domingo, 28 de maio de 2023

Crítica: Túnica Turquesa (2022)

Representante do Marrocos no Oscar de melhor filme internacional deste ano, Túnica Turquesa (The Blue Caftan) é um filme que fala com muita delicadeza de afeto e amor, mas principalmente da liberdade (ou da falta dela) de manifestar esses sentimentos da maneira que quiser e com quem quiser em uma sociedade bastante conservadora e retrógrada.


Halim (Saleh Bakri) e sua esposa Mina (Lubna Azabal) comandam há anos uma loja de costura especializada nos tradicionais cafetãs. Halim evita a modernidade e gosta de costurar as peças minuciosamente de forma manual, ainda que isso o faça demorar mais tempo do que os concorrentes. Para ajudar no serviço eles contratam Youssef (Ayou Messioui), um jovem que passa a trabalhar como aprendiz. Não demora para que ele e Halim passem a ter uma relação bastante estreita de afeto, que é mostrada através de detalhes, como nos olhares e nos toques sorrateiros enquanto costuram.

O Marrocos é conhecido por ser um dos países mais homofóbicos do mundo, onde ser homossexual ainda é considerado crime passível de prisão. Por isso, Halim, apesar de ser uma figura muito conhecida entre todos, precisa guardar esse segredo da sua vida a sete chaves, e vive em constante medo de ser descoberto. E é aí que entra uma das questões que acho mais interessantes no filme: o seu casamento com Mina. Em um primeiro momento pode até parecer ser algo de fachada para disfarçar sua verdadeira sexualidade, mas é possível perceber que há muito sentimento envolvido entre os dois, ainda que seja algo muito mais emocional do que físico. É perceptível, por exemplo, que Mina sente ciúmes de Halim quando percebe a aproximação dele com Youssef, pois mesmo não falando nada, ela passa a agir com mais rigidez contra o funcionário. E quando ela começa a sofrer com um câncer incurável, Halim passa a empenhar todos os seus dias a cuidar dela, dando todo o suporte que só alguém que ama muito outra pessoa poderia dar.

O ponto alto do filme são as atuações, principalmente de Saleh Bakri e Lubna Azabal. Ele é um personagem extremamente quieto mas que fala muito com o olhar, enquanto ela tem algumas das passagens mais tocantes do filme. O ritmo é bastante cadenciado, com cenas longas que focam nos personagens costurando com meticulosidade, conversando sobre a vida ou simplesmente trocando pequenos gestos de carinho. É tudo realmente muito delicado, como o tecido azul petróleo, que dá nome ao filme, e que está sendo manuseado durante o filme todo pelo protagonista para a confecção de um vestido especial.


Com a mesma sensibilidade que Maryam Touzani já havia demonstrado em seu filme antecessor, "Adam", Túnica Turquesa encanta não só por trazer à tona um tema atual e necessário, como também por traçar um paralelo quase paradoxal sobre o personagem. Afinal de contas, enquanto na parte profissional ele ainda faz questão de seguir as tradições à risca e não aderir ao moderno, sendo até mesmo motivo de riso dos outros por isso, na parte pessoal ele é quem tem a mente aberta enquanto o país ainda vive com uma mentalidade ultrapassada.

quinta-feira, 25 de maio de 2023

Crítica: Medusa (2022)


Quando ouvimos falar em fundamentalismo religioso, muitas vezes ligamos isto automaticamente ao oriente médio e aos grupos de fanáticos da religião muçulmana, como o Estado Islâmico ou o Talibã. Obviamente que ainda não podemos comparar realidades tão distintas, mas nos últimos anos também temos acompanhado uma invasão jamais vista deste tipo de comportamento por aqui, e tem sido bem preocupante. O Brasil, hoje, é um dos países do mundo onde a religião mais tem membros em cargos de poder, assim como em outros diversos setores importantes dentro da sociedade, e isso naturalmente acaba moldando leis, regras sociais e o comportamento da população em geral.


