quarta-feira, 24 de janeiro de 2024

Crítica: Quem Fizer Ganha (2023)


Em 2001, nas eliminatórias para a Copa do Mundo de futebol masculino, a seleção da Austrália goleou a Samoa Americana por um sonoro placar de 31x0. Até hoje, esta é considerada a maior goleada de um jogo oficial realizado entre duas seleções. Vendo potencial na história, o diretor Taika Waititi (de Jojo Rabbit) resolveu fazer uma comédia em cima disso, e o resultado é Quem Fizer Ganha (Next Goal Wins).


O filme inicia mostrando os gols desta partida histórica, e logo faz uma breve introdução sobre a cultura e a rotina do povo de Samoa Americana, uma ilha minúscula no meio da Oceano Pacífico e que atualmente conta com uma população estimada em 44 mil pessoas. Última colocada no ranking da FIFA (Federação Internacional de Futebol), a seleção de Samoa Americana não é composta por nenhum jogador profissional, sendo formada basicamente por pessoas do povo, que tem dois ou três empregos comuns, e apenas gostam de futebol e se juntam para defender as cores do país quando é preciso.

O enredo tem aquela estrutura básica e já conhecida, que visa apresentar um grupo de pessoas sem aptidão alguma para o esporte mas que mesmo assim são determinadas em tentar fazer o seu melhor quando incitadas. Quem chega para comandar a seleção após o placar vergonhoso contra a Austrália é Thomas Rongen (Michael Fassbender), que recebe a missão praticamente como se fosse um castigo da Federação Norte-Americana por seus péssimos resultados. Mesmo contrariado, Rongen desembarca na ilha para treinar a seleção para as próximas eliminatórias, e aos poucos acaba se enturmando com todos os moradores, ouvindo suas histórias e tirando o melhor que consegue de cada um.


O tom da comédia me lembrou (com muitas ressalvas) o humor da série Ted Lasso, até pelo tema envolvido. Michael Fassbender parece bem à vontade em um papel que não é costume vê-lo fazer, e eu adorei essa sua veia cômica. Único ponto negativo em relação ao elenco é a participação pífia da Elizabeth Moss, que aparece uma vez ali, outra acolá, e tem basicamente uma ou duas linhas de diálogo o filme inteiro, sendo na verdade um grande desperdício. O jeito que Waititi trata algumas tradições do povo da ilha também tem o humor um pouco duvidoso. Se as vezes parece que o diretor quis trazer esses elementos para mostrar um pouco da cultura local, ao mesmo tempo ele parece querer ridiculariza-los. Ainda assim, é uma comédia que consegue entreter, apesar dos defeitos evidentes.

terça-feira, 23 de janeiro de 2024

Crítica: El Castigo (2023)


Com um dos finais mais impactantes que assisti nos últimos tempos, El Castigo, do chileno Matías Bize (de A Vida dos Peixes), é um filme que brilhantemente trabalha a questão da maternidade e suas responsabilidades, culpas e medos, mas além disso foca também nas relações pessoais e nos sentimentos conflitantes que muitas vezes somos obrigados a esconder por anos debaixo do véu da rotina.


Conduzido na forma de um grande plano sequência, o roteiro nos apresenta Ana (Antonia Zegers) e Mateo (Nestor Cantillana), um casal que está dentro do carro indo para um almoço na casa da mãe dela. Há algo estranho no ar, e logo percebemos que o filho do casal, Lucas, também estava no carro, mas foi deixado há poucos metros atrás, na beira da estrada, possivelmente como forma de castigo por algum ato indisciplinar na viagem. Os motivos vão sendo explicados no decorrer da trama, mas ao voltarem para pegar o menino, eles percebem que ele simplesmente desapareceu. Após uma rápida e ineficaz procura, Ana e Mateo decidem chamar a polícia para ajudá-los, e enquanto os agentes fazem as buscas com ajuda de reforços e até de cães farejadores, não somente a história vai sendo finalmente desvendada como toda a relação deste casal em relação ao filho.

Através dos diálogos, múltiplos sentimentos vem à tona. Fica claro que Ana é responsável pela educação quase integral do filho, e por consequência, é também a responsável pelas broncas e reprovações, enquanto Mateo é visto como o "pai bom", pois praticamente só está com o filho nas horas de lazer. Até mesmo na hora de recriminá-lo por algo errado, ele também se mostra muito mais flexível do que a mãe. No meio disto, outros pontos também passam a ser debatidos entre eles, até que Ana revela uma dura opinião que ela guarda há anos dentro de si: a de que ela não queria ter tido filhos, e desde que isso aconteceu nunca mais conseguiu ser feliz.

