quarta-feira, 30 de novembro de 2022

Crítica: Soft & Quiet (2022)


Desconfortável como um bom filme de terror deveria ser, mas eu não estou falando de um filme de terror. Soft & Quiet, da diretora brasileira naturalizada norte-americana Beth de Araújo, não tem elementos paranormais, não tem assassinos em série, não tem exorcismos e muito menos sustos, mas é amedrontador da mesma forma, apenas por mostrar uma realidade que está cada vez mais entre nós.


O filme segue uma única tarde na vida de Emily (Stephanie Estes), uma professora do ensino fundamental que sai da sua aula direto para uma reunião com outras mulheres em uma igreja isolada no meio do nada. Aparentemente é um encontro de amigas, regado a torta e chá, mas não demora para descobrimos qual o verdadeiro intuito desta reunião, e o choque acaba sendo instantâneo. Emily, na verdade, é filha de um membro da Klu Klux Klan, e está na liderança de um grupo de mulheres que se orgulham de serem da "raça ariana" e se reúnem para, segundo elas, poderem expor seus sentimentos sem medo de serem julgadas pela sociedade.

O uso de suástica e de gestos nazistas é sempre levado na brincadeira por elas, que entre um gole e outro de chá, destilam todo o ódio que sentem da "cultura da diversidade", que faz com que negros, judeus e imigrantes tenham os mesmos direitos e ocupem os mesmos espaços que elas. O próprio movimento "black lives matter" é citado com escárnio por elas, que preferem usar o termo "all lives matter". Ora, parece que já vimos isso em algum lugar, não é mesmo?



O grande acerto da diretora é mostrar que o discurso de ódio mais perigoso não está naqueles em que é nítido perceber isso, mas em pessoas como estas mulheres, donas de lojas, professoras e donas de casa, que se escondem muito bem atrás de uma aparência delicada e "familiar". Emily inclusive fala em uma cena específica sobre como elas devem espalhar suas ideias para outras pessoas de uma forma leve e suave, inclusive utilizando as crianças, pois isso ajuda a agregar mais adeptos para a causa. A única que parece destoar do resto é Leslie (Olivia Luccardi), que usa uma jaqueta onde está escrito "amo odiar" em alemão (Liebe Zu Hassen).

Evidentemente, não tem como não compararmos o que vemos no filme com algumas situações que vivenciamos nestes últimos anos aqui no Brasil. Vimos políticos e simpatizantes da extrema direita fazendo gestos supremacistas em frente às câmeras, pessoas desfilando livremente com símbolos nazistas em suas camisetas ou tatuados pelo corpo, e até mesmo uma professora fazendo saudação com o braço levantado em uma sala de aula. E o que todos eles têm em comum? São pegos, acabam na mídia, e saem dizendo que tudo não passou de um mal entendido.
 

É preciso destacar ainda que o filme foi filmado inteiramente em um único plano sequência, em um trabalho primoroso da direção. O ato final até parece um pouco superficial, mas acaba sendo na verdade uma metáfora, que mostra como funciona a escalada desses discursos de ódio. No fim, o ódio, mesmo disfarçado e dito pela boca de pessoas trabalhadoras e de família, segue sendo ódio, e mata igual. E essa mensagem é extremamente forte no ato final.
 

segunda-feira, 28 de novembro de 2022

Crítica: Armageddon Time (2022)


Tem sido cada vez mais frequente vermos diretores trazerem memórias de sua infância para as telas dos cinemas. Foram vários exemplos nestes últimos anos, como Roma (Alfonso Cuarón), Belfast (Kenneth Branagh) e A Mão de Deus (Paolo Sorrrentino), e o mais novo filme a entrar para a lista é Armageddon Time, de James Gray.


O filme se passa nos anos 1980 e inicia em uma escola pública do Queens, região de Nova Iorque, onde Paul (Michael Banks Repeta) e Johnny (Jaylin Webb) criam uma forte amizade mesmo vindo de realidades bem distintas. Paul é de uma família judia que tem muito dinheiro. Johnny, por sua vez, é um menino negro oriundo da periferia, que possui uma família problemática e sempre acaba sendo punido com mais rigor do que os outros pelo professor Turkeltaub (Andrew Polk), numa clara manifestação de racismo.