Em Medusa, novo filme da diretora Ana Rocha da Silveira, temos mais uma vez o tema abordado nas telas, mas desta vez de forma bem incisiva. O roteiro acompanha um grupo extremamente cristão, composto só de mulheres, que enxerga todos aqueles que pensam diferente como verdadeiros inimigos ou, na palavra delas, pecadores impuros. Esse mesmo grupo sai todas as noites mascarado caçando outras meninas que elas consideram "promíscuas", castigando e humilhando elas para depois postar os vídeos na internet. 

Na mesma igreja existe também uma espécie de exército, que se autodenomina "Vigilantes de Sião". Em uma clara referência aos "Gladiadores do Altar" (grupo paramilitar que surgiu em 2015 dentro da igreja Universal no Ceará), temos aqui um grupo de homens vestidos de verde, com treinamento militar e gritos de guerra, que são capazes de qualquer coisa para defender a sociedade dos pecados. Homens que têm atitudes extremamente violentas e cruéis, mas por terem a palavra de Deus debaixo do braço, acham que estão fazendo o correto. São eles acima de tudo, e Deus acima de todos.

O tom do filme é bastante sarcástico e tem bons exemplos que mostram isso, como o grupo musical "Preciosas do Altar", formado por oito meninas que cantam músicas sobre Deus de maneira pop, com direito a coreografia e tudo, ou ainda a influencer que faz vídeos ensinando até mesmo como tirar selfies de maneira que não ofenda ao "Senhor".


Muito mais do que mostrar como funciona este fanatismo, o filme mostra também a hipocrisia que existe por trás da vida "casta" e "livre de pecados". São personagens fazendo coisas horrorosas e socialmente inaceitáveis, em nome da fé e dos bons costumes, como as meninas que comemoram depois que uma delas colocou fogo no rosto de outra por ela simplesmente ser sexualmente livre. Há também a menina que esconde na maquiagem os sinais de agressão que sofre do namorado, um dos mais fervorosos cristãos da igreja.
Algumas outras características dessa lavagem cerebral também são abordadas, como a proibição que a igreja faz para seus fiéis de assistirem outras televisões que não seja a rede particular de "notícias" deles, ou o pedido (quase uma ordem) de votos para o pastor na próxima eleição. Tudo com a linguagem e os termos que os membros dessas igrejas realmente utilizam, o que deixa tudo bastante verossímil.


O ponto negativo do filme é que infelizmente ele não explora bem a personalidade dos seus personagens e chega até a abandonar alguns deles sem nenhuma explicação. Como a menina Clarissa, que aparece no início chegando para viver com uma família de crentes, e depois nunca mais aparece na história. Pode se dizer que a protagonista do filme é Mariana (Mari Oliveira) que trabalhava em uma estética até ser agredida por uma fanática religiosa na rua e ficar com o rosto deformado. Ela passa então a trabalhar em um lar que cuida de pessoas em coma, onde encontra Melissa (Bruna Linzmeyer), a garota que teve o rosto queimado pelas outras jovens, e que ninguém sabia do paradeiro desde então.


A fotografia tem bastante tons de neon, o que ajuda a criar um clima de distopia. O filme também tem uma atmosfera de filme de terror, mas o "horror" aqui nada mais é do que a nossa própria realidade, que verdadeiramente assusta. Inclusive, a ideia do filme vem justamente de reportagens que a diretora Anita Rocha da Silveira leu sobre jovens mulheres que foram agredidas por serem "promíscuas". É uma pena que o filme tenha tanta coisa para dizer, e acabe perdendo o foco. Ao abandonar personagens e situações, a mensagem final acaba sendo enfraquecida, ainda que seja necessária.

segunda-feira, 22 de maio de 2023

Crítica: A Good Person (2023)


Os sentimento de luto, culpa e autoperdão são o que movem A Good Person, filme novo do diretor Zach Braff (Hora de Voltar, 2004), e que tem como ponto alto a cativante interação entre a atriz Florence Pugh e o veterano Morgan Freeman.

