sexta-feira, 16 de novembro de 2018

Crítica: Infiltrado na Klan (2018)




"Essa parada é baseada em fatos pesadíssimos". É com essa frase que começa Infiltrado na Klan (Blackkksmann), novo filme do diretor Spike Lee, que volta a mexer na ferida da segregação e do preconceito racial nos Estados Unidos.


No fim dos anos 1970, Ron (John David Washington) começa a trabalhar como policial em Colorado Springs. Por ser negro em um departamento de muito preconceito, ele acaba ficando responsável apenas por cuidar dos arquivos, mas seu desejo é virar detetive. Ele ganha a chance de ir pra rua quando pedem para ele se infiltrar em uma reunião dos Panteras Negras que está para acontecer na cidade.

A operação é um sucesso, e logo Ron decidi ir mais longe, dessa vez do outro lado da história. Ao ver um anúncio da Ku Klux Klan no jornal, ele liga e se mostra interessado a ingressar no grupo. Sua boa lábia é suficiente para fazer com que acreditem que estão diante de um grande potencial, e eles aceitam uma reunião com ele para fazer sua iniciação. Porém, como um homem negro conseguirá se juntar a um grupo que defende a supremacia branca? É aí que entra a figura de Flip Zimmermann (Adam Driver), um policial do mesmo distrito que aceita se passar por Ron nas reuniões do grupo.


Uma das questões mais inteligentes do filme é o fato do policial Zimmermann ser judeu e nunca ter se preocupado com a Ku Klux Klan, pois para ele era algo que passava longe e não lhe trazia perigo algum por ser um homem branco. Se não atingia ele, porque se preocupar com os outros, não é mesmo? Somente depois de começar a frequentar as reuniões que ele enxergou que sua "raça" também não era bem quista, e isso diz muito sobre a maneira egoísta que muitas pessoas pensavam e ainda pensam até hoje em relação a direitos das minorias, sendo que as vezes elas mesmas fazem parte delas.

Spike Lee não economiza nas duras falas racistas, que poderiam até mesmo nos chocar caso não estivéssemos acostumados a ler coisas parecidas nos comentários da internet. No final do filme, são mostradas cenas da passeata nazista ocorrida na cidade de Charlottesville em 2017, que terminou em confusão e chocou o mundo todo. Coisas como essa, acontecendo em pleno século XXI, só provam como a humanidade evoluiu pouco dos anos 1960 para cá.


Com um bom roteiro, boas atuações e críticas afiadas, Infiltrado na Klan já pode ser considerado um dos melhores filmes do ano, e vem forte na corrida do próximo Óscar. No cenário atual do mundo, inclusive do Brasil, esse filme se torna extremamente necessário. Num momento em que a disseminação de ódio começa a ganhar espaço sob a forma de "liberdade de expressão", é preciso repensar o que queremos como sociedade.

Crítica: Bohemian Rhapsody (2018)


Desde de que saiu o anúncio de que seria filmada uma cinebiografia de Freddie Mercury, um dos maiores - se não o maior - cantor de rock n' roll da história, a expectativa dos fãs (e nesse grupo eu me incluo) foi lá no alto. Escrito por Anthony McCarten (de A Teoria de Tudo) e dirigido por Bryan Singer (da saga X-Men), Bohemian Rhapsody finalmente estreou nos cinemas do mundo todo após uma conturbada pré-produção, mas a demora valeu a pena. O filme cumpriu bem seu papel de emocionar os fãs e contar a história de uma das figuras mais icônicas que já viveu na terra.


O roteiro de Bohemian Rhapsody compreende o período desde o momento em que Mercury entra na banda até o histórico show no festival Live Aid, em 1985, passando pelos momentos cruciais do grupo ao longo de toda sua trajetória. Singer optou aqui por não seguir uma ordem cronológica correta, o que de certa forma não atrapalha o resultado final mas deixa quem é fã um pouco incomodado em certos momentos.

Ao longo do filme podemos acompanhar também a criação de alguns dos maiores hinos da banda, como We Will Rock You, Another One Bits the Dust, I Want to Break Free e, claro, a música que dá nome ao filme. Senti falta de ver algumas outras clássicas da banda, que ficaram de fora, mas entendo que, mesmo num filme de 2h15m, não seria fácil encaixar todas.


É interessante a maneira que é mostrada a sexualidade de Mercury. Muitos temiam que a bissexualidade do cantor fosse suprimida para agradar um público maior, mas isso ficou apenas em boatos. Há espaço tanto para a bonita relação que Freddie teve com Mary Austin (Lucy Boynton), que o fez criar a linda Love of My Live, como a relação com Jim Hutton (Aaron McCusker) com quem ficou até os últimos dias de vida.

