sexta-feira, 27 de dezembro de 2024

Crítica: Touch (2024)


O reencontro com o passado é algo inevitável à certa altura da vida, e é um tema que volta e meia se torna recorrente no cinema, principalmente com personagens que estão vendo a finitude da vida se aproximar e querem consertar ou reaver algo que julgam ter ficado incompleto. Mais recentemente, um ótimo exemplo disto é o japonês Vidas Passadas (Past Lives), para mim um dos grandes filmes de 2024. Em Touch, filme escolhido para representar a Islândia no Oscar de 2024, temos a temática sob a figura de um senhor islandês que viaja para Londres 51 anos depois de ter deixado a capital inglesa para tentar reencontrar uma velha paixão.


Estamos no início da pandemia de Covid-19, e Kristófer (Egill Oláfsson) vive uma vida pacata em sua cidade da Islândia. Após ser diagnosticado com uma doença cujo tempo de vida restante não se sabe ao certo, ele decide pegar um avião até Londres, sem avisar a noiva e a filha, para tentar reencontrar Miko (Yôko Narahashi), uma japonesa que foi o grande amor da sua vida quando ele ainda era um jovem sonhador cheio de planos em uma Londres efervescente dos anos 1970.

Miko (Kôki na sua versão jovem) era filha de Takahashi-San (Masahiro Motoki), dono de um restaurante japonês no meio de Londres, onde Kristófer (Palmi Kormákur é quem interpreta sua versão jovem) passou a trabalhar como limpador de pratos após largar os estudos por questões ideológicas. Apesar de aparentemente estar em um meio que não combinava em nada com ele, Kristófer logo se apegou ao trabalho e ao local, se empenhando em conhecer não só o idioma japonês mas como toda a cultura do país.


O roteiro vai construindo um panorama da relação amorosa que se criou entre Kristófer e Miko, focando sobretudo no choque de culturas que havia entre os dois. Entre uma conversa e outra, ele descobre que a família de Miko se mudou para a Inglaterra fugindo de Hiroshima, cidade que foi completamente destruída pela bomba atômica em 1945, e que as consequências disso continuaram por muitos anos no seio familiar. Ao mesmo tempo, a outra linha do tempo mostra a a procura dele por Miko cinco décadas depois, e os desencontros pelo caminho.

É um filme que fala, acima de tudo, no quanto a vida toma rumos diferentes daquilo que pensamos, muitas vezes apenas por conta de uma única decisão. Touch fala sobre muitas questões relevantes, e tem uma montegem muito dinâmica, que faz com que as idas e vindas no tempo não se tornem cansativas e muito menos repetitivas.

quarta-feira, 25 de dezembro de 2024

Crítica: Jurado Nº 2 (2024)


Entre polêmicas envolvendo a sua distribuição mundial, já que a Warner inexplicavelmente preferiu lança-lo apenas no streaming, Jurado Nº 2 (Juror #2) finalmente chegou no Brasil através do catálogo da Max. O filme, que possivelmente será o último da carreira de Clint Eastwood, no alto dos seus 94 anos, pode ser considerada uma despedida de gala de um diretor que marcou o seu nome no cinema como um dos grandes gênios desta arte.


O filme nos apresenta um conflito interessante entre o certo e o errado, o justo e o injusto, ao nos apresentar Justin (Nicholas Hoult), um homem casado e com a esposa grávida que é convocado para ser jurado no tribunal da Geórgia em um caso de homicídio. O réu é James (Gabriel Basso), acusado de jogar a namorada de uma ponte após uma briga dos dois em um bar.

Todos os indícios apontam que James é o verdadeiro culpado da morte, porém, durante o julgamento, Justin se dá conta de uma informação sobre o crime que somente ele tem e que mudaria tudo. No entanto, esta informação comprometeria para sempre toda a sua vida e a da sua família. É quando entra o conflito moral que Eastwood trabalha com maestria até o final do filme.

O roteiro faz alusão ao clássico 12 Homens e uma Sentença, de Sidney Lumet, ao começar apresentando 11 jurados convictos de uma decisão desfavorável ao réu, enquanto apenas um deles (Justin) tenta convencê-los do contrário, neste caso sem obviamente falar o que sabe por trás do caso. E é brilhante a forma como o filme nos conduz por esta dualidade, em um estudo de personagem bastante interessante e intrigante.


Por mais que alguns achem que o subgênero "filme de tribunal" já esteja datado e sem ideias novas, só nos últimos dois anos tivemos excelentes exemplos que mostram o contrário, como o queridinho do último Óscar Anatomia de uma Queda, e Jurado Nº 2 já entra fácil na lista de filmes imperdíveis sobre o tema.

sexta-feira, 22 de novembro de 2024

Crítica: Memoir of a Snail (2024)


Do mesmo criador de Mary and Max, que encantou o mundo em 2009 ao abordar temas adultos e maduros através da amizade improvável de uma jovem e um idoso, Memoir of a Snail é mais uma animação de Adam Elliott feita inteiramente em stopmotion e que segue a mesma ideia, desta vez acompanhando uma garota melancólica e desajustada, que mesmo tendo enfrentado dificuldades extremas pelo caminho, não perde a esperança de um dia ter uma vida boa e tranquila.