Allison (Florence Pugh) está vivendo um dos melhores momentos de sua vida. Recém noiva de Nathan (Chinaza Uche), ela tem uma vida estável e está cheia de planos e sonhos para o futuro junto com ele. No entanto, ao se distrair com o celular na estrada, Allison acaba sofrendo um grave acidente de carro, onde morrem duas pessoas, sendo uma delas a sua própria cunhada, irmã de Nathan, que estava na carona. Essa tragédia acaba sendo o grande divisor de águas na vida da protagonista, que tem ela virada completamente do avesso.

O tempo passa, e um ano depois ela está morando junto com a mãe, em estado de depressão profunda e lidando com a dependência em drogas. Allison nunca conseguiu se recuperar dos acontecimentos do passado, além de ter perdido o relacionamento com Nathan, que lhe dava sustentação. Ao entrar em um programa de desintoxicação, ela reencontra Daniel (Morgan Freeman), o pai do seu ex-noivo e consequentemente pai da vítima fatal. Esse reencontro não somente resgata seus traumas, como também traz novas perspectivas, até porque Ryan (Celeste O'Connor), a filha (agora adolescente) da mulher morta no acidente, está sendo criado por Daniel desde então.

Infelizmente, o roteiro do filme acaba caindo num lugar comum de filmes dramáticos, e usa e abusa dos clichês. As situações são tão banais, que chega a ficar um pouco constrangedor depois de um certo ponto. Isso, no entanto, não retira nem um pouco o brilho da atuação de Florence Pugh, que mostra mais uma vez o porquê de ser considerada uma das melhores atrizes desta nova geração. Freeman por sua vez está bastante confortável em um arquétipo que ele mesmo já trouxe para as telas inúmeras vezes, com um personagem que não o exige tanto. E os dois juntos são, de fato, o que vale a pena nesta história. Com uma narrativa superficial e engessada, A Good Person acaba não tratando como deveria de um tema que, num primeiro momento, parecia bem interessante, que nada mais é do que a ciclicidade da vida e o jeito como lidamos com perdas, mudanças drásticas e traumas.


sábado, 20 de maio de 2023

Crítica: Viva o México! (2023)

A estreia de Viva o México! (¡Que Viva México!) no catálogo da Netflix não poderia ter sido mais impactante. Dirigido por Luis Estrada (do ótimo A Ditadura Perfeita), ele se tornou o filme de língua não inglesa mais assistido da plataforma nesta última semana, inclusive sendo também um dos mais vistos aqui no Brasil. Com um humor ácido, o filme critica a classe política e a elite mexicana, mas infelizmente se perde em alguns pontos por ser estereotipado demais.


O roteiro acompanha Pancho (Alfonso Herrera), um homem que veio de uma família muito humilde, mas que hoje vive uma vida confortável, morando em uma casa de luxo com os filhos e a esposa, e tendo o melhor à sua disposição. Ele trabalha como diretor geral de uma fábrica têxtil na Cidade do México, e espera ansiosamente pelo dia que será promovido para gerente geral, cargo que lhe foi prometido pelo dono do lugar, o asqueroso Jaime Sampaolo (José Sefami). Jaime é o típico homem que tem muito dinheiro e se sente acima de qualquer um, inclusive acima da lei, usando sempre o poder para abusar das pessoas e ser extremamente misógino, obsceno e preconceituoso.

A contextualização da época é importante, pois na história o México acaba de eleger um novo presidente com ideias populistas, o que incomoda muito a alta classe e os poderosos, como o próprio Jaime. Já Pancho tem um sentimento ambíguo em relação aos contornos políticos do país, apesar de se mostrar contra as políticas sociais para agradar o chefe e a família da esposa. Todos esses membros da elite dormem e acordam com um enorme medo de ver o México "virar uma Cuba ou uma Venezuela", algo um tanto quanto similar ao que vivemos por aqui uns meses atrás, não é mesmo?