Após serem pegos fazendo algo grave na escola, os dois acabam sendo separados. Paul é levado então para estudar na mesma escola particular do irmão mais velho, Ted (Ryan Sell), onde tem muita dificuldade de adaptação já que a instituição possui regras rígidas e é extremamente excludente. Já Johnny, que não tem nenhuma estrutura familiar por trás, decide abandonar os estudos, e tenta continuar vendo o amigo quando pode.

O filme é um "coming of age" clássico, e usa o amadurecimento do personagem para abordar temas como antissemitismo e racismo. É interessante como a família de Paul sofre preconceito por serem judeus, mas ao mesmo tempo desprezam pessoas negras, e é justamente esse um dos motivos de Paul se distanciar cada vez mais das raízes familiares, já que enxerga toda a contradição que existe ali. O sonho de Paul em ser artista também conflita diretamente com o sonho dos pais de vê-lo formado em alguma faculdade, e nessa tentativa de se adequar às expectativas, o menino fica cada vez mais revoltado, tendo como único apoio sentimental o seu avô (Anthony Hopkins).
 

O elenco conta com nomes como Anne Hathaway, Anthony Hopkins e Jeremy Strong, além de uma participação especial de Jessica Chastain como Maryanne Trump (sim, a irmã de Donald Trump), que aparece fazendo um discurso cafona sobre meritocracia, já que o pai, Fred Trump, é o patrono da escola onde Paul foi estudar. Esse casting de peso contribui muito para o garoto Michael Banks Repeta brilhar, em uma grande atuação mirim, e que é para mim o grande destaque do filme. O roteiro, no entanto, peca um pouco em seu final, que acaba sendo bem corrido. Ainda sim, não há dúvidas que é o filme mais honesto e íntimo do diretor, e vale a pena acompanhar essa sua viagem ao passado.
 

sexta-feira, 25 de novembro de 2022

Crítica: Moonage Daydream (2022)


David Robert Jones, conhecido mundialmente como David Bowie, dispensa qualquer apresentação. Ícone da música e da cultura pop, o artista lançou mais de 25 discos entre 1967 e 2016, ano de sua morte, e teve uma carreira marcada por apresentações inesquecíveis, entrevistas polêmicas e um visual único. Na tentativa de mostrar um pouco do que foi a vida e a obra do artista, o diretor Brett Morgen (o mesmo de "Kurt Cobain: Montage of Heck") nos apresenta Moonage Daydream, um documentário fora dos padrões e extremamente singular, do jeito que Bowie merecia.


Com um visual que flerta com o psicodelismo, e muito colorido, Morgen faz um apanhado riquíssimo da vida pessoal e da vida pública de Bowie, fugindo completamente daquela estrutura linear que nos acostumamos a ver em documentários biográficos. São muitas imagens de arquivo, tanto de shows como de videoclipes e entrevistas, que vão formando pouco a pouco a personalidade de Bowie e mostrando o porquê de ele ter chegado onde chegou e conquistado tantos fãs. Bowie era, acima de tudo, um personagem, e ele mesmo fala sobre isso em uma das entrevistas, pois era a forma dele se expressar e ao mesmo tempo esconder suas fraquezas, fugindo da realidade. Porém, fica muito evidente quando entra em cena o David Robert Jones de fato, nos momentos mais emocionantes em que ele conta situações íntimas de sua infância, de seus relacionamentos e fala de suas perspectivas a respeito do futuro, tanto dele como da humanidade. 

Temos falas realmente impressionantes do artista sobre a vida, sobre o amor, e sobretudo a arte, e tudo com muita sensibilidade. Um dos momentos que mais me marcou foi quando ele falou do seu irmão, que foi sua grande referência na infância e depois acabou sendo internado por esquizofrenia, e o medo que ele tinha de seguir os mesmos passos por também ser "diferente". Bowie era uma pessoa inquieta, que gostava de mudar a todo momento, e o filme também explora essas mudanças em sua trajetória, que vão desde o visual até suas constantes mudanças de moradia, como quando foi morar na Berlim dividida pelo muro porque achava que ali era o local ideal para viver sem ser reconhecido nas ruas.