Grace (voz de Sarah Snook) é a personagem principal desta história, que logo na primeira cena aparece contando a sua vida para o seu caracol de estimação favorito, Sylvia, após a morte de uma pessoa que ela amava muito. A vida de Grace notavelmente não foi fácil desde o nascimento. Após a morte do pai, ela e seu irmão gêmeo foram separados no orfanato, indo cada um para um canto do país. Grace foi morar com uma família de boas condições financeiras mas extremamente excêntrica, enquanto seu irmão Gilbert (voz de Kodi Smit-McPhee) foi parar em uma fazenda de fanáticos religiosos, onde comeu o pão que o diabo amassou. Mesmo à distância, os dois tentavam se comunicar através de cartas, que acabam tendo um papel essencial na contagem desta história, até que elas cessam de chegar.

Todos os personagens são cuidadosamente trabalhados, desde a personalidade de cada um até a sua aparência. Além de Grace e Gilbert, outro destaque é Pinky (Jacky Weaver), uma senhora de idade que por acaso do destino acaba formado uma amizade indestrutível com a garota. Enquanto Grace vive seus traumas e tanta superá-los, Pinky tenta lidar com a finitude da vida, que está cada vez mais próxima. Esse encontro de gerações é encantador, e os diálogos são fenomenais.

Ao abordar a vida de Grace do início ao fim, temos uma série de questões pertinentes que são abordadas com muito cuidado e respeito pelo roteiro. Desde as inseguranças que ela tinha na infância por ter nascido com um problema estético no nariz, até sua timidez e melancolia na vida adulta, tudo se encaixa e molda sua personalidade de maneira única.


A estética do filme é impecável, com grande requinte nos detalhes. Cada quadro, cada cena, é tudo feito com muito capricho, o que deixa tudo extremamente realista, mesmo se tratando de uma animação em massinha de modelar. Cheio de referências a escritores famosos, revistas de grande circulação e principalmente ao cinema, o filme cativa do início ao fim, e traz uma belíssima mensagem usando como metáfora os caracóis que Grace tanto ama. Como todos sabem, eles não podem se mover para trás e por isso estão sempre em frente, na velocidade deles. E nós também deveríamos ser assim.

segunda-feira, 18 de novembro de 2024

Crítica: O Quarto ao Lado (2024)

 

Pedro Almodóvar é um cineasta ímpar, que sempre foi conhecido por suas "extravagâncias" narrativas e o uso de cores vivas em suas obras, quase como um elemento crucial. De uns anos para cá, no entanto, o cineasta espanhol vem trazendo obras mais densas e intimistas, como é o caso do seu novo filme, O Quarto ao Lado (The Room Next Door), que com muita sobriedade aborda o envelhecimento, a aceitação da morte e um tema ainda polêmico: a eutanásia.


A trama acompanha Ingrid (Julianne Moore), uma escritora de sucesso que após o lançamento do seu novo livro, descobre que uma grande amiga, que ela não via há muitos anos, está internada no hospital com um câncer terminal. Quando ela decidi visitar Martha (Tilda Swinton), a conexão existente entre elas renasce e se fortalece, mesmo depois de tanto tempo. As próprias personagens se perguntam o porquê de terem ficado todos esses anos afastadas, e isso me fez questionar também o quanto nós vamos deixando o tempo nos afastar das pessoas que amamos simplesmente pela crueldade da rotina.

Logo, Martha tem uma proposta para Ingrid que irá colocar em cheque a lealdade dela. Adentrando agora em spoilers, a ideia de Martha é utilizar um medicamento que ela conseguiu através do mercado negro, e que causará sua morte instantânea, livrando-a do sofrimento de ter que enfrentar os piores dias da doença. Martha está decidida, e o que ela quer é apenas alguém que viaje com ela para um lugar seguro e isolado, e que fique no quarto ao lado (o que dá nome ao filme) para poder chamar as autoridades quando ela tomar a decisão.


Entre uma conversa e outra, as duas passam a relembrar vários períodos de suas respectivas vidas, que são dramatizados através de flashbacks com outros atores mais jovens. O retorno ao passado das personagens é utilizado para mostrar que antes de qualquer decisão que se tenha visando o futuro, devemos primeiramente fazer as pazes com o passado e entender que ele foi crucial na construção de quem somos no presente.

A discussão da mortalidade e o quanto todos somos facilmente suscetíveis a ela é, de fato, o ponto central da trama, e Almodóvar trabalha isso de maneira muito leve e, às vezes, até mesmo bem humorada. Com nomes como Julianne Moore e Tilda Swinton, não era de se esperar nada diferente em termos de atuação. As duas estão magníficas em seus papéis.

domingo, 10 de novembro de 2024

Crítica: Ainda Estou Aqui (2024)


A ditadura militar no Brasil durou 20 anos, mas deixou cicatrizes para a eternidade. Foram centenas de mortos durante o regime, e em muitos destes casos os corpos sequer foram encontrados, deixando suas famílias aflitas e em busca de respostas por décadas. Um dos desaparecimentos mais célebres foi o do político Rubens Paiva, cuja morte só foi confirmada 40 anos depois durante depoimento de ex-militares na Comissão Nacional da Verdade, instaurada no ano de 2011 durante o governo Dilma Roussef. Baseado no livro escrito por seu filho, Marcelo Rubens Paiva, Ainda Estou Aqui conta um pouco do que aconteceu com Rubens, mas sobre a visão de sua esposa, Eunice Paiva, uma mulher batalhadora, e que virou um símbolo na luta pelos direitos humanos.