A pressão que sempre foi exercida pela sociedade em cima das mulheres para que elas tenham filhos, fez com que isso se tornasse quase uma obrigação para elas, mesmo que não fosse o desejo. De alguns anos para cá esta realidade vem sendo mudada, mas não tem como negar que ela ainda existe, mesmo quando recai indiretamente. Uma mulher que não quer ter filhos por opção pessoal ainda é vítima de inúmeras críticas, e o assunto ainda é quase um tabu. O diretor aborda este tema com extremo realismo, e tenho certeza que muitas pessoas irão se identificar.


El Castigo é um filme denso, impactante, e que vai construindo sua tensão aos poucos. Por ser um filme em que os diálogos e as expressões dos atores comandam as emoções do espectador, era imprescindível ter um bom elenco por trás, e a atuação de Antonia Zerges é simplesmente fenomenal. É possível sentir toda a dor e a angústia que ela carrega por estar inserida numa vida que ela não queria, mas que se viu obrigada a estar. Ela deixa claro que ama o filho mais do que tudo, isso é importante frisar, mas tem a coragem de dizer que seria mais feliz se não o tivesse tido, pois sabe que sua vida nunca mais foi a mesma. É uma personagem à beira do precipício, que não consegue mais sentir nada, apenas tristeza, e que finalmente parece ter tido a coragem de colocar isso para fora.

sexta-feira, 19 de janeiro de 2024

Crítica: A Cor Púrpura (2023)


Lançado em 1982 pela escritora norte-americana Alice Walker, A Cor Púrpura logo se tornou um dos livros mais importantes sobre a discriminação racial, o abuso sexual e o machismo pungente numa época onde mulheres não tinham direito algum. Três anos depois Steven Spielberg levou a história aos cinemas, com um filme que chegou a concorrer a 11 Oscars. A obra de Spielberg elevou ainda mais a importância dos temas abordados, sendo um filme duro e pesado de assistir, mas ainda assim extremamente belo, sobretudo pelas ótimas participações de Whoopi Goldberg e Oprah Winfrey. Após se tornar um musical de sucesso na Broadway, em 2023 chegou a vez da história ganhar novamente as telas, agora sob a direção de Blitz Bazawule, e com produção do próprio Steven Spielberg em conjunto com Oprah Winfrey e Quincy Jones (também produtor do primeiro filme).


A história acompanha Celie (interpretada por Phylicia Mpaci quando jovem e por Fantasia Barrino quando adulta) e Nettie (Halle Bailey quando jovem e Ciara quando adulta), duas irmãs que vivem com o pai na costa da Geórgia, sul dos Estados Unidos. Elas acabam sendo separadas quando Celie é obrigada a casar com um homem mais velho (Colman Domingo), e Nettie foge de casa após sofrer abusos do pai. Por anos Nettie tenta se corresponder por cartas com a irmã, mas todas são interceptadas e escondidas pelo marido de Celie, cortando completamente qualquer vínculo que ainda poderia existir entre as duas.

Além de viver praticamente enclausurada dentro de casa, onde passa os dias fazendo os afazeres domésticos, Celie ainda sofre com a violência e os abusos do marido, que exige que ela esteja a todo momento disponível para ele. A vida dela passa a mudar quando ela conhece a cantora de blues Shug Avery (Taraji P. Henson), que vem até a cidade para algumas apresentações e fica hospedada na casa do casal. Ao mesmo tempo ela também conhece Sofia (Danielle Brooks), que se torna sua nova nora, e que por sua vez tem um jeito muito leve de levar a vida, completamente livre das amarras machistas que a sociedade da época impunha.


O roteiro inegavelmente dá uma boa suavizada na história original, sendo acima de tudo um filme sobre a perseverança e a fé de uma personagem diante das dificuldades. Mas o que mais incomoda de fato é a sua execução. Por muitos momentos, os saltos temporais não dão tempo suficiente para que a história seja desenvolvida como deveria, e muita coisa importante, tanto do livro como do filme anterior, acaba ficando de fora. Em outras palavras, é tudo muito atropelado, e isso inclusive tira todo o impacto que a cena final deveria ter. Os números musicais até encantam em boa parte do tempo, mas alguns parecem meio dissonantes do que está sendo contado na história. O grande mérito do filme acaba ficando apenas na questão técnica, como nos figurinos e na bela fotografia de Dan Laustsen, mas narrativamente é decepcionante.

terça-feira, 16 de janeiro de 2024

Crítica: The Old Oak (2023)


Depois de 57 anos dedicando sua vida ao cinema, o britânico Ken Loach anunciou que The Old Oak infelizmente será o seu último filme da carreira. Aos 87 anos de idade, ele é um dos nomes mais importantes quando se fala em cinema político e de relevância social, e grande parte de sua obra trata justamente dos dilemas da classe operária e da camada mais pobre da população. Inclusive, dois dos seus melhores filmes foram feitos recentemente, onde Loach tratou temas como a burocracia para conseguir uma justa aposentadoria (Eu, Daniel Blake) e a precarização do mercado de trabalho atual (Você Não Estava Aqui). Já em The Old Oak, o ponto central novamente são as desigualdades e as injustiças intrínsecas da sociedade, mas desta vez abordando também a importante e pungente questão da imigração.


