missão "Marte Um" que em 2030 pretende colonizar o planeta
vermelho.
Depois de serem devidamente apresentados, passamos a
acompanhar a rotina da família, tanto em seus trabalhos e estudos como
dentro de casa, e a grande força do filme vem justamente dessa dinâmica.
É tudo muito sensível e humano nessas relações, e isso graças às
atuações incríveis de todo o elenco. Vários acontecimentos também vão
dissecando dramas internos dos personagens e trazendo novas situações. A
mãe cai em uma dessas pegadinhas de televisão, e isso mexe com ela de
uma forma inesperada. A filha se apaixona por uma outra mulher (Ana
Hilário), e tenta, pouco a pouco, fazer com que a família entenda e
aceite sua sexualidade. O pai, apaixonado por futebol desde sempre, quer
que o filho menor se torne um jogador de sucesso, e pra isso chega a
passar dos limites nas cobranças. Por se tratar de um filme extremamente
orgânico, é notório que durante as duas horas de duração apareçam tanto
as qualidades como os defeitos de cada personagem, e isso é precioso
demais, pois mostra como todos nós temos erros e acertos na mesma medida
e vamos nos moldando conforme aprendemos coisas novas com a vida.
O roteiro possui muita força nos detalhes, como por exemplo, quando a mãe fica doente e é uma médica preta que lhe atende, fugindo dos estereótipos que vemos muitas vezes nos filmes e deixando claro que hoje isso é possível graças a políticas de inclusão criadas anos atrás. Outro detalhe que chama atenção é quando Deivinho vê o preço do ingresso para assistir uma palestra sobre ciências, mostrando como o acesso a eventos desse tipo são, na grande maioria das vezes, reservados apenas a pessoas com alto valor aquisitivo. Eu gostei muito da forma como o diretor trabalha esses temas necessários sem ser insistentemente panfletário, mas de um jeito bem natural. Os cenários também são muito bem construídos, e é legal acompanhar o trabalho feito na casa da família, desde a decoração até suas imperfeições.
Por falar em imperfeições, o filme também tem as suas. Algumas cenas me pareceram um pouco fora de contexto, como as que aparecem o influencer "Tokinho", ou longas demais, como uma cena dentro de uma festa. Tem ainda um crime cometido no condomínio onde o pai trabalha que para mim soou bem problemático na narrativa e talvez tenha sido um ponto fora da curva. Porém, no geral, é um filme muito necessário, importante e inclusivo, que retrata um Brasil que muitas vezes não tem voz mas é a maioria.
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