O filme inicia em 1970, durante o mandato do presidente Emílio Médici, e um ano após a instauração do AI-5, que definitivamente deu início ao período mais radical e sangrento da ditadura militar no país. Durante a vigência do AI-5, era dado ao presidente poderes absolutos para que fossem cometidas prisões arbitrárias, censura prévia, cassações de mandatos de políticos da oposição, entre outros absurdos. Foi também o período onde o exército tinha plena liberdade de prender qualquer suspeito de dissidência na rua, e onde a tortura virou um instrumento crucial para tentar capturar aqueles que iam contra o regime.

Neste ínterim, acompanhamos o dia a dia da família Paiva, com Rubens (Selton Mello), Eunice (Fernanda Torres), e seus cinco filhos. Eles moram na zona sul do Rio de Janeiro, em um sobrado próximo ao mar, e aparentemente vivem uma vida tranquila e próspera. No entanto, é possível perceber que por trás dessa suposta serenidade algo anormal está acontecendo, principalmente quando Rubens recebe telefonemas e cartas. Logo, a rotina da família é drasticamente atravessada quando Rubens, Eunice e a filha de quinze anos Eliana (Luiza Kosowski) são levados a interrogatório por homens do governo. Dos três, só Eunice e Eliana voltam para casa, e é a partir de então que começa a busca incessante para saber o paradeiro de Rubens.


Toda a construção da base familiar, tanto antes do desaparecimento de Rubens, como depois, quando Eunice precisa ser forte e lidar com tudo sozinha, é feita com maestria, e uma gama de detalhes que impressiona. É difícil não se sentir, ao longo das duas horas de duração, mais um membro daquela família. E justamente por ser tão orgânico e tão palpável, que nós acabamos sentindo na pele a agonia dos personagens. Adentrando brevemente em spoiler, não posso deixar de comentar que a cena em que Eunice volta para casa após enfrentar o interrogatório, é uma das mais impactantes que eu já vi no cinema atual.

A força motriz do roteiro é a personagem de Fernanda Torres, e não há palavras para descrever o quanto a atriz está brilhante no papel. Sua voz doce ao repreender os filhos, sua calma na fala mesmo em momentos de tensão, e até mesmo suas raras explosões, são fruto de uma construção primorosa de personagem. Além de Fernanda, é preciso dizer que todo o elenco também trabalha muito bem. Não há uma atuação sequer fora do tom, e até mesmo as crianças estão impecáveis. Junto a isso, temos uma trilha sonora apaixonante e uma direção de arte caprichosa, o que ajuda a criar ainda mais imersão nesta história dolorida, porém linda. A cereja do bolo é a participação especial de Fernanda Montenegro nos minutos finais, que nos emociona sem falar nenhuma palavra. Ela não precisa, o olhar diz tudo.


Quarenta anos depois do fim do regime militar no Brasil, ainda é importantíssimo relembrar o que aconteceu durante aquele período, principalmente para que a geração mais nova não deixe isso se repetir jamais. Enquanto existir pessoas saindo nas ruas com cartazes pedindo intervenção militar, filmes como Ainda Estou Aqui seguirão sendo necessários.

sexta-feira, 18 de outubro de 2024

Crítica: Strange Darling (2024)


Um filme que chegou de mansinho, sem grande alarde, mas que já é, pelo menos para mim, o melhor thriller do ano. Estou falando de Strange Darling, escrito e dirigido por JT Mollner, que é um respiro e tanto de originalidade no gênero, e que me deixou completamente absorto na história desde o seu primeiro minuto até a cena final. No entanto, para que a trama funcione da melhor maneira, é importantíssimo que se saiba o menos possível do filme antes dele começar, já que suas surpresas e reviravoltas são exatamente aquilo que o tornam tão fascinante, então por isso evitarei falar detalhes da história.


O que posso dizer num primeiro momento, de maneira bem superficial, é que no início somos apresentados a uma mulher (chamada apenas de Lady) correndo desesperada no meio de um matagal, aparentemente fugindo de um assassino (denominado na legenda como "the demon"). A partir de então, o filme nos conta como a história chegou até aquele momento de maneira não linear, através de seis episódios, começando pelo terceiro. Sim, os capítulos não aparecem na ordem cronológica, o que faz com a gente vá descobrindo tudo de diferentes pontos de vista, e sendo surpreendidos a cada nova cena.

A premissa parece bem simples, ao apresentar uma perseguição de "gato e rato", como já visto em muitas histórias por aí, porém o roteiro vai muito além disso, brincando com nossas perspectivas de uma maneira que, eu confesso, não lembro de ter visto nada igual. A montagem consegue nos transportar de maneira engenhosa e sólida por entre os capítulos, sendo fácil identificar em qual linha do tempo estamos, e deixando tudo muito fluído e orgânico.