Situado em um pequeno vilarejo no noroeste da Inglaterra, o filme inicia com a chegada de uma van no local, que está trazendo refugiados sírios que irão viver no bairro. A presença deles logo desperta a ira de um dos moradores, que imediatamente passa a provocar o grupo e chega a quebrar a câmera fotográfica de Yara (Ebla Mari), uma das refugiadas. Decidida a consertar o objeto que para ela tem muito valor sentimental, Yara pede ajuda para TJ Ballantyne (Dave Turner), o dono do The Old Oak, o único pub ativo da cidade, que imediatamente se mostra solícito com o grupo.

O The Old Oak é conhecido por ser o único local onde o povo local ainda consegue se reunir para conversar, beber uma cerveja e relaxar, mas é também o local onde o proprietário ouve os maiores absurdos xenofóbicos vindos por parte dos moradores. A grande revolta dos locais em relação aos novos vizinhos é reflexo do desalento e da desesperança que eles enfrentam ao viverem há mais de 40 anos esquecidos pelo governo, depois que a mina local que dava sustento à cidade foi encerrada. Veja bem, evidente que há sim sinais de xenofobia e preconceito religioso, mas o que Loach consegue fazer é também trazer o ponto de vista destas pessoas, por mais odioso que ele seja. O que eles não conseguem enxergar é que as pessoas que ali estão refugiadas e recebendo ajuda de organizações não governamentais também são vítimas de sistemas cruéis, além de estarem fugindo de cenários devastadores como a fome e a guerra. E é basicamente sobre esta falta de empatia que o filme discorre, mas também da solidariedade que aflora em outros.


Infelizmente nem tudo são flores neste trabalho de Loach, e o filme me afastou um pouco quando senti que ele queria manipular as emoções do espectador muito mais do que deveria. Há uma necessidade de forçar um choro aqui, outro acolá, e isso acaba atrapalhando o desenrolar da história. As atuações também me pareceram um tanto superficiais, deixando com que o filme caísse no marasmo muito cedo. A mensagem está ali e não deixa de ser importante, mas longe de ter a mesma força que já foi possível ver em outros filmes do diretor.


quarta-feira, 10 de janeiro de 2024

Crítica: Concrete Utopia (2023)


Muita gente vai olhar as informações deste filme e pensar que se trata de mais uma obra de catástrofe "hollywoodiana", como tantas que são lançadas anualmente nos cinemas, sobretudo pelo nome traduzido para o Brasil: Sobreviventes - Depois do Terremoto. Representante da Coreia do Sul pro Oscar de filme internacional em 2024, o filme do diretor Tae-hwa Eom mostra sim uma catástrofe de proporções inimagináveis, mas de uma maneira mais complexa e profunda do que se costuma ver em filmes do gênero, criando uma alegoria distópica recheada de crítica social.


O diretor inicia o filme discorrendo sobre como as grandes cidades foram aos poucos se transformando em "selvas de pedra", onde prédios cada vez mais altos foram se aglomerando e criando toda a paisagem urbana que nós conhecemos hoje. Isso é feito através de entrevistas e matérias televisivas do passado, que mostram o porquê das pessoas terem optado gradativamente de viver em apartamentos ao invés de casas. A introdução logo dá lugar ao grande acontecimento do roteiro: um terremoto destruidor que acaba com a cidade de Seul inteira, deixando todos os prédios no chão, com exceção de um.

O conjunto de apartamentos Hwang Gung é o único que fica misteriosamente de pé, e os moradores precisam não apenas reconstruir a vida em meio aos destroços e lutar por recursos, mas também lidar com centenas de sobreviventes dos outros condomínios que querem invadir e morar no local para fugir do frio dilacerante que faz na rua. Essa premissa cria um embate moral muito interessante, que serve para mostrar sobretudo como nós humanos lidamos em situações extremistas. Ao mesmo tempo que vemos o lado mais egoísta e covarde das pessoas, que cria uma escalada de violência tão nociva quanto o próprio desastre que iniciou tudo, vemos também o lado da solidariedade e da empatia, e o filme consegue apresentar muito bem essa dualidade.


