O cineasta Jafar Panahi carrega uma trajetória marcada por resiliência e enfrentamento aos regimes políticos do Irã, conhecidos por suas repressões e arbitrariedades contra o povo iraniano. Há anos proibido de filmar em seu próprio país e alvo de prisões sucessivas, Panahi sempre encontrou meios de fazer sua voz ecoar pelo mundo através de seus filmes, mesmo nos períodos em que esteve atrás das grades. Seu último longa, No Bears (2023), trazia o próprio diretor como personagem principal de uma narrativa fictícia, mas que não deixava de mostrar a dura realidade do país, um elemento recorrente em suas obras independente se documentais ou ficcionais.
Foi Apenas um Acidente (It Was Just an Accident) apresenta um dilema moral instigante e de grande força emocional. Na trama, acompanhamos Eghbal (Ebrahim Azizi), que está viajando com sua filha e esposa em um clima bastante descontraído, até que ele atropela um cachorro na estrada. Apesar do susto, ele segue em frente com o carro, mas logo precisa parar novamente por causa de problemas mecânicos. Ali, o caminho de Eghbal cruza com o de Vahid (Vahid Mobasseri), um homem que, de imediato, demonstra inquietação e convicção de já conhecer aquele motorista de algum lugar. De onde, ainda não sabemos. A tensão cresce rapidamente quando Vahid passa a observar Eghbal, a segui-lo até sua casa e acompanhar seus passos com uma certa obsessão, e Panahi conduz esse suspense inicial com precisão, sem pressa em revelar suas peças.
A revelação quando vêm, no entanto, é devastadora. Vahid acredita fortemente que Eghbal é o inspetor do governo responsável por torturá-lo anos antes na prisão, fato que destruiu para sempre sua vida e que o faz carregar traumas pesados até os dias de hoje. Dividido entre o desejo de tomar uma atitude drástica e o medo de cometer uma injustiça, ele procura outros ex-prisioneiros que teriam sofrido nas mãos daquele homem, buscando confirmação. Assim entram em cena Shiva (Mariam Afshari), Goli (Hadis Pakbaten) e Hamid (Mohamad Ali Elyasmehr), cada qual respondendo ao passado da sua maneira: alguns pregando cautela, outros ansiando por vingança imediata. As discussões e tensões entre eles, impulsionadas por memórias, dores e visões divergentes de justiça, movem o restante da narrativa, que se desenrola ao longo de um único dia, e que a cada nova cena traz um elemento novo para discussão. O que os une, contudo, é a cicatriz coletiva deixada pela violência estatal e a sensação de que a justiça formal jamais lhes devolveu aquilo que perderam.
Nenhum desses personagens tem instinto criminoso, isso fica bem claro, e é justamente aí que reside o cerne do filme. Se o sistema que deveria punir os abusadores se omitiu, ou pior, legitimou seus atos, teriam as vítimas o direito moral de revidar? Mais do que isso, seria Eghbal realmente o algoz que merece ser responsabilizado, ou ele era apenas alguém que cumpria ordens dentro de um mecanismo muito maior? Panahi transforma essas perguntas em cinema pulsante, convidando o espectador a enfrentar, junto com eles, o peso ético de uma resposta que nunca é simples.
O que o governo fez a estas pessoas não foi um acidente, e o que eles estão fazendo em retaliação, também, não é. São atos que geram consequências, numa espiral de acontecimentos que mostra como funciona o ciclo da violência e da opressão. Vencedor da Palma de Ouro em Cannes este ano, Foi Apenas um Acidente é um dos filmes mais interessantes do ano, que reafirma a potência de Panahi como contador de histórias que expõem as fraturas mais profundas da sociedade iraniana.



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