Reparem que eu estou tentando, de toda forma, evitar falar sobre o roteiro, pois eu realmente não quero estragar a surpresa. Strange Darling é um filme que deixa bem claro o quanto as aparências enganam, e sobretudo, o quanto diferentes pontos de vista podem alternar a forma como uma história chega até nós. Os dois atores principais, Willa Fitgerald e Kyle Galner, estão ótimos nos papéis, e colaboram para criar um dinamismo onde ora achamos se tratar de uma coisa, ora já adquirimos outra visão, e isso a todo momento. Um grande trabalho do diretor, que pegou uma ideia "manjada" e a abrilhantou com maestria.

terça-feira, 15 de outubro de 2024

Crítica: Identidades em Jogo (2024)


A premissa da noite de jogos entre amigos que dá errado vem virando febre em filmes de terror, como nos exemplos recentes "Morte Morte Morte" e "Fale Comigo". Lançado diretamente no catálogo da Netflix, Identidades em Jogo (It's What Inside) é mais uma obra que segue o mesmo formato, e acompanha um grupo de jovens que se reencontram após um bom tempo afastados para comemorar o casamento de dois deles, até que um deles propõe um jogo diferente de tudo que já haviam visto antes.


O roteiro começa acompanhando Cyrus (James Morosini) e Shelby (Brittany O'Grady), um casal que está passando por problemas no relacionamento depois de quase uma década juntos. A relação caiu no marasmo, na monotonia, e as poucas interações que eles têm no dia a dia são insuficientes e sem graça. No meio disso, eles recebem o convite para a festa de casamento de um amigo antigo deles da faculdade, Reuben (Devon Terrell), onde reencontrarão outras pessoas desta época universitária. No caminho, Shelby dá uma olhada nas redes sociais destes outros convidados, e percebe que, aparentemente, todos possuem vidas animadas e enérgicas, enquanto a dela parece um puro suco de tédio. 

A mais badalada entre os convidados é Nikki (Alycia Debnam-Carey), que ganha a vida como influencer digital, e que desperta imediatamente a inveja de Shelby, que queria ter a vida "perfeita" como a dela. Na lista de convidados ainda tem Brooke (Reina Hardesty), Dennis (Gavin Leatherwood) e Maya (Nina Bloomgarden), além do excêntrico Forbes (David Thompson), que no passado teve um acontecimento conturbado com os outros membros do grupo, e que acabou ocasionando até mesmo a sua expulsão da faculdade na época. 

E é justamente Forbes quem chega ao local da festa com uma maleta misteriosa nas mãos, que logo sabemos se tratar do jogo que ele criou junto com amigos seus da área de tecnologia. Com uso de eletrodos conectados por fios, a máquina possibilita que os jogadores troquem de corpo por algum tempo entre si, e a intenção do jogo é tentar descobrir quem está no corpo de quem.


Abusando de elementos de terror e sci-fi, mas sem perder o tom de comédia, o roteiro vai abordando as diferentes maneiras como cada membro do grupo reage à possibilidade de ser outra pessoa por alguns minutos ou até mesmo horas. A maioria aproveita para fazer coisas que não teriam coragem, usufruindo do anonimato, e é aí que o jogo vai se tornando ao mesmo tempo perigoso, instigante e sensual. Com este artifício, afloram todos os sentimentos possíveis nos personagens, como inveja, raiva e ciúmes, e ao mostrar as diferentes personalidades mudando de corpos, o roteiro consegue extrair ótimas atuações do elenco jovem. Identidades em Jogo é um filme que brinca com a perspectiva dos espectadores, ao fazer com que também tenhamos que descobrir quem é quem no meio de toda essa confusão, e desenrola sua história sem enrolação, sendo um dos filmes mais bacanas do gênero este ano.

sábado, 12 de outubro de 2024

Crítica: A Substância (2024)


A ditadura da beleza, a auto depreciação, a procura pela perfeição estética e a pressão da sociedade em cima da aparência feminina. Estes são temas que já foram abordados em vários filmes, inclusive alguns bem recentes, mas jamais da maneira radical e grotesca como faz a diretora francesa Coralie Fargeat em A Substância, um bodyhorror para fã do subgênero nenhum botar defeito.


Elizabeth Sparkle (Demi Moore) foi uma grande estrela no passado, chegando a ganhar um Oscar por um trabalho que ninguém nem lembra mais, mas que foi o suficiente para ela ter eternizado o seu nome na calçada da fama. Agora, anos depois, ela sobrevive fazendo programas de aeróbica na televisão, até o dia em que o diretor (Dennis Quaid) decide demiti-la por a acha-la velha demais. Ela descobre isso da pior maneira, ouvindo ele dizer isso de forma nojenta para alguém ao telefone, o que a deixa terrivelmente abalada. Saindo do estúdio, ela se acidenta com seu carro, e no hospital recebe um bilhete misterioso de um dos enfermeiros. A partir de então é preciso entrar em spoilers, pois é impossível falar do filme sem abordar o mínimo da história.

Através do bilhete recebido, Elizabeth descobre a existência de uma substância criada por uma empresa tecnológica que é capaz de fazer uma cópia sua mais nova, e decide utiliza-la sem pensar muito. Ao injetar o líquido no corpo, ela literalmente dá a luz (de uma maneira absurdamente bizarra) a uma versão mais nova e perfeita dela mesma, e quem interpreta esta versão jovem de Elizabeth é Margaret Qualley, que adota o nome de Sue. O uso desta substância, no entanto, possui diversas regras que precisam ser seguidas para evitar consequências graves, e uma delas é que as duas versões precisam coexistir, sendo uma semana para cada, de forma alternada. Enquanto uma estiver vivendo perante a sociedade, a outra "descansa" desacordada no chão de algum cômodo da casa. Sue, no entanto, começa a burlar as regras para ficar mais tempo curtindo os prazeres da juventude, e Elizabeth perde o controle sobre sua própria "criação", transformando a experiência em algo cada vez mais macabro, repugnante e fora de controle.