Quando o avô de Pancho morre, ele primeiramente se nega a ir ao enterro, pois não se enxerga mais fazendo parte daquela família separada, hoje, por um abismo social. No entanto, após um sonho, ele decide voltar a La Prosperidad, sua terra natal, para ver o que foi deixado para ele de herança, e leva junto toda a família (até a empregada doméstica) para essa viagem insólita, divertida e nada comum. Aliás, o sonhos do protagonista tem bastante importância na narrativa, pois são através destas pequenas inserções que o diretor apresenta os medos do personagem, como a própria cena inicial, onde ele sonha que sua família foi até a casa dele na capital para matá-lo como "castigo" por ele ter dado as costas para eles. O inconsciente dele sabe que ele está agindo errado com a família e o sonho acaba enaltecendo isso, e há várias outras situações no filme onde ocorre o mesmo.


Ao retornar à cidade natal, Pancho se reencontra com as suas origens, e com os personagens excêntricos que fizeram parte da sua infância. São irmãos (dezenas deles), tios, país e até mesmo a avó, que o recebem com enorme carinho após vinte anos sem nenhum contato. Aos poucos, no entanto, vamos percebendo que entre eles, há vários mal intencionados, que só querem se aproveitar do membro rico da família para tentar ganhar algo em cima dele, principalmente depois que é lido o testamento do finado avô da família. É engraçado acompanhar esse choque social, sobretudo na figura da esposa de Pancho, que chega presenteando os sogros com perfumes caros e uma gravata chique. Ela sempre viveu em ambientes requintados, e de repente precisa dormir em um quarto onde porcos e galinhas andam livremente pelo chão, além de ter que usar uma latrina para fazer suas necessidades. Sem ter para onde correr, acaba abusando da bebida para pelo menos não enlouquecer nos dias de visita.

O roteiro abraça o ridículo desde o início e vai indo muito bem, mas infelizmente acaba reforçando fortemente alguns estereótipos já ultrapassados que não se encaixam mais, além de trazer trechos bem problemáticos. Poderia citar vários exemplos, como a imagem que faz dos indígenas e das mulheres durante todo o filme, mas o que mais me incomodou de fato foi a maneira que o diretor trabalha a transsexual Jacinta, que é mostrada sempre como se fosse uma personagem forçada e "esquisita" por ser do jeito que ela é. É uma das piores abordagens da transexualidade nas telas que eu vi em muitos anos, e a cena em que a câmera faz questão de mostrar a personagem urinando em pé me deixou bem constrangido.


Por fim, Viva o México! acaba servindo como um bom entretenimento, mas deixa bastante a desejar na questão da crítica social, já que não deixa exatamente clara sua verdadeira intenção em um México que, assim como o Brasil, vive uma enorme polarização. Isso talvez funcione apenas no final, quando vemos um verdadeiro retrato do que é a política arbitrária norte-americana de invasão e extração de riquezas naturais dos países do resto do mundo. Um fato curioso é que o filme causou polêmica ao ser lançado no México, inclusive sendo muito criticado pelo presidente atual, que o viu como uma afronta ao povo mexicano. De certa forma, ele não está todo errado.


domingo, 14 de maio de 2023

Crítica: Air - A História por Trás do Logo (2023)


No início da década de 1980, a empresa norte-americana Nike era líder na venda de tênis para corridas, porém existia um mercado muito mais lucrativo em que ela não conseguia competir de igual para igual com as suas concorrentes: o do basquetebol, onde as gigantes Converse e Adidas dominavam as vendas e os patrocínios dos principais jogadores. Coube ao olheiro da Nike na época, Sonny Vaccaro, tentar mudar este cenário ao fazer todos os esforços possíveis para fechar um acordo arriscado com a maior promessa do esporte na época: Michael Jordan, um garoto de 18 anos, recém chegado ao Chicago Bulls para disputar sua primeira temporada na NBA.


Air: A História por Trás do Logo, novo filme dirigido por Ben Affleck, conta a história do acordo fechado entre a Nike e Michael Jordan, e da criação de um dos tênis mais icônicos da história, o Air Jordan. Obviamente que o roteiro vai muito além disso, e confesso que me surpreendeu bastante a competência com que apresenta os temas que propõe. Estamos em 1984, e acompanhamos Sonny (Matt Damon), que tem como função garimpar jovens promessas do esporte para serem patrocinados pela empresa. No entanto, ele não tem tido o resultado esperado há muito tempo, e isso vem incomodando demais o CEO, Phil Knight (Ben Affleck).