 

Ao mesmo tempo que é bastante sensível, o documentário também é pulsante, e as imagens de Bowie tocando ao vivo são um verdadeiro deleite para quem é fã. O acervo de imagens é vasto, já que esta é a primeira obra 100% autorizada pela família, e o diretor conseguiu utilizar muito bem todo o material que tinha em mãos. Destaque também para as pinturas e esculturas que Bowie fazia em seu tempo livre, que são mostradas e exaltadas em primeira mão com muitos detalhes. Moonage Daydream acaba sendo muito mais do que um simples documentário biográfico, se tornando uma verdadeira experiência imersiva, que acima de tudo exalta a figura de um artista completo e incomparável.
 

domingo, 20 de novembro de 2022

Crítica: Noites Brutais (2022)


"O filme de terror mais surpreendente que você verá este ano". Este foi o slogan utilizado pela 20th Century Studios para vender Noites Brutais (Barbarian), filme que de certa forma surpreende sim, mas pelo nível de displicência que a direção conduz aquele que, para mim, é um dos piores roteiros do ano.


O longa começa com Tess (Georgina Campbell) chegando a um bairro abandonado de Detroit, onde alugou um Airbnb para passar algumas noites enquanto participa de uma entrevista de emprego no centro da cidade. Ao tentar abrir a porta da residência, ela se depara com Keith (Bill Skarsgard), e eles logo descobrem que alugaram a mesma casa para o mesmo período, o que aparentemente parece ser um equívoco do proprietário. Por estar chovendo forte, e pela necessidade de descansar para estar bem na entrevista do dia seguinte, Tess aceita dormir no local, e os dois acabam até mesmo se dando bem, ainda que haja entre eles um claro desconforto e constrangimento pela situação.

Não demora, no entanto, para Tess perceber que tem coisas estranhas acontecendo nesta casa. Quando vai até o porão procurar papel higiênico, ela acaba ficando trancada lá embaixo, e enquanto espera a chegada de Keith para abrir a porta, descobre uma passagem secreta que leva para uma espécie de masmorra. Keith e Tess então se juntam para tentar descobrir o que aconteceu naquele local, mas a vida deles passa a correr um sério risco.


Os primeiros 40 minutos tem um ótimo ritmo, e é essencial para conhecermos os personagens e entrar de cabeça na história. Porém, no meio do filme acontece uma mudança brusca que quebra completamente o ritmo, com a adição de novos personagens, quase como se fosse um filme diferente, e a partir de então o roteiro se perde completamente em uma sucessão de aleatoriedades que se tornam bem difícil de engolir. As atuações são ruins, os diálogos são péssimos, e a montagem fecha com chave de ouro a trinca de motivos para ficar bem longe desta tragédia cinematográfica.


quinta-feira, 10 de novembro de 2022

Crítica: A Mulher-Rei (2022)


Um grande filme épico se faz com uma boa pesquisa histórica, uma qualidade técnica irretocável e um ótimo elenco. E temos tudo isso em A Mulher Rei (The Woman King), filme que resgata a memória de um grupo de mulheres guerreiras do século XIX que lutaram, dentre outras coisas, contra a colonização européia no continente africano.


Conhecidas como "Agojie", essas guerreiras viviam no Reino de Daomé, onde hoje fica localizado o Benin, na África Ocidental, e faziam parte da guarda real do Rei Ghezo. Muitas delas chegavam ao exército depois de serem rejeitadas pelas suas próprias famílias, seja por desobediência, ou simplesmente por não aceitarem casamentos arranjados, e este foi o caso de Nawi (Thuso Mbedu), que rejeitou todos os seus pretendentes e acabou sendo levada à força pelo próprio pai para se tornar uma recruta da general Nanisca (Viola Davis).