Impressiona tamanha destreza com que a diretora trabalha o uso da câmera desde o primeiro minuto, de uma maneira bastante frenética, o que acaba criando uma atmosfera intensa e fascinante. Os cenários também são caprichosamente formidáveis, desde os espaços internos, como a enorme casa de Elizabeth ou os corredores coloridos e cheios de cores vivas do estúdio de televisão, até as tomadas externas com o panorama pulsante de uma Los Angeles efervescente.

Mais do que tudo, é preciso falar da atuação de Demi Moore, que não por coincidência, é uma atriz que viveu seu auge nos anos 1980 e 1990, mas que após ficar mais velha, perdeu espaço. Ou seja, ela conhece muito bem tudo aquilo que o roteiro se propõe a criticar. E ele critica mesmo, sem rodeios,  sendo bastante direto e reto, sem utilizar de alegorias. O papel de Moore exige uma coragem que poucas atrizes teriam, e ela faz isso com maestria.  Margaret Qualley também encanta em tela, sendo perfeita em todos os momentos em em que é exigida, quase uma força da natureza com sua beleza e carisma.


Não dá para negar que o filme possui algumas perguntas sem resposta, mas o roteiro premiado em Cannes "engole" você de tal maneira, que é impossível se apegar aos detalhes enquanto ele passa na sua frente. Sinto que a ideia da diretora era justamente não se preocupar em explicar muita coisa, principalmente em relação a origem da substância ou a maneira como os personagens reagem diante das consequências de seu "mal uso". Então se você comprar naturalmente a ideia do filme desde o início, e aceitar algumas facilitações que o roteiro apresenta, você terá, sim, uma grande experiência. 

O final catártico também é bastante divisivo, e talvez seja o único ponto do filme que realmente me perdeu um pouco, ao atingir um extremo que eu jamais imaginava ver em um filme hoje em dia. É como se Coralie pensasse "se eu já vim até aqui, porque não ir um pouco mais além?", e esse além, na minha visão, ficou um pouco forçado. Porém, reitero mais uma vez minha admiração pela coragem da diretora em fazer o filme do jeito que ela queria, sem se preocupar se seria bem aceito ou não, e pelas críticas mundo a fora e a massiva aceitação do público, creio que deu certo.

terça-feira, 8 de outubro de 2024

Crítica: Coringa: Delírio a Dois (2024)


Lançado em 2019, Coringa foi um estrondoso sucesso de público, de crítica e de premiações, sendo consagrado como um dos melhores filmes daquele ano. Não é para menos, já que o mergulho melancólico e visceral que o diretor Todd Phillips faz na mente do icônico personagem dos quadrinhos, interpretado brilhantemente por Joaquin Phoenix, possuía uma força e uma potência catártica singular. Por tudo isso, era evidente que sendo anunciada uma sequência, ela atrairia todas as atenções possíveis, principalmente por suas novas nuances: a entrada de Lady Gaga no papel de Arlequina, e o fato do novo filme ser um musical.


Extremamente divisivo, Coringa: Delírio a Dois (Joker: Folie à Deux) foi lançado comercialmente no Brasil neste começo de outubro, mas desde antes já vinha dando o que falar mundo a fora, com opiniões efusivamente negativas, que culminaram na desconfiança do público e em salas de cinema muito mais vazias do que se esperava. Por estas questões externas, confesso que fui ao cinema sem nenhuma expectativa, mas sou obrigado a dizer que para a minha surpresa, eu gostei do que vi, ainda que tenha várias ressalvas. Tudo bem, o filme não chega aos pés do primeiro e isso é evidente, mas está muito longe de ser o desastre que o pessoal vem falando por aí, e a proposta de adentrar na mente deteriorada e descolorida de Arthur Fleck (Phoenix), o palhaço e aspirante a comediante que está por trás da figura do Coringa, continua sendo fascinante à sua maneira.

Depois dos acontecimentos do primeiro filme, onde Arthur matou cinco pessoas, incluindo o âncora de televisão Murray Franklin no seu programa ao vivo, a sequência já inicia com o personagem vivendo no asilo psiquiátrico Arkham, onde está internado enquanto aguarda o seu julgamento. Sua advogada de defesa (Catherine Keener) tenta argumentar que ele é imputável em relação aos crimes por ter problemas mentais, enquanto a promotoria faz a parte dela e tenta provar o contrário. Enquanto tudo isso se desenrola nos bastidores, acompanhamos o dia a dia sombrio de Arthur na prisão, onde vemos um personagem bastante enfraquecido fisica e psicologicamente, sofrendo diariamente com insultos e abusos dos policiais e sem forças para reagir.


A primeira hora do filme segue uma estrutura bastante sóbria, até o dia em que Arthur conhece a também interna do lugar Arlequina (Lady Gaga), enquanto ela participa de uma aula de música. A aparição da personagem não apenas traz luz para a vida de Arthur, que se apaixona instantaneamente por ela (mesmo que não saiba direito o que significa isso), como também muda o tom do filme, pois deste momento em diante as cenas musicais começam a tomar conta da trama. E é justamente neste ponto de ruptura que o espectador se divide. 

