sexta-feira, 5 de maio de 2023

Crítica: No Bears (2022)


Há que se ter muita coragem para fazer um cinema político dentro de um país engolido por um regime fundamentalista. Dito isso, é impossível não sentir uma enorme admiração pelo trabalho de Jafar Panahi, que sempre foi conhecido por criticar as políticas dos governos iranianos e questionar as contradições da sociedade conservadora do país, como a falta de liberdade de expressão e principalmente o apagamento dos direitos das mulheres. Por conta disto, Panahi foi proibido em 2010 de filmar qualquer filme por vinte anos, logo após a sua primeira prisão, além de não poder deixar o país por tempo indeterminado. Isso o fez parar? Jamais.


Lançado no Festival de Veneza de 2022, "No Bears" conta duas histórias paralelas. A primeira, e principal delas, mostra o próprio Panahi passando uns dias em uma casa alugada de um vilarejo pequeno e próximo da fronteira do Irã com a Turquia. Ele está ali para comandar à distância as filmagens de seu novo filme, que está sendo feito no país vizinho. Se ele não pode estar presente por ser proibido de deixar o país, ele quer pelo menos estar o mais próximo possível da equipe, e enquanto se corresponde com os atores e a produção através do notebook, passa a conviver com a população local e entender melhor seus pensamentos e suas tradições.

Ao sair fotografando o vilarejo, Panahi se vê dentro de um conflito envolvendo um relacionamento de dois jovens. A menina tem o casamento arranjado com outro homem desde seu nascimento, mas estaria planejando fugir com o namorado para longe. A população local acredita que Panahi tenha fotografado os dois juntos, e que essa foto pode ser usada para puní-los. Como Panahi nega ter tirado a foto, todos passam a acusá-lo de esconder a imagem para proteger os dois. No fim, fica subentendido se a foto foi mesmo tirada, e essa brincadeira que o diretor faz com o espectador é genial, apesar da confusão ter um desfecho trágico.


Paira durante todo o filme um clima de pessimismo diante do que vem acontecendo com o Irã. É um sentimento de cansaço diante de uma ditadura que controla tudo e todos, e cuja única alternativa viável parece ser sair do país para viver longe de tudo isso. E é exatamente isso que tenta o casal da outra história, que nada mais é do que o próprio filme que Panahi está dirigindo remotamente. Ou seja, temos aqui um bom exemplo de um filme que coexiste dentro de outro filme, e o resultado final é muito interessante de acompanhar, sobretudo quando os personagens desta história fictícia falam sobre liberdade, sobre direitos e sobre como a vida imita a arte, e vice-versa. 

O fato do diretor ter sido preso dois meses após o encerramento das filmagens, só deixa a mensagem do filme ainda mais forte. Estamos diante de um cineasta que não se deixa ser silenciado por uma ditadura fundamentalista, e isso é gigantesco, mas as coisas seguem acontecendo arbitrariamente e o sentimento de impotência e melancolia dele diante disso é visível. As analogias que ele faz das situações do filme com as situações que ocorrem no país diariamente são complexas e extremamente necessárias, mas quando isso vai mudar, é uma incógnita. Vida longa a Panahi.

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