sexta-feira, 28 de novembro de 2025

Crítica: Foi Apenas um Acidente (2025)


O cineasta Jafar Panahi carrega uma trajetória marcada por resiliência e enfrentamento aos regimes políticos do Irã, conhecidos por suas repressões e arbitrariedades contra o povo iraniano. Há anos proibido de filmar em seu próprio país e alvo de prisões sucessivas, Panahi sempre encontrou meios de fazer sua voz ecoar pelo mundo através de seus filmes, mesmo nos períodos em que esteve atrás das grades. Seu último longa, No Bears (2023), trazia o próprio diretor como personagem principal de uma narrativa fictícia, mas que não deixava de mostrar a dura realidade do país, um elemento recorrente em suas obras independente se documentais ou ficcionais.


Foi Apenas um Acidente (It Was Just an Accident) apresenta um dilema moral instigante e de grande força emocional. Na trama, acompanhamos Eghbal (Ebrahim Azizi), que está viajando com sua filha e esposa em um clima bastante descontraído, até que ele atropela um cachorro na estrada. Apesar do susto, ele segue em frente com o carro, mas logo precisa parar novamente por causa de problemas mecânicos. Ali, o caminho de Eghbal cruza com o de Vahid (Vahid Mobasseri), um homem que, de imediato, demonstra inquietação e convicção de já conhecer aquele motorista de algum lugar. De onde, ainda não sabemos. A tensão cresce rapidamente quando Vahid passa a observar Eghbal, a segui-lo até sua casa e acompanhar seus passos com uma certa obsessão, e Panahi conduz esse suspense inicial com precisão, sem pressa em revelar suas peças.

A revelação quando vêm, no entanto, é devastadora. Vahid acredita fortemente que Eghbal é o inspetor do governo responsável por torturá-lo anos antes na prisão, fato que destruiu para sempre sua vida e que o faz carregar traumas pesados até os dias de hoje. Dividido entre o desejo de tomar uma atitude drástica e o medo de cometer uma injustiça, ele procura outros ex-prisioneiros que teriam sofrido nas mãos daquele homem, buscando confirmação. Assim entram em cena Shiva (Mariam Afshari), Goli (Hadis Pakbaten) e Hamid (Mohamad Ali Elyasmehr), cada qual respondendo ao passado da sua maneira: alguns pregando cautela, outros ansiando por vingança imediata. As discussões e tensões entre eles, impulsionadas por memórias, dores e visões divergentes de justiça, movem o restante da narrativa, que se desenrola ao longo de um único dia, e que a cada nova cena traz um elemento novo para discussão. O que os une, contudo, é a cicatriz coletiva deixada pela violência estatal e a sensação de que a justiça formal jamais lhes devolveu aquilo que perderam.


Nenhum desses personagens tem instinto criminoso, isso fica bem claro, e é justamente aí que reside o cerne do filme. Se o sistema que deveria punir os abusadores se omitiu, ou pior, legitimou seus atos, teriam as vítimas o direito moral de revidar? Mais do que isso, seria Eghbal realmente o algoz que merece ser responsabilizado, ou ele era apenas alguém que cumpria ordens dentro de um mecanismo muito maior? Panahi transforma essas perguntas em cinema pulsante, convidando o espectador a enfrentar, junto com eles, o peso ético de uma resposta que nunca é simples.

O que o governo fez a estas pessoas não foi um acidente, e o que eles estão fazendo em retaliação, também, não é. São atos que geram consequências, numa espiral de acontecimentos que mostra como funciona o ciclo da violência e da opressão. Vencedor da Palma de Ouro em Cannes este ano, Foi Apenas um Acidente é um dos filmes mais interessantes do ano, que reafirma a potência de Panahi como contador de histórias que expõem as fraturas mais profundas da sociedade iraniana.

quinta-feira, 27 de novembro de 2025

Crítica: Nouvelle Vague (2025)


Mais do que um movimento cinematográfico, a Nouvelle Vague, surgida na França entre o final da década de 1950 e início da década de 1960, marcou uma geração e redefiniu, de maneira profunda, a forma de se fazer cinema no país. Inspirado pelo neorrealismo italiano, o movimento rompeu com convenções narrativas, apresentando técnicas inovadoras para a época, privilegiando filmagens leves, abusando dos improvisos e da liberdade formal, e trazendo uma aproximação radical dos filmes com a vida real.