Isso tudo pode mudar quando Sonny fica obcecado por Michael Jordan, um garoto que chegou badalado do basquete universitário. Jordan, no entanto, tem uma forte resistência em fechar acordo com a Nike, pois possui uma nítida preferência pelas duas concorrentes diretas. A partir de então, Sonny acaba tendo que criar uma estratégia para convencê-lo de que a Nike seria o lugar certo, e é quando surge a ideia de fazer um tênis especial com as características de Jordan, algo jamais feito anteriormente.


O roteiro de Alex Convey é extremamente dinâmico e divertido, e tem muitas referências aos anos 1980, não somente na parte estética e nas frases ditas pelos personagens com alusões à época, como também na excelente trilha sonora. Affleck acerta em focar a história nos bastidores do acordo, e não na figura de Michael Jordan, que por sua vez aparece muito pouco e sempre de costas ou de lado. Aqui ele não é protagonista, até porque na época ele ainda não era o grande astro que todos nós conhecemos, e todas as escolhas sobre seu futuro são feitas pelos pais, Deloris (Viola Davis) e James (Julius Tennon).

Não dá para dizer que o filme faz propaganda da marca, mas cita vários fatos históricos e curiosidades da mesma, como a origem do logo que é usado até hoje e que é reconhecido em qualquer parte do mundo. Porém, é tudo encaixado de maneira bem orgânica na história, mais para situar o espectador do que qualquer outra coisa. O tom pesa mais na hora de falar das concorrentes, e cito como exemplo a clara intenção de mostrar a Adidas como oriunda do nazismo alemão. Algumas outras situações também passam uma imagem de que a Nike seria uma boa empresa, que se preocupa com os atletas, enquanto as outras são gananciosas e só pensam no dinheiro. E se tratando do mundo corporativo, sabemos como isso soa no mínimo controverso.


O filme tem ótimas atuações, com destaque para a dupla Matt Damon e Ben Affleck. Jason Bateman também chama a atenção ao dar vida a Rob Strasser, o diretor de marketing da Nike na época. Temos ainda uma Viola Davis sempre competentíssima, que brilha mais uma vez na pele da mãe de Michael Jordan. Por fim, Air acaba sendo mais um acerto nessa carreira interessantíssima de Ben Affleck como diretor, e uma das boas surpresas do ano até então.


sexta-feira, 12 de maio de 2023

Crítica: As Leis da Fronteira (2022)


Baseado no livro homônimo do escritor espanhol Javier Cercas, As Leis da Fronteira (Las Leyes de la Frontera) chegou recentemente ao catálogo mundial da Netflix e desde então vem dando o que falar. Contando a história de um adolescente de classe média que faz amizade com delinquentes juvenis e passa a se envolver numa escalada de crimes, o filme dirigido por Daniel Monzón (de Cela 211) chegou a ser indicado em várias categorias no prêmio Goya deste ano, e conquista pelo bom ritmo e pela ótima reconstituição dos anos 70 e 80.


Nacho (Marcos Ruiz) é um jovem extremamente tímido de dezessete anos, que por conta disso sofre muito bullying na escola e sequer consegue reagir. Sem amigos, sua diversão é passar a tarde jogando fliperama em um salão de jogos da cidade de Girona, onde ele acaba conhecendo Tere (Begona Vargas) e Zarco (Chechu Salgado), um dupla de jovens um pouco mais velhos que fazem parte de uma gangue que pratica roubos e furtos pela cidade. Extremamente atraído por Tere, Nacho acaba se deixando levar, e passa a participar ativamente das atividades do grupo. 