O diretor não define heróis e vilões nesta história, ficando a cargo do espectador tomar seu próprio partido. Afinal, é impossível não analisar como se estivéssemos na mesma situação, e eu confesso que não sei como reagiria. O único ponto que ficou bem deslocado foi o humor que é utilizado em alguns momentos, principalmente no início, e que não encaixou legal com a história. É um filme que vai gerar entretenimento pelo capricho nos cenários e pelas grandiosas cenas de ação, mas que vai sobretudo gerar reflexão sobre o comportamento humano e suas controvérsias.

terça-feira, 9 de janeiro de 2024

Crítica: 20 Days in Mariupol (2023)


Assim como eu, você que está lendo isso provavelmente nunca teve e nem vai ter a dimensão real do que é vivenciar uma guerra, e temos que agradecer todos os dias por isso. Por mais que alguns digam que vivemos inseridos em uma "guerra diária", por conta da violência urbana, jamais podemos comparar uma coisa com a outra. Acredito que nada pode ser mais desesperador do que ver sua cidade completamente destruída por bombas, seus amigos e conhecidos sendo mortos na sua frente, e não ter para onde correr. Do ucraniano Mstyslav Chernov, 20 Days in Mariupol acompanha um grupo de três jornalistas, incluindo o próprio Mstylav, que registraram de forma brutal o início da invasão russa na Ucrânia em fevereiro de 2022.


Estima-se que o cerco russo na cidade estratégica de Mariupol levou mais de 25 mil pessoas a óbito, e as câmeras mostram isso da forma mais próxima e sufocante possível. Com exceção do desfoque que é dado nos rostos dos mortos, todo o resto é mostrado sem filtro. São inúmeros corpos jogados pelas ruas e enterrados em grandes valas abertas, além de mutilações diversas causadas pelos estilhaços das bombas. Além disso, as filmagens também registram o desespero das vítimas e a angústia dos seus familiares, e todo o esforço conjunto dos profissionais de saúde e dos soldados, que precisam lidar com o caos instaurado e os poucos recursos disponíveis.

Muito se discute sobre o limite do que pode ser retratado em vídeo numa situação como essa, mas eu não vejo de forma alguma o filme como sensacionalista. Pelo contrário, são imagens duríssimas sim, mas que precisam ser mostradas, principalmente para aqueles que ainda acham que uma guerra pode ser divertida igual no videogame. E diferentemente do que a Rússia tentou argumentar, são imagens reais, não são encenações. É o pesadelo de uma guerra mostrado da forma mais crua possível, e justamente por isso dói tanto.


É de se admirar a coragem destes jornalistas, que se mantiveram firmes na linha de frente para registrar cenas que poderiam ter passado batidas, e que só rodaram o mundo por causa deles. Em alguns momentos, foi possível sentir tensão e medo como se eu mesmo estivesse no local, principalmente quando passam aviões no céu e ninguém sabe onde irá cair a próxima bomba. O único ponto negativo foi a narração em off feita pelo jornalista, num tom que ao meu ver não combinou e soou forçado em diversos momentos.

Por fim, 20 Days in Mariupol é acima de tudo um filme denúncia, que se torna ainda mais doloroso se pensarmos que isso está acontecendo agora mesmo, não só na guerra da Ucrânia, mas também em outros conflitos como a guerra entre Israel e Palestina. Assim como em todas as guerras históricas que se tem notícia, quem sofre verdadeiramente com tudo são vidas inocentes, muitas vezes crianças, enquanto os verdadeiros responsáveis estão vivendo em segurança e muito tranquilos por acharem que estão fazendo o certo. E isso causa um sentimento de revolta indescritível.

segunda-feira, 8 de janeiro de 2024

Crítica: Propriedade (2023)


Incômodo, sufocante e provocador. Assim eu começaria definindo Propriedade, filme do diretor pernambucano Daniel Bandeira, que através de uma situação específica disserta de forma simbólica sobre a luta de classes, e disseca a face mais crua da barbárie humana, desafiando a nossa moral diante do que passa na frente dos nossos olhos.


O filme inicia mostrando o casal de classe média alta Roberto (Tavinho Teixeira) e Teresa (Malu Galli), que vivem junto com a filha adolescente em uma casa de alto padrão. Teresa é uma estilista de sucesso, mas está vivendo reclusa desde que uma situação de violência urbana aconteceu com ela. Tentando aliviar a cabeça da esposa e fazer com que ela esqueça um pouco este trauma, Roberto planeja passar um fim de semana na fazenda da família. Além disso, faz questão de comprar um carro totalmente blindado para dar de presente à ela, para que ela possa se sentir mais segura para conseguir voltar a sair de casa.

Quando o casal chega na fazenda, logo se depara com algo assustador, mas imediatamente o filme corta para um flashback, que apresenta outra narrativa que em poucos minutos irá convergir com esta. Nesta história paralela, acompanhamos os trabalhadores desta fazenda, que possuem um regime praticamente análogo a escravidão, e que do nada recebem a notícia de que o local será fechado para virar um hotel e eles terão que ir embora. Para piorar, eles não terão os documentos liberados enquanto não acertarem suas dívidas, mas como pagar se o "salário" que recebem é em refeições e teto para dormir? Naturalmente uma rebelião inicia entre eles, em uma escalada de violência que sai completamente do controle.