Ao recriar as gravações de Acossado (1960), de Jean-Luc Godard, um dos ícones daquele período, o cineasta Richard Linklater nos entrega um trabalho que soa como um "filme da Nouvelle Vague perdido em pleno século XXI". As composições dos planos e os movimentos de câmera, a grafia das legendas, os figurinos e até as marcantes frases de impacto entre os diálogos, evocam com precisão o espírito e a estética daqueles filmes lançados há mais de sessenta anos atrás.

Na trama, acompanhamos o jovem Godard (Guillaume Marbeck), então crítico de cinema da Cahiers du Cinéma, tomado pelo desejo irreprimível de fazer seu primeiro filme. O sucesso recente de François Truffaut (Adrien Rouyard) e Claude Chabrol (Antoine Besson) desperta nele um misto de admiração, insegurança e uma leve sensação de estar ficando para trás, tensão que alimenta sua busca por uma voz própria neste meio. Mesmo inexperiente, ele consegue que seu amigo e produtor Georger de Beauregard (Bruno Dreyfürst) financie seu primeiro longa, sobre a história de um casal de criminosos, obra que viria a se tornar um marco do cinema moderno.


Se a ideia era recriar toda a atmosfera efervescente que pulsava para além das telas, Linklater conseguiu isso com maestria. A lista de referências da época é imensa, e vai desde os diretores Jacques Rivette (Jonas Marmy), Jean-Pierre Melville (Tom Novermbre), Agnès Varda (Roxane Rivière) e Eric Rohmer (Côme Thieulin), até atores como Jean-Paul Belmondo (Aubry Dullin) e Jean Seberg (Zoey Deutch), que por sinal formam o casal protagonista do filme de Godard. Isso de fato enriquece a obra, principalmente para quem conhece a importância destes nomes para a história do cinema.

Filmes sobre "fazer filmes" já costumam ser cativantes para quem é apaixonado pela sétima arte, e o encanto do filme de Linklater reside justamente nos pormenores de um set de filmagens, como nas dificuldades de rodar um filme com poucos recursos, nas "gambiarras", nas tensões e nos improvisos. Algo que de certa forma lembra Uma Noite Americana (1973), clássico do diretor François Truffaut. Por fim, Nouvelle Vague não é necessariamente um filme sobre Godard, ou nem mesmo especificamente sobre Acossado, mas sim, sobre o nascimento de uma vertente cinematográfica e o instante exato em que uma geração de cineastas encontrava uma maneira própria de olhar o mundo e traduzir esse olhar através de imagens.

terça-feira, 18 de novembro de 2025

Crítica: Os Enforcados (2024)


Uma crônica feroz sobre a ganância e o seu poder destrutível, em uma história fictícia que poderia muito bem ser a realidade nua e crua do Brasil, especificamente do Rio de Janeiro, que ousa mostrar os criminosos que o cinema não costuma retratar: aqueles que vivem em casas luxuosas de frente para o mar, longe do estereótipo da favela.


A trama acompanha Valério (Irandhir Santos) e Regina (Leandra Leal), um casal que mantém uma vida de riqueza em uma casa de alto padrão no Rio de Janeiro, graças a um esquema de lavagem de dinheiro baseado em máquinas caça níqueis e jogo do bicho. O negócio, herdado pela família de Valério, é comandado pelo tio dele, Linduarte (Stepan Nercessian), um poderoso bicheiro que também é dono da escola de samba Unidos da Pavuna, e é tratado por todos como um "Rei". Entretanto, Valério e Regina começam a ter problemas financeiros quando a arrecadação dos negócios diminui drasticamente, até perceberem que, na verdade, isso é reflexo de um desvio que o próprio tio tem feito nas contas.

O casal, que não possui escrúpulo algum e não mede esforços para se manter no luxuoso padrão de vida atual, planeja matar Linduarte para ficar com o negócio todo para si. No entanto, o plano deles é movido por um sentimento maior do que apenas ganância: no passado, o pai de Valério foi morto pelo próprio tio, tornando o golpe uma espécie de vingança disfarçada de disputa de poder. Porém, eles não imaginavam que Linduarte estava até o pescoço de dividas com pessoas ainda mais perigosas. Esse é só o começo de uma descontrolada espiral de eventos, envolvendo crime organizado e milícias, onde cada ação gera uma consequência drástica e irreversível.