Bom, e o que dizer de Rami Malek? Perfeito em sua personificação, o ator, que já havia conquistado o mundo na série Mr. Robot, mostra todo seu talento numa das atuações mais impressionantes do ano. Uma aula de estudo do personagem e seus trejeitos. Outro ator que se destaca pela semelhança é Gwilym Lee, que interpreta o guitarrista Brian May.


Como um bom fã de Queen, digo que a sensação de ver este filme numa tela grande de cinema foi única. Impossível não sentir vontade de chorar nas cenas finais, com a recriação perfeita do show do Live Aid, que praticamente te coloca dentro do estádio de Wembley numa experiência sensorial impressionante.


quarta-feira, 7 de novembro de 2018

Crítica: A Casa que Jack Construiu (2018)


Cinco anos depois do lançamento de Ninfomaníaca, Lars von Trier está de volta aos cinemas com A Casa que Jack Construiu (The House That Jack Built), uma história que, adivinhem, causou polêmica por todo lugar onde passou. Isso virou rotina em sua carreira, já que ele nunca foi o tipo de diretor que se curva às críticas para agradar a todos, e esse é justamente um dos motivos pelos quais sou seu grande fã.



Ambientado nos Estados Unidos dos anos 1970, o longa acompanha 12 anos na vida de Jack (Matt Dilon), um serial killer ardiloso que se vangloria de nunca ter sido pego pela polícia. Contado sob a perspectiva do próprio personagem, o filme mostra cinco de seus crimes, e a forma engenhosa como ele procede em cada um deles. O curioso é que ao matar suas vítimas Jack não se desfaz dos corpos. Ele junta todos em uma sala frigorífica para, morbidamente, usá-los em poses diferentes para fotos, até o dia em que conseguirá juntá-los para fazer aquela que ele acredita que será sua grande obra de arte.

Ao longo do filme, o espectador vai acompanhando a descrição de cada assassinato com todos os seus detalhes aterrorizantes, além de adentrar fundo na mente doentia do psicopata, que tenta explicar suas ideias para seu interlocutor, Virgílio (Bruno Ganz), o poeta romano e guru de Dante na descida ao inferno em Divina Comédia (isso faz todo o sentido no final, pode ficar tranquilo). É quase como se fosse uma sessão terapêutica do personagem para falar a verdade. Assim como fez em seu último trabalho, aqui von Trier também usa e abusa de imagens externas e colagens na tela (até mesmo de outros filmes seus) para criar uma atmosfera filosófica. Diálogos sobre arquitetura, música, literatura e artes em geral se tornam até um pouco enfadonhos depois de um tempo, mas são interessantes para mostrar como a cabeça de Jack funciona e enxerga o que faz.



O clima do filme é extremamente pesado, e algumas cenas te fazem compreender porque há tantos relatos de abandonos das salas de cinema durante sua apresentação, como no Festival de Cannes, por exemplo. Isso aconteceu também na sessão em que assisti o filme, principalmente depois de cenas envolvendo crianças, que são as mais difíceis de digerir. Não, não se trata de um filme fácil, mas a violência contida nele não é de maneira nenhuma gratuita. Há, entretanto, momentos belíssimos no filme, como as passagens em que Jack descreve sua infância com uma intimidade tocante.

O filme todo traz uma fotografia bastante melancólica e fria, mas atinge seu ápice no epílogo, chamado Katabasis (termo grego referente à "descida"), onde traz uma experiência visual impressionante com cenas expressionistas que por si só já valem o ingresso. Na parte das atuações, temos um Matt Dilon bastante convincente neste que talvez seja um dos seus papéis mais desafiadores da carreira, e há ainda que se elogiar a trilha sonora, muito bem elaborada.



Por fim, o cinema de von Trier não é nada fácil, nem nunca será. É o típico "ame-o ou odeie-o", e eu particularmente faço parte do seleto primeiro grupo. Gosto muito da forma como o diretor consegue mostrar o pior lado do ser-humano em seus filmes, e sua forma sarcástica de abordar assuntos polêmicos. Neste caso, a morte como obra de arte. Genial.

Crítica: The Great Buddah + (2018)


Representante de Taiwan na corrida pelo Óscar de melhor filme estrangeiro, The Great Buddha + descreve com muita sensibilidade e doses de humor o dia-dia de um vilarejo do país, se aprofundando em aspectos de uma cultura pouca conhecida para os lados de cá.



Dirigido por Huang Hsin-yao, o filme acompanha Picles (Cres Chuang), um homem que trabalha como vigia noturno de uma fábrica de estátuas de bronze. No local estão construindo um grande buda, e durante o dia todas as atenções são voltadas para esse importante serviço. De noite, porém, o espaço fica vazio, e ele e seu melhor amigo, Umbigo (Bamboo Chen), que também trabalha na fábrica, se reúnem para botar conversa fora e ver revistas pornográficas.