Quando o grupo ataca o casal dono da fazenda, Teresa consegue escapar e se refugia no carro, que por um motivo muito curioso ela não consegue ligar. O veículo acaba virando uma fortaleza intransponível, e o grupo de trabalhadores passa o restante do filme tentando mil e uma alternativas para forçá-la a sair lá de dentro, torturando-a fisica e mentalmente. Enquanto isso, muitos embater acontecem entre eles mesmos, já que alguns aparentemente são adeptos do diálogo enquanto outros querem matá-la a qualquer custo. Mas é evidente que a situação já chegou em um ponto onde não há como tentar resolver de forma razoável, e todos, absolutamente todos, sairão perdendo disso.

O que pesou negativamente no filme para mim, é o fato dele ser bem controverso em seus pontos de vista. Naturalmente eu ficaria do lado dos trabalhadores em uma situação de injustiça, mas aqui, não tem como defender as suas ações. Por mais que o diretor trabalhe bem os motivos da revolta, e nos faça ter empatia por eles, a reação jamais pode ser tão desproporcional como acaba acontecendo. A comparação com Bacurau, de Kléber Mendonça Filho, é inevitável pela premissa, mas diferentemente do filme de Kléber, aqui não temos um mal a ser combatido, propriamente dito, e os personagens parecem muito mais irracionais em suas atitudes, como . Tenho certeza que a intenção do diretor não era "demonizar" um dos lados, sobretudo o dos trabalhadores, mas é o que de certa forma acaba acontecendo.


Em termos de suspense, o filme cumpre magistralmente o seu papel, pois é impossível não ficar absolutamente angustiado com tudo que está acontecendo. Destaco também a atuação da Malu Galli, que está incrível na pele desta personagem que não tem quase nenhuma fala, mas possui uma expressividade no olhar que impressiona e fala por si só. Propriedade é daqueles filmes que ficam presos na cabeça dias após assisti-lo, tamanha intensidade, e que certamente ainda vai gerar bons debates.

domingo, 7 de janeiro de 2024

Crítica: O Melhor Está por Vir (2023)


Com cinquenta anos de carreira completados em 2023, Nanni Moretti pode ser considerado facilmente um dos cineastas mais notáveis da história do cinema italiano, e eu sou um grande admirador do seu trabalho desde O Quarto do Filho (2001). Em O Melhor Está por Vir, Moretti mais uma vez abusa da ironia, e utiliza a metalinguagem de forma muito sagaz para criticar a forma de fazer e consumir cinema hoje em dia.


Na trama acompanhamos o diretor de cinema Giovanni, que assim como na maioria dos filmes de Moretti, é interpretado pelo próprio diretor. Giovanni está tentando rodar um filme que se passa na Itália dos anos 1950, e que acompanha um grupo militante do Partido Comunista Italiano. A presença de um circo vindo de Budapeste, e consequentemente da amizade feita pelos membros com o povo da vila, faz com que o grupo entre em conflito com a própria ideologia, ao comprar a luta do povo húngaro contra a invasão hostil do seu país executada pela União Soviética.

Ao longo de todo o filme, acompanhamos os bastidores desta gravação e dos obstáculos que atrapalham Giovanni nas filmagens das cenas, além dos obstáculos que ele mesmo cria por ser exigente demais e não aceitar mudar sua visão original do roteiro. Quem tem os maiores embates com ele sobre isso é sua própria mulher, Paola (Margheritta Buy), que trabalhou a vida inteira como produtora de seus filmes. O casamento também está em crise por uma série de fatores, é e outra coisa que Giovanni precisa lidar em meio ao caos. Moretti utiliza o artifício do "filme dentro do filme" para despejar em tela várias reflexões sobre o cinema, a política e o grande conflito que existe entre gerações, sobretudo quando ele auxilia um diretor em ascensão no seu longa de ação.


Talvez a grande cena do filme, e que concentra boa parte da crítica que Moretti tenta apresentar, seja a que Giovanni se encontra com executivos da Netflix, que querem comprar seu filme. No entanto, para ele ter a obra lançada nos 190 países em que a Netflix tem cobertura (os executivos frisam bem esse número expressivo), ele precisa abrir mão de uma série de liberdades artísticas, ficando a mercê deste novo jeito de fazer cinema, baseado em algoritmos. Obviamente ele não aceita as mudanças, e prefere continuar com um orçamento precário, mas com um filme verdadeiro e 100% seu. Com um final "Felliniano", Moretti brinca com as possibilidades do real e do abstrato no cinema, culminando em um belíssimo ensaio metafórico sobre a arte.

sábado, 6 de janeiro de 2024

Crítica: A Memória Infinita (2023)


Depois do maravilhoso O Agente Duplo, a cineasta chilena Maite Alberdi volta a tocar no sensível tema da velhice, mas dessa vez sob a ótica de alguém que está sofrendo com o duro processo de perda de memória causado pelo Mal de Alzheimer. A Memória Infinita (La Memoria Infinita) é um retrato intimista e comovente da doença, mas vai muito além disso, e fala também de como o resgate da memória é fundamental não somente na esfera individual, mas sobretudo no coletivo, quando faz questão de relembrar o passado sangrento do Chile.