Não há mocinhos na história. Todos os personagens são extremamente imprevisíveis, alternando entre aliados e inimigos em uma fração de segundos, numa narrativa que reforça a extrema fragilidade das relações quando o que fala mais alto é o dinheiro. E o elenco desempenha muito bem a função de dar vida a estes personagens tão impetuosos e controversos. Por fim, Os Enforcados é mais um trabalho excepcional do diretor Fernando Coimbra, que explora a hipocrisia e a falência moral do ser humano, da mesma forma que ele já havia feito no também espetacular O Lobo Atrás da Porta (2013). É um retrato da violência vista com banalidade, entregue com maestria.

segunda-feira, 17 de novembro de 2025

Crítica: Uma Batalha Após a Outra (2025)


Em Uma Batalha Após a Outra (One Battle After Another), Paul Thomas Anderson adapta novamente para as telas uma obra do escritor Thomas Pynchon, retomando a veia antissistêmica que ele já havia explorado em Vício Inerente (2014). Desta vez, o cineasta constrói um épico que combina revolução, política e drama familiar, mantendo a intensidade visceral que tanto marca a sua filmografia.


A trama começa nos apresentando ao grupo French 75, um grupo de revolucionários que busca, de maneira violenta e transgressiva, reparar injustiças sociais e enfrentar as estruturas de poder. Suas ações variam desde libertar imigrantes mantidos prisioneiros, até colocar bombas em gabinetes de políticos contrários ao aborto. São atos extremos mas com propósitos bem definidos, ainda que os meios empregados sejam prejudiciais até para eles mesmos. Logo na cena de abertura, o grupo declara guerra ao coronel Steven J. Lockjaw (Sean Penn), um homem branco, extremista e supremacista, que naturalmente assume o papel de antagonista da história. Essa perseguição entre caça e caçador vai permear todo o restante do filme, mesmo quando há um salto temporal significativo.

Dentro do French 75, conhecemos dois membros de destaque: Perfidia Beverly Hills (Teyana Taylor), que literalmente sente tesão no que faz e vê a luta armada como um combustível que dá sentido à sua vida, e Bob Ferguson (Leonardo Dicaprio), parceiro de Perfidia, que compartilha os mesmos ideais, mas parece estar no grupo mais por influência, funcionando muitas vezes como um alívio cômico por conta de sua maneira desajeitada no exercício das funções.


Quando uma sucessão de eventos em cadeia leva ao desmantelamento do grupo, o filme avança dezesseis anos no tempo. Agora, vemos Bob levando uma vida tranquila, longe da insanidade revolucionária, enquanto cria sua filha adolescente Willa (Chase Infiniti). Apesar desta aparente tranquilidade, é evidente que eles ainda vivem às sombras dos acontecimentos passados, principalmente pela paranoia de Bob, que vive em constante estado de alerta. Paralelamente, o coronel Lockjaw está tentando entrar para uma espécie de seita elitista e supremacista, com um nome tão ridículo quanto os seus princípios sectários, mas vê seu ingresso no grupo correndo perigo por acontecimentos do passado que, inevitavelmente, o colocam novamente no caminho de Bob e sua filha.

O roteiro de PTA é muito dinâmico, toda hora mudando de perspectiva, mas nunca deixando o ritmo cair. É um filme vibrante por essência, que apresenta personagens riquíssimos e muito bem construídos. DiCaprio é o protagonista condutor, e se sai bem demais neste papel tresloucado e inseguro, mas a grande força do filme talvez esteja mesmo no seus coadjuvantes. Mesmo com participações breves, Teyana Taylor e Benicio del Toro estão fantásticos em cena, bem como a jovem atriz Chase Infiniti. E há ainda Sean Penn, que retorna a um papel de grande destaque e entrega uma atuação marcante ao encarnar um vilão tão execrável quanto fascinante.


