sexta-feira, 13 de junho de 2025

Crítica: The Ugly Stepsister (2025)


Filme de estreia da diretora norueguesa Emilie Blichfeldt, The Ugly Stepsister é uma versão sangrenta da história da Cinderela, que conversa muito mais com o conto sombrio escrito pelos irmãos Grimm no século XIX do que com a versão animada da Disney a qual estamos mais acostumados. O grande acerto aqui é trazer como personagem principal a jovem Elvira (Lea Myren), uma das meias-irmãs feias da “Cinderela” (que no filme se chama Agnes e é apenas uma coadjuvante de luxo na história).


O roteiro começa com as irmãs Elvira e Alma (Flo Flagerli) viajando com a mãe (Ane Dahl Torp) para a Suécia, onde a matriarca irá se casar com um homem supostamente rico. Logo após a morte deste mesmo homem, elas acabam ficando na casa, mas descobrem que ele, na verdade, não era tão rico quanto prometia ser. Então, afim de conseguir garantir uma boa vida para elas, a mãe fica obcecada com a ideia de casar a mais nova, justamente Elvira, com o príncipe local, que está para dar um baile com a intenção de conhecer sua futura esposa.

Para isso, no entanto, Elvira precisa ser transformada, e a mãe não mede esforços e nem dinheiro para conseguir realizar o seu grande plano, doa a quem doer. No caso, doa à Elvira, que tem desde o nariz quebrado até cílios postiços literalmente costurados na região dos olhos, além de várias outras intervenções cirúrgicas extremamente violentas. Pior do que isso, a filha também acaba ficando obcecada com a ideia do casamento, tomando atitudes drásticas de automutilação. Para caber em um vestido menor que o seu número, por exemplo, ela ingere um ovo de tênia para que o verme fique dentro do seu intestino e coma tudo o que ela usar para se alimentar. Para que seu pé entre no sapatinho perdido de Agnes durante o baile real, ela corta os dedos dos próprios pés.


Sim, o filme vai a extremos inimagináveis, se tornando um “body horror” com excelentes elementos de gore. Tudo sem filtro e com muita veracidade, e algumas cenas me deixaram realmente agoniado, principalmente uma que inclui uma tênia enorme. Essa é para estômagos fortes. Por fim, apesar de ter essa atmosfera bizarra, nada no filme soa como forçado ou fora do tom. É um debut muito interessante de uma diretora que promete.

sábado, 4 de janeiro de 2025

Crítica: Nosferatu (2024)


Cento e dois anos após o clássico inigualável de F. W. Murnau, e quarenta e cinco após a marcante releitura de Werner Herzog, Nosferatu está novamente entre nós. E mais uma vez, em boas mãos. Com uma autenticidade única e uma assinatura própria que já é marcante mesmo com tão pouco tempo de carreira, Robert Eggers nos apresenta sua visão fascinante e ao mesmo tempo horripilante do conde Orlof, neste que pode ser considerado o primeiro grande acontecimento do cinema no Brasil em 2025.


O filme inicia no ano de 1838, quando Thomas (Nicholas Hoult), um jovem recém casado com Ellen (Lily-Rose Depp), recebe uma missão que vai lhe ajudar a crescer na carreira de agente imobiliário. Ele precisa ir até um lugar muito distante na Transilvânia para recolher a assinatura de um conde enigmático que acaba de adquirir uma mansão na cidade onde Thomas vive, na Alemanha. Animado com a possibilidade de mudar de vida, ele não pensa duas vezes em aceitar, e parte em viagem sem ter ideia do que iria encontrar pelo caminho.

Após enfrentar paisagens bucólicas e amedrontadoras, o rapaz finalmente chega ao castelo, onde conhece o conde Orlof (Bill Skarsgard), que na verdade é um vampiro milenar com feições horripilantes e uma voz gutural assustadora. Orlof logo mostra que sua verdadeira intenção no negócio não é a mansão, mas sim, algo muito mais importante, sobretudo para o próprio Thomas. Paralelamente, acompanhamos o dia a dia de Ellen, que ficou na cidade cuidando da casa e passa a presenciar episódios macabros dentro e fora de sua mente.