Mesmo eu tendo apreciado o filme como um todo, eu não posso negar que as cenas cantadas são, na maior parte do tempo, artificiais e desnecessárias. Em muitas delas não há sequer um argumento plausível para que elas existam, a não ser o fato delas tentarem mostrar o que se passa dentro da cabeça do personagem, e depois de um tempo elas se tornar repetitivas e fora do tom. Apesar de eu ter entendido a intenção do diretor, acaba sendo uma extravagância que podia ter facilmente ficado de fora, já que a parte do tribunal na segunda metade do filme, por si só, já seria altamente satisfatória. Outro ponto negativo, é que à medida em que o Coringa vai “assumindo o lugar” de Arthur mais uma vez, agora diante do tribunal, somos levados a crer que uma nova catarse se aproxima, como aquele momento inesquecível do primeiro filme, algo que infelizmente não acontece.


O filme trabalha também a questão da idolatria, já que após os acontecimentos passados, o Coringa ganhou uma leva de admiradores. Pessoas, estas, que acompanham avidamente todo o julgamento. Além disso, ele também lançou um livro que se tornou um sucesso, e teve até um filme feito sobre sua história (aqui a metalinguagem foi certeira).  Joaquin Phoenix acaba sendo muito menos exigido nesta sequência, já que não há nenhuma novidade em relação ao que já vimos do personagem no primeiro filme, mas isso não impede que ele esteja ótimo em todos os momentos que aparece em cena. Já Lady Gaga, por sua vez, também não compromete, mas sofre pela falta de profundidade na sua personagem, que principalmente na reta final acaba "escanteada". No entanto, apesar dos defeitos evidentes, repito mais uma vez que Coringa: Delírio a Dois está longe de ser uma catástrofe, já que quando abraça a sobriedade, faz isso com muita competência. O pecado talvez tenha sido justamente o excesso.

quarta-feira, 4 de setembro de 2024

Crítica: Armadilha (2024)

De uma maneira geral, posso dizer que não me considero um fã do cinema de M. Night Shyamalan, apesar de simpatizar com uma obra ou outra do diretor. Mas é curioso como todo e qualquer lançamento dele me desperta muita curiosidade, pois independente do resultado final, é inegável que ele sabe como poucos segurar a atenção do espectador, e suas obras parecem sempre ter algo interessante a dizer, nem que seja nas entrelinhas. E com Armadilha (Trap), não foi diferente.


A trama acompanha Cooper (Josh Hartnett), um pai aparentemente afetuoso, que está realizando o grande sonho da filha adolescente, Riley (Ariel Donoghue), de ver o show da sua cantora favorita Lady Raven (interpretada pela filha do diretor, Saleska Shyamalan). Toda a construção do cenário do show, desde a chegada dos fãs ao estádio até a histeria das jovens com o início da apresentação, é muito bem trabalhado em tela, e cria uma imersão bem realista. Logo, começam a surgir os primeiros sinais de que algo estranho está acontecendo nos bastidores, com uma movimentação suspeita de policiais, e o único que consegue perceber e se incomodar com isso é o próprio Cooper.

Ao conversar com um funcionário do show, Cooper descobre que todas as saídas do estádio estão cercadas por policiais fortemente armados, pois o show não passava de uma armadilha para pegar um serial killer que está amedrontando a cidade, conhecido como "O Açougueiro". Em teoria, nenhum homem poderá sair sem ser devidamente identificado, pois a polícia tem a certeza de que o assassino está no local. Shyamalan nos entrega quem é o assassino logo no começo sem fazer grandes mistérios, e eu confesso que gostei muito dessa escolha narrativa, pois fica claro que a ideia do filme não era deixar o espectador buscar respostas, mas sim, criar um certo conflito moral em cada um de nós. A partir de então, nós vemos esse assassino correndo contra o tempo para tentar escapar da emboscada.


Com várias reviravoltas no roteiro, o thriller apresenta um tom cômico que eu sinceramente não esperava ver em um filme de Shyamalan, e eu achei isso bem positivo no resultado final. Evidentemente, você precisa comprar a ideia para engolir certas facilitações que deixam um filme de premissa realista um tanto quanto fantasioso em certos momentos, e é justamente neste ponto que o filme se torna bastante divisivo entre o público. É, definitivamente, um filme que não se leva tão a sério, ou pelo menos tenta passar essa ideia descompromissada, e nisso o papel de Josh Hartnett cai como uma luva. Sua atuação é bem caricata, não dá para negar, mas é uma caricatura que, neste contexto, encaixa bem com a proposta. Gostei também da jovem Ariel Donoghue, e das cenas musicais da Saleska, que deixa claro que uma das intenções de Shyamalan no filme era, também, mostrar todo o talento que a filha tem como cantora (como atriz, isso já é bem discutível). Por fim, pode até não ser o melhor filme de Shyamalan, mas certamente é o mais divertido de toda sua carreira, e também o que mais gostei de assistir desde A Vila (2004).

sexta-feira, 30 de agosto de 2024

Crítica: The Monk and the Gun (2024)


Pawo Choyning Dorji é um cineasta butanês que logo em sua estreia como diretor de longa-metragem lançou o sensível e belíssimo Lunana: A Yak in the Classroom, traduzido no Brasil como "A Felicidade das Pequenas Coisas", que surpreendeu ao ficar entre os cinco finalistas do Oscar de melhor filme internacional em 2022. Dois anos depois ele volta às telas com The Monk and the Gun, uma sátira política ousada e divertida, ambientada no ano de 2006, quando o Reino do Butão fez a transição para se tornar a democracia mais jovem do mundo.