A direção de Paul Thomas Anderson chega ao seu ápice em uma cena de perseguição em uma autoestrada, que sem sombra de dúvidas é uma das cenas mais tensas e memoráveis dos últimos anos. Ao confrontar a fúria representada pelo coronel e a paranoia de Bob, Anderson cria uma metáfora contundente da América contemporânea e do seu estado constante de tensão política. No fim das contas, um dos maiores trunfos do filme reside justamente na personalidade errática de seus personagens: nenhum deles é ideal, todos carregam falhas profundas e tomam decisões controversas. E é nessa imperfeição, tão humana quanto inquietante, que o roteiro encontra sua verdadeira força.

quarta-feira, 12 de novembro de 2025

Crítica: O Agente Secreto (2025)


O recifense Kléber Mendonça Filho é, sem sombra de dúvidas, o maior nome do cinema brasileiro autoral na atualidade, uma posição alcançada com méritos, após uma lista de obras quase irretocáveis que vem desde a sua época de curtas-metragens (como o maravilhoso Recife Frio) até chegar aos longas O Som Ao Redor (2012), Aquarius (2016), Bacurau (2019) e Retratos Fantasmas (2023). Diante deste histórico, as expectativas se tornaram altas desde que começaram a sair as primeiras imagens das gravações do seu novo filme, O Agente Secreto, protagonizado por Wagner Moura e ambientado novamente em Recife (sua "cidade musa"), desta vez durante a ditadura militar.


A trama se passa em 1977, onde Moura interpreta Marcelo, um homem que está retornando para sua terra natal, Recife, após um período afastado. A bordo do seu fusca amarelo fluorescente, ele chega à cidade após três dias de viagem, onde é amorosamente acolhido por Sebastiana (Tânia Mara). Ela é dona de uma pensão onde aparentemente todos os moradores estão vivendo como refugiados, grande parte deles com nomes falsos. E com Marcelo, a situação não é diferente. Apesar dele ter conhecidos na cidade e até mesmo um filho pequeno que vive com o avô, Marcelo precisa viver na clandestinidade, e o motivo vai sendo desvendado aos poucos.

Embora o filme se passe durante o período da ditadura militar, o diretor opta acertadamente por fugir do óbvio. É possível identificar várias referências às tensões políticas da época, com mortes arbitrárias aparecendo nas manchetes dos jornais e breves menções em diálogos, mas o mote central não está diretamente ligado ao regime, que aparece apenas como um eco distante na narrativa. E reitero, que grande acerto da direção neste ponto, pois acaba fugindo do estereotipo de ser "mais um filme brasileiro sobre ditadura militar", quebrando esta expectativa de gênero e se tornando um excelente thriller policial atemporal e universal.

A grande questão do filme é: O que Marcelo fez para estar sendo perseguido? Quem são as pessoas que estão atrás dele, e o que os motivou a isso? São inúmeras perguntas que vão se acumulando ao longo das duas horas e quarenta de filme, e que lentamente vão encontrando suas respostas. É interessante perceber que a tensão do filme não está exatamente no que vemos na tela, mas no sentimento de que algo está para acontecer, uma angústia silenciosa que o diretor maneja com maestria na mente do espectador.


Ao mesmo tempo em que o diretor constrói com precisão o clima de suspense, ele também consegue equilibrar muito bem um leve teor cômico, principalmente quando a personagem de Tânia Mara está em cena. São cenas simples do cotidiano, que graças à atuação brilhante de Tânia, acabam arrancando risos genuínos. Aliás, todos os personagens do filme são extremamente orgânicos e sensíveis, contribuindo para a naturalidade com que o filme se desenrola e reforçando o ótimo trabalho do elenco envolvido.

A recriação do Brasil dos anos 1970 também é impecável em cada detalhe. A nostalgia pulsa na tela, das músicas aos carros coloridos da época, dos figurinos à atmosfera das ruas. Mais do que isso, estamos falando de um apaixonado por cinema detrás das câmeras, e as referências aos filmes antigos da época estão por toda parte, como nos cartazes de filmes espalhados pelas ruas ou pelas paredes do icônico cinema São Luiz, e até na forma como Kleber retrata o encantamento (e o medo) das pessoas diante dos filmes de terror que estavam despontando com força naquela década.