A fotografia de Jarin Blaschke é um ponto alto do filme. Com seu tom acinzentado, ela consegue aproveitar muito bem as sombras, e quem viu o clássico expressionista de 1922 sabe o tanto que isso é importante para a obra. Além disso, toda a estética do filme é extremamente bem trabalhada, tanto nos figurinos como nos cenários, criando uma obra visualmente deslumbrante e impactante.


Por mais controverso que tenha sido para alguns, eu gostei bastante do visual do conde criado por Eggers, uma proposta bem mais apavorante do que eu esperava mas sem ser nada extravagante. Também aceitei muito bem as liberdades criativas do diretor, que não fogem tanto da história original, mas dão um ar completamente renovado para ela. Nosferatu foi o meu primeiro filme visto em 2025, e com certeza foi um início com o pé direito.

sexta-feira, 27 de dezembro de 2024

Crítica: Touch (2024)


O reencontro com o passado é algo inevitável à certa altura da vida, e é um tema que volta e meia se torna recorrente no cinema, principalmente com personagens que estão vendo a finitude da vida se aproximar e querem consertar ou reaver algo que julgam ter ficado incompleto. Mais recentemente, um ótimo exemplo disto é o japonês Vidas Passadas (Past Lives), para mim um dos grandes filmes de 2024. Em Touch, filme escolhido para representar a Islândia no Oscar de 2024, temos a temática sob a figura de um senhor islandês que viaja para Londres 51 anos depois de ter deixado a capital inglesa para tentar reencontrar uma velha paixão.


Estamos no início da pandemia de Covid-19, e Kristófer (Egill Oláfsson) vive uma vida pacata em sua cidade da Islândia. Após ser diagnosticado com uma doença cujo tempo de vida restante não se sabe ao certo, ele decide pegar um avião até Londres, sem avisar a noiva e a filha, para tentar reencontrar Miko (Yôko Narahashi), uma japonesa que foi o grande amor da sua vida quando ele ainda era um jovem sonhador cheio de planos em uma Londres efervescente dos anos 1970.

Miko (Kôki na sua versão jovem) era filha de Takahashi-San (Masahiro Motoki), dono de um restaurante japonês no meio de Londres, onde Kristófer (Palmi Kormákur é quem interpreta sua versão jovem) passou a trabalhar como limpador de pratos após largar os estudos por questões ideológicas. Apesar de aparentemente estar em um meio que não combinava em nada com ele, Kristófer logo se apegou ao trabalho e ao local, se empenhando em conhecer não só o idioma japonês mas como toda a cultura do país.


O roteiro vai construindo um panorama da relação amorosa que se criou entre Kristófer e Miko, focando sobretudo no choque de culturas que havia entre os dois. Entre uma conversa e outra, ele descobre que a família de Miko se mudou para a Inglaterra fugindo de Hiroshima, cidade que foi completamente destruída pela bomba atômica em 1945, e que as consequências disso continuaram por muitos anos no seio familiar. Ao mesmo tempo, a outra linha do tempo mostra a a procura dele por Miko cinco décadas depois, e os desencontros pelo caminho.

É um filme que fala, acima de tudo, no quanto a vida toma rumos diferentes daquilo que pensamos, muitas vezes apenas por conta de uma única decisão. Touch fala sobre muitas questões relevantes, e tem uma montegem muito dinâmica, que faz com que as idas e vindas no tempo não se tornem cansativas e muito menos repetitivas.

quarta-feira, 25 de dezembro de 2024

Crítica: Jurado Nº 2 (2024)


Entre polêmicas envolvendo a sua distribuição mundial, já que a Warner inexplicavelmente preferiu lança-lo apenas no streaming, Jurado Nº 2 (Juror #2) finalmente chegou no Brasil através do catálogo da Max. O filme, que possivelmente será o último da carreira de Clint Eastwood, no alto dos seus 94 anos, pode ser considerada uma despedida de gala de um diretor que marcou o seu nome no cinema como um dos grandes gênios desta arte.


