A coragem de uma mulher vítima de violência doméstica, que resolve finalmente denunciar o agressor, mesmo que a sua vida e a de seus filhos mude do avesso. É sobre isso que fala A Melhor Mãe do Mundo, novo filme da diretora Anna Muylaert (de Que Horas Ela Volta?), que novamente traz uma forte personagem feminina como centro da narrativa.
A trama inicia com Maria da Graça (Shirley Cruz), conhecida como Gal, dentro de uma delegacia da polícia civil, em um dos momentos mais difíceis de sua vida: ela quer solicitar uma medida protetiva contra seu companheiro, Leandro (Seu Jorge), após mais uma agressão física sofrida dentro de casa. Mesmo envergonhada, e até mesmo se sentindo culpada por estar fazendo isso, ela está decidida a seguir em frente, já que a situação em casa chegou no limite do tolerável.
Catadora de materiais recicláveis, Maria deixa para trás a casa onde vivia com os dois filhos pequenos, puxando sua carrocinha pelas ruas de São Paulo. Porém, com a intenção de disfarçar a dolorosa situação aos filhos, ela resolve fingir que eles estão em aventura, "acampando" pelas ruas da cidade, numa maneira de suavizar para os pequenos o drama vivido. O objetivo é chegar até a casa de uma prima, que mora do outro lado da cidade, numa travessia física que espelha o percurso emocional da protagonista.
Um dos maiores acertos de Muylaert é recusar qualquer idealização. A Melhor Mãe do Mundo não se constrói como uma fábula edificante, tampouco transforma Gal em símbolo ou heroína. Ela é forte e combativa, mas também é falha, contraditória e vulnerável. Uma delas é perdoar o marido quando ele consegue encontrá-los após a fuga de casa. Essa complexidade se evidencia quando, após ser encontrado pelo marido, Gal vacila e acaba cedendo. O filme, então, expõe com crueza o dilema moral enfrentado por mulheres em relações abusivas: mesmo independentes e conscientes da violência que sofrem, muitas permanecem presas a vínculos afetivos inexplicáveis, frequentemente marcados pelo medo, pela dependência emocional e pela esperança de mudança.
Não há julgamento por parte da direção, apenas a exposição de uma realidade dura, dolorosa e frequentemente incompreensível para quem observa de fora. Muylaert filma esse retorno com sobriedade, evitando explicações fáceis ou discursos didáticos, apostando na ambiguidade emocional da personagem. Nesse contexto, a presença de Leandro ganha contornos ainda mais perturbadores graças à atuação de Seu Jorge. O ator constrói um personagem passivo-agressivo, que alterna ameaças veladas e apelos sentimentais, manipulando Gal com uma falsa fragilidade. Sua performance evita caricaturas e torna o agressor ainda mais inquietante, justamente por sua aparente normalidade. Shirley Cruz também tem uma presença inquietante em cada cena, bem como as crianças, que juntas trazem uma fluidez elogiável.
Por fim, A Melhor Mãe do Mundo se afirma como um filme profundamente humano, interessado em compreender os mecanismos invisíveis que mantêm tantas mulheres presas a ciclos de violência. O resultado é um retrato sensível e incômodo de uma maternidade atravessada pelo medo, pela sobrevivência e pela dignidade possível. Anna Muylaert reafirma, assim, seu cinema atento às desigualdades sociais e às subjetividades femininas, entregando uma obra necessária, desconfortável e urgente.




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