Certa noite eles resolvem assistir as filmagens da câmera que o diretor da fábrica (Leon Dai) instalou no próprio carro como medida de segurança. O ato vira rotina, e todo dia eles assistem a vários vídeos, principalmente os mais obscenos, visto que o diretor é mulherengo e quase todo dia sai com alguma mulher diferente. Eles seguem nessa bricnadeira "vouyer" até a câmera mostrar algo pela qual eles não estavam preparados para ver.



Um dos principais destaques do filme é o excelente trabalho da direção de fotografia. Filmado em preto e branco, o filme ganha muito nesse formato, e cria até situações engraçadas como alguns momentos em que aparecem cores em objetos específicos no meio da cena para salientar alguma ideia. Outra coisa que chama atenção é o bom humor do filme, com algumas sacadas inteligentíssimas. Com uma linguagem bastante poética, The Great Buddha + é uma grata surpresa deste pequeno e desconhecido país asiático, e um estudo crítico e irônico do seu povo e sua cultura.


terça-feira, 6 de novembro de 2018

Crítica: Dogman (2018)


Escolhido para representar a Itália no Óscar de melhor filme estrangeiro em 2019, Dogman, do diretor Matteo Garrone, mostra uma Roma longe dos padrões que costumamos ver, focando principalmente em sua pobreza e seus problemas sociais para mostrar a história de um cidadão comum que tenta sobreviver em meio a situações de conflito.



O filme acompanha Marcello (Marcello , um homem que mora nos subúrbios de Roma e é dono de um pequeno negócio onde trabalha dando banho em cachorros. Ele tem uma filha pequena que vive com a mãe, mas que sempre que pode passa um tempo com ele e até o ajuda a banhar os animais. Dono de um enorme coração, ele inexplicavelmente é amigo de Simone, um homem extremamente violento, sem escrúpulos, que ganha a vida praticando furtos em casas e comércios. 

Preso numa lealdade quase cega, Marcello acaba ajudando Simone na prática de alguns crimes, e sua vida muda completamente quando ele é culpado por um deles, justamente dentro da sua própria vizinhança. Muito mais do que a punição da lei, a punição dos vizinhos, que se sentem traídos e não querem vê-lo mais por perto, é o que realmente faz a vida de Marcello perder o sentido e ele mudar sua personalidade.



Assim como em outros filmes seus, Garrone se preocupa bastante com a questão moral do personagem, e a atuação impressionante de Marcello Fonte, o que inclusive lhe rendeu o prêmio de melhor ator em Cannes, ajuda muito nesta questão. A transformação que ocorre no personagem da primeira metade do filme para a segunda é o que dá sustentação à estória e torna o longa interessantíssimo nos minutos finais. Com sua atmosfera suburbana e marginal, Dogman não economiza na violência e na fotografia melancólica para trazer o que de pior existe no ser-humano em suas duas horas de duração.

quinta-feira, 1 de novembro de 2018

Crítica: O Que as Pessoas Vão Dizer (2018)


Escolhido para representar a Noruega no Óscar 2019 de melhor filme estrangeiro, O Que as Pessoas Vão Dizer (Hva Vil Folk Si) traz novamente à tona a discussão da liberdade individual sendo sufocada por dogmas religiosos, tendo como resultado um dos filmes mais preciosos do ano.



Nisha (Maria Mozhdah) é uma jovem adolescente que vive no seio de uma família de cultura muçulmana em meio a Oslo, capital da Noruega. Apesar da pressão familiar para seguir as tradições religiosas, Nisha é dona de um espírito livre, e quer ser como todas as outras jovens que ela conhece da sua idade. Ela vai em festas, fica com rapazes, e vai vivendo a vida da melhor maneira que pode, ainda que na maioria das vezes escondida.

Essa maneira de enxergar a vida causa um enorme desconforto em sua família, que teme ser mal vista pelos vizinhos da mesma origem. As coisas pioram muito quando ela é descoberta namorando, e na tentativa de isolar a menina e reeducar conforme as leis da religião, o pai decide mandá-la para morar com a avó no Paquistão. Lá ela precisa mudar toda sua rotina e reaprender costumes à força.



Já vi muitas vezes essa realidade cruel ser mostrada nas telas, mas sempre é triste da mesma maneira. Terrível pensar que ao redor do mundo existam tantas Nisha's por aí, tendo que se submeter a uma vida que não é delas, sem liberdades individuais, e tendo que carregar o peso de não poder ser quem se é de verdade. Até quando essas culturas continuarão sendo tão atrasadas e desatualizadas perante o restante do mundo?

O roteiro é muito bem realizado, e as atuações são extremamente fortes. Inclusive, o fato de ser falado quase todo em Urdu (uma das línguas oficiais do Paquistão) deixa o filme muito mais verdadeiro. Destaco ainda o final, que traz uma das cenas mais emblemáticas e pesadas que vi no cinema em 2018. Ainda estou no começo da maratona do Óscar, mas já considero O Que as Pessoas Vão Dizer um dos meus favoritos.