O Butão foi o último país a permitir internet e televisão, e em 2006 finalmente estava seguindo os passos para se tornar uma democracia, da maneira como conhecemos, depois de séculos de monarquia absolutista. Para nós, viver numa democracia parece algo natural, mas sabemos que nem sempre foi assim. Nossas gerações passadas passaram pelo mesmo processo no século passado,  onde também tiveram que passar por todo um processo de aprendizagem sobre o que é viver dentro de um sistema onde o povo pode escolher seus representantes. Os butaneses não tinham nenhuma experiência e não sabiam sequer como agir diante desta mudança, e ao ter que aprender a votar, muitos inclusive se tornam contra, principalmente por não entenderem o motivo e preferirem viver na comodidade de antes.

É preciso dizer que apesar de não ser uma democracia até 2006, o país não vivia um regime ditatorial que tolhia a liberdade do seu povo. Aliás, o pequeno país ficou conhecido por criar o conceito de Felicidade Interna Bruta (FIB), um indicador sistêmico baseado na ideia de que o progresso de uma população não deve ser medido apenas pelo fator econômico, mas considerar sobretudo o cuidado com o meio ambiente e o bem estar das pessoas. Justamente por isso, é um país que até hoje rechaça majoritariamente as grandes tecnologias internacionais, e muitos moradores se orgulham disso.


Voltando ao enredo do filme, acompanhamos o processo de democratização através de uma eleição simulada, onde os eleitores terão que escolher entre três candidatos diferentes: o azul representando liberdade e igualdade, o vermelho representando o desenvolvimento industrial e o amarelo representando a preservação. No meio disso, o velho Lama (Kelsang Choejey) pede para que o seu monge assistente (Tandin Wangchuck) encontre uma arma  em algum lugar da região e traga para ele, pois ele tem planos de usá-la no dia das eleições, ou segundo ele mesmo, "usar para consertar o país no dia em que os olhos do mundo estarão voltados para ele". 

No entanto, o plano é uma incógnita, e nisso o diretor acertou em cheio ao brincar com a nossa perspectiva e atiçar nossa curiosidade, criando um fascínio sobre o que exatamente está passando pela cabeça do Lama. Inevitavelmente pensamos no pior cenário possível, mas o que vai acontecer de fato só é revelado na apaixonante cena final. Ao mesmo tempo, acompanhamos também um colecionador de armas norte-americano (Harry Einhorn), que viaja até o país para comprar um raríssimo exemplar usado na guerra civil americana, e que inexplicavelmente está na posse de um homem local. Inevitavelmente, o caminho dele se cruza com o do monge, já que aparentemente esta é a única arma existente em centenas de quilômetros.

 

O filme tem um humor muito peculiar, como por exemplo na própria reação do monge ao ganhar a tarefa quase impossível de achar uma arma em um país onde isso praticamente não existe, ou a maneira como essa busca se cruza com a do estrangeiro. É engraçado perceber também que o valor de uma arma é tão irrisório no país, que um artefato de séculos atrás acaba sendo trocado por algumas sementes e frutas em um dado momento. Por fim, o Butão é, de fato, um país único e singular, e é interessantíssimo conhecer mais um pouco dele pelas lentes de Dorji. Que venha o próximo.


domingo, 25 de agosto de 2024

Crítica: Motel Destino (2024)


Após lançar seu primeiro filme em língua inglesa, Firebrand (2023), que convenhamos, não tinha nada da sua forma conhecida de fazer cinema, o diretor cearense Karim Aïnouz volta às suas raízes com Motel Destino, filme que foi ovacionado em sua estreia no Festival de Cannes deste ano, e que finalmente chegou aos cinemas brasileiros neste último dia 22.



A trama de Motel Destino se passa no litoral do Ceará e gira em torno de três personagens, começando por Heraldo (Igor Xavier), um jovem que está com planos de ir para São Paulo atrás de uma vida melhor. Para sair da cidade, no entanto, ele precisa antes acertar contas com a chefe do tráfico local, que lhe dá uma missão em troca do perdão de uma dívida: matar um estrangeiro que vive na cidade. A missão dá errado por culpa de um atraso de Heraldo após uma noitada tórrida mas ao mesmo tempo trágica com uma mulher em um motel, e para piorar, ele ainda perde uma pessoa muito querida nesta empreitada mal sucedida. O único jeito é sair foragido, e nessa fuga ele acaba indo parar no mesmo motel de beira de estrada da noite passada, onde é acolhido por Dayana (Nataly Rocha), que comanda o lugar junto com o seu marido Elias (Fabio Assunção).

Em troca de uma cama e de um lugar seguro para se manter escondido dos criminosos, Heraldo passa a oferecer pequenos serviços de conserto no motel, até que passa a trabalhar como um verdadeiro funcionário do local, trocando roupas de cama, limpando os quartos e cuidando da recepção. O problema começa quando Heraldo e Dayana passam a se relacionar de maneira intensa, criando um triângulo amoroso perigoso, que é um verdadeiro barril de pólvora prestes a explodir.


Dayana sonha com o dia em que poderá se livrar das mãos de Elias, um homem que é extremamente abusivo, violento, e que já tentou matá-la ao não aceitar uma separação no passado. Porém, os negócios do motel, do qual ela também é sócia, impedem que ela largue tudo e siga em frente, pois sabe que além de ter que conviver com o medo de ser encontrada e morta por Elias, ainda teria que recomeçar a vida totalmente do zero. E é em Heraldo que ela vê a oportunidade de finalmente escapar desta "prisão" física e psicológica, ainda que não saiba como e nem por onde começar.