O documentário conta a história de amor entre Augusto Góngora, um jornalista combativo que registrou a realidade chilena durante a ditadura de Pinochet, inclusive de forma clandestina e colocando sua própria vida em risco, e Paulina Urrutia, uma famosa atriz que chegou a ser Ministra da Cultura há poucos anos atrás, e que ainda segue ativa na carreira teatral. O filme mistura filmagens feitas pela equipe de Alberdi com cenas caseiras filmadas pela própria Paulina, sobretudo no período da pandemia de Covid-19, onde o casal precisou ficar isolado. Apesar de ter sido uma alternativa emergencial para seguir com o projeto, isso deixou o filme com um aspecto ainda mais íntimo.

A questão principal do filme é justamente mostrar o paradoxo que há em relação a Augusto, um homem que por anos lutou para que a memória triste de seu país não fosse apagada, mas que agora vê a sua própria memória se esvaindo aos poucos. E através das imagens de arquivo (muitas delas feitas por ele mesmo), livros e fotos, Augusto vai reconstituindo um pouco do que ele era, e o filme vai usando isso para montar quase um documentário tributo ao jornalista, que faleceu em maio do ano passado. 


O início do filme é bastante cativante, mas ele acaba ganhando ares bem dramáticos quando a falta de memória, a confusão mental, e os ataques de raiva consequentes disso aumentam com o tempo, mostrando a realidade crua da doença e o quanto ela afeta a vida de quem também está junto. Só quem já teve algum parente com Alzheimer, sabe a dor de ver a pessoa amada se tornar uma outra completamente diferente, além dela esquecer até mesmo de você. E isso também é mostrado de forma muito emocional. Maite Alberti demonstra mais uma vez uma aptidão única para abordar temas profundos com extrema delicadeza. É um filme lindo em sua essência, ainda que relativamente triste.

sexta-feira, 5 de janeiro de 2024

Crítica: A Sociedade da Neve (2023)


A "Tragédia dos Andes", como posteriormente ficou conhecida, é uma das histórias de sobrevivência mais comoventes e impressionantes que se tem notícia. Meu primeiro contato com ela foi no final dos anos 1990, quando li um livro que contava detalhes de tudo que aconteceu, antes mesmo de assistir o clássico Vivos dirigido por Frank Marshall e estrelado por Ethan Hawke. Escolhido para representar a Espanha no Óscar de melhor filme internacional em 2024, A Sociedade da Neve (La Sociedad de la Nieve) traz novamente a história à tona, e de uma maneira grandiosa nas mãos do diretor J. A. Bayona.


Em 13 de outubro de 1972, um avião partiu do Aeroporto de Carrasco no Uruguai em direção ao Chile, levando um time de jovens jogadores de rugby junto com seus familiares e amigos, e mais cinco tripulantes, totalizando 45 passageiros no total. Ao passar por cima da Cordilheira dos Andes, o avião perdeu o controle e acabou caindo na imensidão das montanhas nevadas. Apesar da violência do acidente, um grupo de pessoas conseguiu sobreviver à queda, e durante 72 dias lutaram para se manter vivas, em meia a fome e a um frio brutal.

Assim como fez em O Impossível, onde ele narra a chegada do tsunami que devastou a Tailândia em 2004, aqui o diretor também consegue fazer brilhantemente a transição entre a calmaria e o desespero de uma situação inesperada. Se no primeiro vemos um casal tendo as férias interrompidas pela tragédia, aqui acompanhamos jovens atletas que estão extremamente animados com a tão sonhada viagem ao Chile. A cena do acidente é extremamente angustiante e realista, e o excelente trabalho técnico acaba criando uma imersão impressionante. Outro ponto a exaltar é a visão quase contemplativa que o diretor faz das montanhas, sempre mostrando a grandiosidade delas em comparação com o tamanho dos restos do avião. Há inclusive uma cena em que outro avião passa por cima e a gente chega a se questionar como ele não viu os sobreviventes, mas logo a câmera mostra toda a imensidão vista de cima, e logo conseguimos entender o porquê.