O ritmo do filme é cadenciado, mas de forma alguma monótono, tanto que não vi o tempo passar de tão absorto que estava na narrativa. Kléber enquadra cada cena com um olhar único e uma atenção impressionante aos detalhes, sempre acompanhadas de uma trilha sonora ora assombrosa, ora vibrante. Com um epílogo ambientado nos tempos atuais, o diretor reforça a importância da pesquisa histórica e da memória como peças fundamentais para entendermos quem somos e de onde viemos, neste que é o seu trabalho mais audacioso até então.

segunda-feira, 10 de novembro de 2025

Crítica: Frankenstein (2025)


Conhecido por suas obras fantasiosas, marcadas por uma estética visual singular e pelo uso de metáforas que expõem as imperfeições humanas em seus extremos, o mexicano Guillermo del Toro encontrou em Frankenstein a história perfeita para expandir seu universo autoral. O cineasta revisita o clássico de Mary Shelley imprimindo sua própria assinatura, numa combinação de lirismo sombrio, imaginação exuberante, e uma profunda empatia por seus monstros.


O filme se inicia em 1857, quando Victor Frankenstein (Oscar Isaac) está perdido em meio ao Mar da Noruega congelado, fugindo da criatura que ele próprio deu vida. Ele acaba acolhido por um navio que está aprisionado entre as geleiras, e na cabine do capitão, começa a contar sua história, que serve como narração para o que vem pela frente. Retornamos por um breve momento à sua infância, passada em uma imponente mansão nórdica ao lado dos pais, onde o jovem Victor criou fascínio pela anatomia e pelo mistério do corpo humano ao acompanhar o trabalho do pai (Charles Dance), um cirurgião renomado.

Após a morte dos pais, a curiosidade se transforma em obsessão: movido pelo desejo de "desafiar a morte", Victor mergulha em experimentos cada vez mais ousados, até finalmente alcançar seu propósito. Com o auxílio de uma engenhoca de sua própria invenção, financiada pelo seu tio excêntrico, Henrich Harlander (Christoph Waltz), Victor dá vida a um ser composto de nervos, ossos e tecidos de inúmeros cadáveres. O resultado é uma criatura interpretada de forma visceral e melancólica por Jacob Elordi, que encarna tanto o horror quanto a pureza.


O enredo desenvolve-se em torno de uma inversão moral já clássica, mas que ganha novas camadas sob o olhar do diretor: o verdadeiro monstro da história talvez não seja a criatura, mas sim o seu criador. Ao perceber as imperfeições de sua obra, um ser que não corresponde às suas expectativas de inteligência e autossuficiência, Victor se revolta contra a própria criação. O fascínio científico rapidamente se transforma em repulsa e crueldade. Em cenas duras, vemos ele subjugar o ser à humilhação e à violência, mantendo-o acorrentado e punindo-o sem motivos. A única figura capaz de reconhecer traços de sensibilidade e emoção na criatura é Elizabeth (Mia Goth), a futura cunhada de Victor, cuja compaixão contrasta com a brutalidade do cientista.

Na segunda metade do filme, a narrativa se desloca para o ponto de vista da própria criatura, e é aqui que del Toro mergulha mais fundo nas dimensões filosóficas da história. Ao dar voz ao ser rejeitado, o cineasta explora temas como pertencimento, identidade e a essência do que significa ser humano. A criatura, em sua busca por compreensão e aceitação, revela um sofrimento que transcende o horror: o de existir sem um lugar no mundo, de desejar amor e ser incapaz de recebê-lo. É nesse trecho que o filme se torna mais poético e devastador, equilibrando a beleza visual característica de del Toro com uma reflexão amarga sobre criação, abandono e culpa.

A veia autoral do cineasta pulsa em cada segundo do filme, do design de produção meticulosamente detalhado à fotografia envolta em tons frios e sombrios, que dialoga com a natureza trágica da história. É possível sentir a paixão que ele colocou neste filme, que já era um desejo seu de muitos anos. Enquanto isso, a trilha sonora de Alexandre Desplat se destaca por sua delicadeza melancólica, alternando momentos de grandiosidade orquestral e silêncios que falam mais do que qualquer palavra.


No elenco, todos cumprem com precisão o papel que lhes cabe dentro dessa fábula sombria. Oscar Isaac entrega um Victor Frankenstein dividido entre a genialidade e a loucura, e Jacob Elordi humaniza a criatura com uma presença física e emocional impressionante. Mia Goth, Christoph Waltz e Charles Dance completam o conjunto com atuações competentes que engrandecem ainda mais a obra. Por fim, o resultado é uma obra visualmente deslumbrante e emocionalmente dilacerante, que reafirma o diretor como uma das mentes mais criativas do cinema contemporâneo, ao transformar novamente o horror em compaixão, e o grotesco em beleza.