terça-feira, 15 de outubro de 2019

Crítica: Coringa (2019)


O icônico personagem do Coringa já apareceu em diversos filmes ao longo da história do cinema, tendo sido o primeiro deles ainda na década de 1960, mas somente agora em 2019 que, pela primeira vez, ele ganha um filme próprio, só dele. Em grande parte das aparições anteriores ele era apenas o temido vilão de Batman, sendo sempre um personagem secundário, ainda que tenha roubado a cena algumas vezes (como nas antológicas atuações de Heath Ledger, em 2008, e Jack Nicholson, em 1989). Bom, tendo um filme apenas seu, era grande a responsabilidade de Todd Phillips em criar a complexa personalidade do Coringa e mostrar como ele se tornou quem ele é. E foi um trabalho impecável, desses que revigoram o cinema e nos fazem lembrar como é bom amar e acompanhar a sétima arte.



Primeiramente, vamos falar sobre Gotham City, local onde tudo acontece, e que lembra muito (e propositalmente) a Nova Iorque dos anos 1980, já retratada em diversos filmes, como no clássico Táxi Driver de Martin Scorsese. Assim como na Nova Iorque de Scorsese, Gotham é uma cidade suja e desleixada, e a situação piora ainda mais com a greve dos lixeiros (fato que realmente aconteceu na cidade americana), que culmina em lixos acumulados por todo o canto e uma epidemia de ratos, ambiente que combina com a frieza e a falta de empatia de todos os seus habitantes.

É nesse local hostil que vive Arthur Fleck (Joaquim Phoenix), um homem que trabalha para uma empresa de palhaços e mora com a mãe em um prédio precário da cidade. Na primeira cena do filme, Fleck aparece em frente ao espelho, tentando com os dedos forçar um sorriso e uma aparente expressão de felicidade, que não condiz em nada com o seu verdadeiro sentimento. Logo ele volta para seu estado natural, o de descontentamento com a vida e com tudo que o rodeia, e rola até mesmo uma lágrima. Esse "sorriso forçado" aparece inúmeras vezes ao longo da trama, como demonstração de alguém que está desesperado para ser feliz numa realidade que não o permite ser.



Arthur possui um distúrbio que faz ele gargalhar em situações de nervosismo, sem querer. Este é um ponto muito bem utilizado pelo autor, onde é possível sentir toda a agonia do personagem. Por isso mesmo não se trata de uma risada engraçada, muito pelo contrário, pois se você entende o que ele está sentindo se torna angustiante vê-lo nessa situação. No começo do filme ele chega a utilizar um cartãozinho que entrega para as pessoas explicando o motivo das suas risadas incontroláveis, mas depois ele mesmo deixa de usá-los pois percebe que não adianta nada, já que as pessoas continuam debochando e tratando-o mal de qualquer forma.

O filme tem a audácia de nos faz sentir empatia por Arthur, fazendo até com que esqueçamos, por alguns momentos, de que se trata de um vilão. Isso fica evidente em uma cena onde ele é agredido e reage, e fica ainda mais forte quando descobrimos um pouco mais sobre seu passado, cheio de abusos e violência. Obviamente não dá para se apegar a isso para justificar seus atos, sobretudo no final do filme, mas de alguma forma você o compreende, e isso é um tanto quanto perturbador.



Esse exercício de construção do personagem é o mais impressionante da obra num todo. Um homem comum, de fala mansa e olhos perdidos, que tinha sonhos e ambições mas viu tudo evaporar com os sentimentos de abandono e solidão. Mais do que isso, um homem que no começo da estória ainda acreditava no ser-humano, mas que passou a enxergar todos como potenciais ameaças numa sociedade calejada. 

Tudo isso não seria possível sem um grande ator por trás, e é aí que entra a atuação impressionante de Joaquim Phoenix, que perdeu 24 quilos para dar vida ao personagem. Simplesmente não há palavras para expressar o que o ator consegue fazer em cena. O sentimento que ele transmite através de uma excelente linguagem corporal, poucas vezes eu vi igual, e com certeza deve lhe render muitas conquistas na temporada de premiações, incluindo o Óscar, no qual ele já foi indicado três vezes.

O filme também é impecável tecnicamente. Sua fotografia melancólica e a excelente utilização das cores (mais escuras em momentos sombrios e depressivos do personagem e mais claras quando ele encontra algo que o faz sentir-se bem consigo mesmo) são uma verdadeira aula de cinematografia. Tudo finalizado com uma bela ambientação da época e uma excepcional trilha sonora. Para um filme baseado em um personagem dos quadrinhos, é surpreendente analisar também que não há, em momento algum, a utilização de efeitos especiais, e isso engrandece o trabalho ainda mais, visto que teve um orçamento baixíssimo comparado com outros filmes do mesmo estúdio.



Por fim, Coringa é um filme extremamente corajoso, como há tempos não se via no cinema feito nos Estados Unidos. E é exatamente isso que o cinema precisa, ousadia. A direção não teve receio do que o público iria ou não pensar, e entregou aquele que é o grande filme americano do ano. Você sai da sala de cinema atordoado, tentando a todo custo digerir o que acabou de ver, e digo pra vocês que isso demora a passar. Uma verdadeira obra de arte, e um filme para entrar para a história.