É bem interessante acompanhar a construção do protagonista, que acabou vendo na delinquência uma válvula de escape e uma espécie de refúgio. É nítido que ele tem um bom coração, mas o sentimento de finalmente pertencer a algo, e principalmente de ter a consideração de outras pessoas, o motiva a escalar cada vez mais dentro desse mundo criminoso para ser cada vez mais aceito e benquisto.


O que faz de As Leis da Fronteira um filme diferenciado é sua ótima reconstituição da época, desde o figurino e os cenários, até sua trilha sonora. O filme, de fato, nos coloca dentro da Catalunha dos anos 1970. As atuações também são boas, sobretudo de Marcos Ruiz e Begona Vargas. Existe uma química forte entre esses dois personagens, e isso acaba sendo imprescindível, já que a trama gira em torno deste relacionamento e precisa deles para se firmar. Muito mais do que um thriller, é um filme sobre amor, amadurecimento e pertencimento, em uma Espanha que estava recém saindo da pior ditadura da sua história.

sexta-feira, 5 de maio de 2023

Crítica: No Bears (2022)


Há que se ter muita coragem para fazer um cinema político dentro de um país engolido por um regime fundamentalista. Dito isso, é impossível não sentir uma enorme admiração pelo trabalho de Jafar Panahi, que sempre foi conhecido por criticar as políticas dos governos iranianos e questionar as contradições da sociedade conservadora do país, como a falta de liberdade de expressão e principalmente o apagamento dos direitos das mulheres. Por conta disto, Panahi foi proibido em 2010 de filmar qualquer filme por vinte anos, logo após a sua primeira prisão, além de não poder deixar o país por tempo indeterminado. Isso o fez parar? Jamais.


Lançado no Festival de Veneza de 2022, "No Bears" conta duas histórias paralelas. A primeira, e principal delas, mostra o próprio Panahi passando uns dias em uma casa alugada de um vilarejo pequeno e próximo da fronteira do Irã com a Turquia. Ele está ali para comandar à distância as filmagens de seu novo filme, que está sendo feito no país vizinho. Se ele não pode estar presente por ser proibido de deixar o país, ele quer pelo menos estar o mais próximo possível da equipe, e enquanto se corresponde com os atores e a produção através do notebook, passa a conviver com a população local e entender melhor seus pensamentos e suas tradições.

Ao sair fotografando o vilarejo, Panahi se vê dentro de um conflito envolvendo um relacionamento de dois jovens. A menina tem o casamento arranjado com outro homem desde seu nascimento, mas estaria planejando fugir com o namorado para longe. A população local acredita que Panahi tenha fotografado os dois juntos, e que essa foto pode ser usada para puní-los. Como Panahi nega ter tirado a foto, todos passam a acusá-lo de esconder a imagem para proteger os dois. No fim, fica subentendido se a foto foi mesmo tirada, e essa brincadeira que o diretor faz com o espectador é genial, apesar da confusão ter um desfecho trágico.


Paira durante todo o filme um clima de pessimismo diante do que vem acontecendo com o Irã. É um sentimento de cansaço diante de uma ditadura que controla tudo e todos, e cuja única alternativa viável parece ser sair do país para viver longe de tudo isso. E é exatamente isso que tenta o casal da outra história, que nada mais é do que o próprio filme que Panahi está dirigindo remotamente. Ou seja, temos aqui um bom exemplo de um filme que coexiste dentro de outro filme, e o resultado final é muito interessante de acompanhar, sobretudo quando os personagens desta história fictícia falam sobre liberdade, sobre direitos e sobre como a vida imita a arte, e vice-versa. 

O fato do diretor ter sido preso dois meses após o encerramento das filmagens, só deixa a mensagem do filme ainda mais forte. Estamos diante de um cineasta que não se deixa ser silenciado por uma ditadura fundamentalista, e isso é gigantesco, mas as coisas seguem acontecendo arbitrariamente e o sentimento de impotência e melancolia dele diante disso é visível. As analogias que ele faz das situações do filme com as situações que ocorrem no país diariamente são complexas e extremamente necessárias, mas quando isso vai mudar, é uma incógnita. Vida longa a Panahi.