Gostei muito da construção dos personagens, bem como a crescente tensão que passa a existir entre eles à medida em que os segredos vão se afunilando. A forma passional com que Heraldo e Dayana se ajudam, transcende o próprio desejo carnal que um tem pelo outro, e dá para sentir que existe entre eles uma conexão mútua forjada intrinsecamente no desejo interno de liberdade, cada qual à sua própria maneira. E nisso, cabe um grande elogio ao ótimo trabalho de Igor Xavier e Nataly Rocha. Não posso deixar também de elogiar a atuação do Fábio Assunção, que brilha na pele desse personagem hostil, violento, mas que no fundo se torna extremamente carismático na tela.


Motel Destino é filme que pulsa tesão, tanto nas imagens como no som, mas que em momento algum se torna forçado neste sentido. Gostei demais da forma como o motel se transforma em um ambiente claustrofóbico, quase como se fosse um quarto personagem, onde passamos boa parte do tempo andando entre seus corredores e quartos, e onde o trabalho de som é o ponto alto, com os diferentes barulhos dos hóspedes (gemidos, gritos, etc etc) servindo como fundo quase o tempo inteiro das ações. Um grande trabalho de Aïnouz em sua "volta para casa".

quarta-feira, 21 de agosto de 2024

Crítica: Mais Pesado é o Céu (2023)


Sempre gosto de lembrar em minhas críticas de filmes brasileiros o quanto o nosso país, de dimensões continentais, é rico em sua pluralidade cultural. O termo pode até soar repetitivo, mas realmente me impressiona como somos uma nação de tantas faces, tantos sotaques, e de milhares e milhares de histórias que se cruzam pelo meio do caminho. Mais Pesado é o Céu, do diretor cearense Petrus Cariry, é a cara do Brasil, e apresenta um retrato atroz e bastante melancólico da dura realidade que muitas pessoas enfrentam todo os dias, sobretudo no interior do país.


A trama gira em torno de Antônio (Matheus Nachtergaele) e Teresa (Ana Luiza Rios), dois andarilhos da vida que se encontram por acaso no interior do Ceará. Antônio passou a vida trabalhando em bicos informais para sobreviver, e através de caronas pela estrada, está voltando de São Paulo com planos de ir rumo ao Piauí, onde pretende trabalhar como catador de caranguejos em um mangue após um antigo amigo dizer que o negócio é promissor. Teresa, por sua vez, está sem eira nem beira após a cidade que morava ter sido alagada pela construção de uma represa, cidade esta que o próprio Antônio também morou há muitos anos atrás. Quando se encontram, Teresa leva uma criança no colo que sequer possui um nome, e que Antônio logo acredita ser o filho dela.

Juntos, os dois procuram a cidade mais próxima em busca de um pouco de alimento, especialmente para o bebê, que agora é carinhosamente chamado de "menino". Lá, eles encontram Fátima (Silvia Buarque), uma mulher que vive sozinha e imediatamente se compadece com o que, em um primeiro momento, ela acredita ser uma família precisando de ajuda. Sem perceber, e de uma maneira natural, Antônio e Teresa de certa forma acabam formando, sim, uma família improvável, principalmente pelo afeto que criam com a criança e a necessidade que sentem de fazer algo por ela. 

 

Com a intenção de ajudá-los, Fátima empresta as chaves de uma casa abandonada para que eles possam se abrigar e passar os próximos dias, enquanto decidem os seus rumos dali em diante. Enquanto Antônio fica responsável pelo cuidado da criança, Teresa sai de casa para procurar trabalho, porém sem opções, ela acaba optando por vender o próprio corpo na beira da estrada, onde encontra o pior lado do ser humano ao ser humilhada e até mesmo violentada pelos "clientes".

O roteiro apresenta uma veracidade que dói, pois o que acompanhamos durante uma hora e meia de filme é a melancólica degradação de pessoas que precisam tomar decisões desesperadas para conseguir sobreviver. Ao mesmo tempo, no entanto, ele apresenta seus personagens com muita humanidade, desenvolvendo-os com primor. As atuações de Matheus Nachtergaele e Ana Luiza Rios ajudam demais neste processo, pois os dois possuem uma química em cena que é louvável. E quando falo de química, não falo no sentido romântico, mas no sentido de enxergarmos neles duas pessoas perdidas, que se encontram e enfrentam juntas a agonia de viver sem saber como vai ser o próximo dia.


Se há algo que pesou negativamente no filme para mim, foi a construção de um personagem misterioso, interpretado por Marcos Duarte. Ele aparece em dois momentos no início, primeiro oferecendo dinheiro para ver Teresa nua no banheiro do posto de gasolina, e outra dirigindo velozmente seu carro pela estrada, e depois volta a reaparecer apenas no ato final, em uma cena um tanto quanto divisiva. As notícias de um assassino à solta pela região, que soam nos radinhos de pilha, dão indícios de que se trata do mesmo personagem, mas isso nunca é devidamente trabalhado, deixando em mim um sentimento de que faltou algo. No entanto, isso de forma alguma atrapalha o resultado final, pois saí da sala de cinema com a certeza de ter visto um dos trabalhos mais honestos e viscerais do nosso cinema este ano.