O filme nos apresenta um conflito interessante entre o certo e o errado, o justo e o injusto, ao nos apresentar Justin (Nicholas Hoult), um homem casado e com a esposa grávida que é convocado para ser jurado no tribunal da Geórgia em um caso de homicídio. O réu é James (Gabriel Basso), acusado de jogar a namorada de uma ponte após uma briga dos dois em um bar.

Todos os indícios apontam que James é o verdadeiro culpado da morte, porém, durante o julgamento, Justin se dá conta de uma informação sobre o crime que somente ele tem e que mudaria tudo. No entanto, esta informação comprometeria para sempre toda a sua vida e a da sua família. É quando entra o conflito moral que Eastwood trabalha com maestria até o final do filme.

O roteiro faz alusão ao clássico 12 Homens e uma Sentença, de Sidney Lumet, ao começar apresentando 11 jurados convictos de uma decisão desfavorável ao réu, enquanto apenas um deles (Justin) tenta convencê-los do contrário, neste caso sem obviamente falar o que sabe por trás do caso. E é brilhante a forma como o filme nos conduz por esta dualidade, em um estudo de personagem bastante interessante e intrigante.


Por mais que alguns achem que o subgênero "filme de tribunal" já esteja datado e sem ideias novas, só nos últimos dois anos tivemos excelentes exemplos que mostram o contrário, como o queridinho do último Óscar Anatomia de uma Queda, e Jurado Nº 2 já entra fácil na lista de filmes imperdíveis sobre o tema.

sexta-feira, 22 de novembro de 2024

Crítica: Memoir of a Snail (2024)


Do mesmo criador de Mary and Max, que encantou o mundo em 2009 ao abordar temas adultos e maduros através da amizade improvável de uma jovem e um idoso, Memoir of a Snail é mais uma animação de Adam Elliott feita inteiramente em stopmotion e que segue a mesma ideia, desta vez acompanhando uma garota melancólica e desajustada, que mesmo tendo enfrentado dificuldades extremas pelo caminho, não perde a esperança de um dia ter uma vida boa e tranquila.


Grace (voz de Sarah Snook) é a personagem principal desta história, que logo na primeira cena aparece contando a sua vida para o seu caracol de estimação favorito, Sylvia, após a morte de uma pessoa que ela amava muito. A vida de Grace notavelmente não foi fácil desde o nascimento. Após a morte do pai, ela e seu irmão gêmeo foram separados no orfanato, indo cada um para um canto do país. Grace foi morar com uma família de boas condições financeiras mas extremamente excêntrica, enquanto seu irmão Gilbert (voz de Kodi Smit-McPhee) foi parar em uma fazenda de fanáticos religiosos, onde comeu o pão que o diabo amassou. Mesmo à distância, os dois tentavam se comunicar através de cartas, que acabam tendo um papel essencial na contagem desta história, até que elas cessam de chegar.

Todos os personagens são cuidadosamente trabalhados, desde a personalidade de cada um até a sua aparência. Além de Grace e Gilbert, outro destaque é Pinky (Jacky Weaver), uma senhora de idade que por acaso do destino acaba formado uma amizade indestrutível com a garota. Enquanto Grace vive seus traumas e tanta superá-los, Pinky tenta lidar com a finitude da vida, que está cada vez mais próxima. Esse encontro de gerações é encantador, e os diálogos são fenomenais.

Ao abordar a vida de Grace do início ao fim, temos uma série de questões pertinentes que são abordadas com muito cuidado e respeito pelo roteiro. Desde as inseguranças que ela tinha na infância por ter nascido com um problema estético no nariz, até sua timidez e melancolia na vida adulta, tudo se encaixa e molda sua personalidade de maneira única.


A estética do filme é impecável, com grande requinte nos detalhes. Cada quadro, cada cena, é tudo feito com muito capricho, o que deixa tudo extremamente realista, mesmo se tratando de uma animação em massinha de modelar. Cheio de referências a escritores famosos, revistas de grande circulação e principalmente ao cinema, o filme cativa do início ao fim, e traz uma belíssima mensagem usando como metáfora os caracóis que Grace tanto ama. Como todos sabem, eles não podem se mover para trás e por isso estão sempre em frente, na velocidade deles. E nós também deveríamos ser assim.