Um dos pontos que mais chocam nesta história, e que sempe foi motivo de controvérsias, é o fato dos sobreviventes terem comido a carne dos mortos para conseguir sobreviver. Bayona não deixa que isso seja o principal elemento da narrativa, e consegue trabalhar esse fato com muito respeito, equilibrando a questão moral e deixando claro que apesar de terem praticado "canibalismo", em nenhum momento eles perderam a humanidade e o respeito por aqueles mortos. Há que se destacar também o elenco, todo composto por atores desconhecidos, o que é um grande acerto da direção, já que isso deixa o filme muito mais crível. No entanto, se o diretor acerta em cheio no desenvolvimento dos personagens e da relação entre eles, por outro lado ele exagera um pouco a mão na dramaticidade, soando até um pouco meloso demais em algumas cenas mais longas. Outro artifício que não parece ter encaixado bem foi a narração em off, feita pelo personagem Nando, e que as vezes parece um pouco deslocada do restante.


Para além de uma história que evidencia os 16 "heróis" que sobreviveram, A Sociedade da Neve acaba sendo principalmente uma homenagem a todos os mortos, com seus nomes sendo estampados e registrados em tela através de subtítulos. No total, foram 29 óbitos, contando os que faleceram na queda e aqueles que morreram depois por não suportarem as adversidades. Um filme tenso e potente, de uma história que jamais será esquecida.

quinta-feira, 4 de janeiro de 2024

Crítica: Perfect Days (2023)


Inicialmente, antes de falar do filme em si, preciso começar esta crítica dizendo o quão gratificante é ver um dos meus diretores favoritos filmando com tanta paixão no alto dos seus 78 anos de idade. Responsável por obras-primas como "Asas do Desejo", "Paris, Texas" e "No Decurso do Tempo", Wim Wenders tem uma sensibilidade ímpar em seus trabalhos, tanto nas histórias de ficção como nos documentários, e isso é o que não falta em Perfect Days, um dos filmes mais bonitos que vi nos últimos anos.

 


A trama acompanha Hirayama (Koji Yakusho), um senhor de meia idade que trabalha limpando banheiros públicos em Tóquio. A rotina de Hirayama é idêntica a de qualquer um de nós: ele acorda cedo, faz sua higiene pessoal, e antes de sair não esquece de regar suas plantinhas. São gestos lentos e silenciosos, que de forma automática se repetem dia após dia, e isso é mostrado com bastante paciência pelo diretor. E apesar de não parecer, Hirayama aparenta ser muito feliz nesse seu modo de viver, sendo um homem simples e de pouquíssimas palavras. 

 

As interações de Hirayama com o mundo externo são episódicas, assim como são as nossas. Se pararmos para analisar nosso dia a dia, também temos várias interações que depois irão passar despercebidas, com pessoas que muitas vezes nós nunca mais veremos. Nas duas horas de filme ele interage de forma mais longa apenas com o colega de trabalho Takashi e sua namorada, além de uma sobrinha que vai passar um tempo com ele após brigar com a mãe. Nada grandioso, mas tudo emocionalmente potente.

 

Apaixonado por música, Hirayama sempre vai e volta do trabalho ouvindo suas fitas cassetes favoritas, que vão de Rolling Stones a Lou Reed, de Patti Smith a Van Morrison, e o trabalho musical é apaixonante, fazendo toda a diferença no filme. Além das fitas cassetes, ele também usa uma máquina analógica para tirar fotos de árvores e plantas, e passa o tempo lendo livros que compra em um sebo, o que mostra ainda mais como é um homem pouco dado às modernidades.


 

Alguns podem dizer que é um filme onde "nada acontece", e na verdade eles não estariam tão errados. No entanto, o diretor mostra essa rotina de um homem comum com tanta sensibilidade, que é impossível não se emocionar e não parar para refletir sobre nós mesmos e as nossas próprias rotinas. Vencedor do prêmio de melhor ator em Cannes, Koji Yakusho está realmente brilhante no papel, e eu confesso que ficaria mais horas e horas acompanhando a rotina dele, sem problema nenhum. Perfect Days traz a solidão do mundo moderno em sua essência, de forma contemplativa e poética, e acaba sendo um filme grandioso justamente nessa sua simplicidade.

terça-feira, 2 de janeiro de 2024

Crítica: Amerikatsi (2023)


Representante da Armênia no próximo Óscar de melhor filme internacional, Amerikatsi usa um tom satírico e quase fabulesco para falar sobre os traumas pesados que o povo armênio carregou ao longo de todo século XX, desde o genocídio orquestrado pelo Império Turco-Otomano entre 1915 e 1923 até a longa sequência em que ficou sob o regime da União Soviética após a Segunda Guerra Mundial.