Chegando ao palácio, ela logo é inserida nos treinamentos para virar uma Agojie, e passamos a acompanhar um pouco de como funcionava esta preparação, composta de treinos realmente pesados, fisica e mentalmente, onde as meninas aprendiam, acima de tudo, a abdicar de qualquer tipo de sentimento, inclusive a dor. O trabalho de imersão feito pela diretora Gina Prince-Bythewood é elogiável, apresentando não somente cenários majestosos e muito bem feitos, como também enfatizando a imponência dessas mulheres, com suas habilidades e suas feições corporais. Temos também um grande trabalho de direção de elenco, e aqui destaco outros dois nomes que chamam bastante a atenção: Lashana Lynch, que interpreta Izoguie, e Sheila Atim, que interpreta Amenza, duas coadjuvantes que quando aparecem roubam a cena. O único ponto que não encaixou na história foi a inclusão de um romance entre uma das Agojie e um ex-traficante de escravos. Achei forçado e inverossímil essa história do "escravagista que se arrepende", por mais que o enredo tente fazer uma relação do passado dele com o reino de Daomé para tentar justificar que ele não é como seu amigo brasileiro, que está na região para comercializar os escravos.

O roteiro usa a existência destas mulheres para mostrar o horror que era o tráfico de escravos, porém, uma das questões mais contraditórias trazidas por críticos, é o fato do grupo, na vida real, ter contribuído bastante para o esquema escravagista vigente, que vendia os inimigos derrotados por elas como mercadorias. Aliás, o período do reinado de Ghezo foi considerado um sucesso justamente por ter sua economia baseada nas vendas de escravos, o que torna o contexto histórico apresentado um pouco fatídico e prova que existe sim uma certa romantização exacerbada do grupo. Mas, convenhamos, nenhum filme histórico retrata perfeitamente o que aconteceu, então não acredito que isso seja um ponto que estrague a experiência, e trago estes fatos apenas como uma curiosidade.



A Mulher Rei é formulaico e segue um padrão do "bem contra o mal" já visto em centenas de filmes, mas não deixa de ser um dos grandes trabalhos do ano, em tamanho, ousadia, importância e sobretudo em representatividade, trazendo uma história que merece ser conhecida por todos.


domingo, 6 de novembro de 2022

Crítica: Alcarràs (2022)


Vencedor do prêmio principal no último Festival de Berlim e escolhido para representar a Espanha no Oscar 2023, Alcarràs, da diretora Carla Simón, mostra com sensibilidade o dia a dia de uma família de agricultores do interior da Catalunha, que precisa lidar com grandes mudanças em sua rotina por conta da chegada de um novo "patrão".


Há décadas a família Sopé vive do cultivo de pêssegos na cidade de Alcarràs. O negócio foi passando de geração para geração desde que o patriarca da família ganhou as terras em um acordo verbal. Porém, com a morte do antigo dono envolvido no acordo, o seu herdeiro decide pedir as terras de volta, o que cria um clima de aflição e incerteza. Agora quem está cuidando com pulso firme do cultivo é Quimet (Jordi Dolcet), e ele passa a fazer o que está ao seu alcance para evitar que sua família perca o único sustento que os manteve por tantos anos.

Em troca de deixar ficarem no local por mais um tempo, o novo dono começa a forçar um negócio diferente para a família, que envolve painéis de energia solar. A partir de então, o filme passa a analisar a reação de cada um deles diante desta nova tecnologia. Percebe-se que não há a mínima vontade deles em mudar o modo de vida, mas ao mesmo tempo, seria a melhor maneira de garantir sua sobrevivência, e isso acaba dividindo as opiniões.

O roteiro é muito orgânico e realista. Gostei do jeito que a câmera em movimento vai passando lentamente pelas plantações enquanto eles trabalham, assim como ela também mostra de perto os momentos íntimos dentro de casa, como se estivéssemos ali presentes, desde uma conversa informal na cozinha até as brincadeiras das crianças. Aliás, é interessante que boa parte das ações são mostradas pelos olhos infantis, o que passa uma certa ternura e inocência, já que eles estão totalmente alheios ao momento de crise.


Por ter uma narrativa naturalista, o filme acaba fluindo de forma linear, não tendo nenhum "clímax", o que por vezes acaba tornando-o tedioso, principalmente do meio para o final. Ainda assim, consegue falar muito com tão pouco, trazendo à tona a discussão sobre a forma que os trabalhadores do campo são tratados.