O filme acompanha Charlie (interpretado pelo próprio diretor Michael A. Goorjian), que saiu refugiado da Armênia em 1915 quando ainda era criança. Antes de partir, ele ainda viu sua mãe ser morta de forma covarde e violenta, com um tiro na cabeça, algo que o traumatizou pelo resto da vida. Mais de 30 anos se passaram, e após a Segunda Guerra Mundial, a União Soviética de Josef Stalin tomou conta da Armênia e decidiu repatriar as vítimas daquele período que ainda estivessem vivas. Um deles acaba sendo o próprio Charlie, que decide voltar ao país após décadas vivendo nos Estados Unidos.

Logo que Charlie chega no país, ele percebe que a realidade é completamente diferente da que foi oferecida. Acusado de ser um espião americano e de trazer a propaganda capitalista para o país, ele é condenado a ir para os campos de trabalhos forçados na Sibéria, mas por um acaso do destino acaba ficando no próprio território armênio, em uma prisão soviética, onde junto com outros presos irá ajudar na reconstrução de um muro. 

Durante a prisão, ele passa os dias na grade assistindo a vida de um casal que mora em um prédio ao lado. Charlie usa esse "vouyerismo" para driblar a própria solidão da cela, se alimentando no mesmo momento que o casal como se estivesse na mesa junto, simulando conversas, e até mesmo festejando junto quando eles recebem visitas. O homem vigiado é conhecido como Tigran, e é um dos guardas que cuida da prisão lá do alto de uma torre. Aspirante a artista, ele é apaixonado por pintar, mas precisa fazer isso de forma muito escondida, já que o exército proíbe terminantemente o seu tipo de arte. E a relação que se cria à distância entre Charlie e Tristan é bem interessante de acompanhar.

 

O filme tem um humor muito peculiar, que no início até pode incomodar um pouco, mas não deixa de apresentar com muita solidez o drama deste povo que por um longo período de tempo não conseguiu ter um lugar no mundo para chamar de seu. Dedicado ao avô do diretor, que muito provavelmente deve ter tido sua história usada como influência para o roteiro, Amerikatsi é uma história agridoce sobre a guerra e o verdadeiro conceito de liberdade.

segunda-feira, 1 de janeiro de 2024

Crítica: Io Capitano (2023)


O tema da imigração tem sido recorrente no cinema europeu, principalmente pelo fato do continente estar vivenciando desde 2015 a maior onda de refugiados após a Segunda Guerra Mundial. São milhares de pessoas que todos os dias se arriscam para fugir de guerras e do estado de pobreza extrema em seus países de origem, com intuito de tentar levar uma vida digna nos grandes centros, e Io Capitano, novo filme do italiano Matteo Garrone, aborda esta questão de forma angustiante, em um dos filmes mais tensos e necessários do ano.


Vencedor do Leão de Prata em Veneza, e escolhido para representar a Itália no Óscar de melhor filme internacional, o filme acompanha Seydou (Seydou Sarr) e Moussa (Moustapha Fall), dois jovens senegaleses que decidem guardar algumas economias para fugir do país e tentar ganhar a vida na Europa. Ao contrário de outros imigrantes que fogem de guerras, eles aparentemente vivem numa certa tranquilidade, e a principal motivação é melhorar a vida da família e tentar ma carreira musical. Mesmo contando com a negativa da família, eles partem às escondidas de Dakar rumo à Síria, onde irão começar a jornada pelo deserto do Saara, tendo como meta alcançar o sul da Itália. 

Ao longo de duas horas, acompanhamos a odisseia destes meninos, que precisam enfrentar não somente os perigos naturais do percurso, como a maldade humana no seu estado mais puro, na pele de policiais e rebeldes que se aproveitam da situação de desespero para enriquecer às custas das pessoas, ou usá-las em trabalhos forçados. O roteiro tem muita sobriedade e conduz tudo como se fosse uma grande aventura. O primeiro ato contextualiza e apresenta muito bem estes dois personagens e suas motivações, o que ajuda a criar uma empatia instantânea por eles. Já o segundo ato ganha ainda mais força ao mostrar a jornada dos dois, os perigos, os sofrimentos, mas sobretudo a resiliência de continuarem firmes em suas missões. O último ato é o mais tenso de todos, principalmente quando Seydou precisa se responsabilizar pela vida de centenas de imigrantes como ele, ao comandar um barco pelo mar mediterrâneo (daí o nome do filme).


Mais do que a jornada física, os protagonistas passam também por uma jornada de amadurecimento. Afinal, eles saíram de seu vilarejo com uma esperança quase ingênua, sem ter a mínima noção do que poderiam encontrar pelo caminho, e ao final já eram pessoas completamente diferentes. Mas ainda assim, com o mesmo coração e a mesma humanidade. O prêmio de melhor atuação estreante em Veneza foi justíssimo para Seydou Sarr, que está impecável, em uma das atuações masculinas mais fortes que vi este ano. É um filme doloroso, impactante e visceral, que grita, assim como seu personagem principal no final, por soluções.