quinta-feira, 25 de abril de 2024

Crítica: Plano 75 (2023)


Uma distopia nem tão distópica assim. Dirigido pela cineasta Chie Hayakawa, Plano 75 (Plan 75), representante do Japão no último Oscar de melhor filme internacional, toca em um assunto delicado e que, particularmente, sempre mexe comigo: as angústias e a solidão humana diante do envelhecimento. No entanto, aqui temos uma adição perturbadora, que é um programa do governo que incentiva a eutanásia após a pessoa atingir 75 anos, como forma de lidar com a superpopulação de idosos no país e consequentemente aliviar os gastos previdenciários.


Comecei a crítica justamente dizendo que não se trata de uma distopia no sentido literal da palavra, pois acredito que já vivemos uma realidade onde os idosos são vilipendiados. Serviços sociais ineficientes, aposentadorias financeiramente insignificantes e abandono parental são algumas das principais mazelas que nossos idosos enfrentam nos dias de hoje, e não só no Brasil como em uma escala global. A verdade é que nenhum governo sabe como lidar com essas pessoas de uma maneira eficiente, e muitos acabam tendo um final de vida precário e extremamente melancólico.

O roteiro acompanha três frentes que estão interligadas diretamente através do programa recém lançado. A primeira delas é Michi, interpretada pela veterana atriz Chieko Baishô, uma senhora que mesmo tendo mais de 75 anos ainda trabalha diariamente como faxineira. Ela não recebe mais visitas dos familiares e as poucas amigas que tem estão morrendo pela ação natural da idade, e seus dias vão se tornando cada vez mais sem cor. Para piorar, ela perde o trabalho que era seu sustento, iniciando uma busca inútil no mercado de trabalho, já que obviamente ninguém quer dar emprego para alguém com idade tão avançada. 

Diante de tudo, Michi se vê tentada a se inscrever no Plano 75, onde terá um acompanhamento humanizado em seus últimos dias e receberá uma quantia em dinheiro para gastar com o que quiser. É aí que entra a segunda personagem chave da trama, Maria (Stefanie Ariane), uma imigrante filipina que trabalha no órgão que cuida do programa, e que fica responsável por dar assistência para Michi. Segundo as regras, elas não podem ter contato pessoal, a não ser pelo telefone, afim de evitar que o idoso crie laços e desista do plano no meio do caminho. Mesmo assim, elas acabam quebrando a regra algumas vezes, assim como Hiromu (Hayato Isomura), outro funcionário do local que descobre que um tio seu está inscrito no programa e usa o tempo que lhe resta de vida para se aproximar do familiar.


Três coisas são interessantes de analisar no roteiro. Primeiro, o filme não mostra nenhuma crueldade explícita com os idosos, e por mais absurdo que seja a ideia por trás, tudo é tratado com muita sensibilidade e respeito. Outro ponto é a naturalidade com que a população aceita essa proposta de dar um fim à vida dessas pessoas simplesmente porque elas viraram um "incômodo" para a sociedade. Ao mesmo tempo, o filme também levanta o questionamento do arbítrio dos próprios idosos, e é aí que reside um dos pontos controversos do roteiro para mim. Pois justamente ao mostrar todo esse processo com tanta humanidade, em paralelo a vida triste dos idosos, chega um momento que inevitavelmente você acaba se perguntando se aquilo realmente não seria, de certa forma, uma boa ideia para ambos os lados.

As subtramas criadas ao redor dos personagens secundários também não engrenam, como por exemplo a história da assistente Maria, que tem uma filha pequena hospitalizada nas Filipinas, mas cuja luta pela vida da menina é deixada de lado após metade do filme. Apesar de possuir pequenos deslizes narrativos, Plano 75 não deixa de ser um filme interessantíssimo para nos fazer pensar sobre o bem estar dos nossos idosos e o que nós, enquanto sociedade, estamos fazendo por eles.

segunda-feira, 22 de abril de 2024

Crítica: Late Night with the Devil (2024)


Quem, assim como eu, cresceu assistindo televisão nos anos 1990, com certeza deve lembrar de algumas situações controversas e até mesmo constrangedoras que ocorreram em programas de auditório ao vivo, em nome de um desespero cego por audiência. Na disputa pela liderança valia de tudo, até mesmo forjar uma entrevista com membros da maior facção criminosa do país, por exemplo. No entanto, esta luta pelo primeiro lugar no ibope existe desde que a televisão foi inventada, e muitos programas, sobretudo os conhecidos talk shows, investiam pesado em atrações diferentes para ganhar o espectador de casa. E quanto mais exóticas fossem, melhor era o resultado.


Com uma competente estética setentista, Late Night with the Devil apresenta como personagem principal Jack Delroy (David Dastmalchian), um radialista que em 1971 ganha um programa de televisão noturno de entretenimento, no estilo talk show, que se popularizou na televisão dos Estados Unidos naquela época com nomes como Johnny Carson. Por alguns anos, Delroy consegue fazer algum sucesso, mas jamais chega a ser o fenômeno de audiência que ele sempre sonhou se tornar. Após a morte da esposa por conta de um câncer, e uma ausência de um mês das telas, o apresentador volta ao seu programa e começa a testar novas alternativas para aumentar a audiência. É justamente quando surge a idade de um programa especial de Halloween, que tragicamente acabou sendo o último de sua curta carreira.

O longa se passa quase inteiramente durante este programa especial que, segundo os créditos iniciais, chocou a população norte americana na época. É como se estivéssemos assistindo uma fita perdida daquele programa, que foi ao ar no dia 31 de outubro de 1977. Como atrações daquela noite, Delroy havia chamado três convidados: um médium famoso chamado Christou (Fayssal Bazzi), um hipnotizador cético chamado Carmichael (Ian Bliss), e Rose (Laura Gordon), uma para psíquica que estava lançando um livro sobre uma menina que conversava diretamente com o diabo. Rose inclusive leva junto para o palco a garota, Lilly (Ingrid Torelli), que acaba sendo a peça principal da trama após ser incitada a receber a entidade demoníaca em frente às câmeras. O resultado, no entanto, é desastroso, mas não para a audiência, que certamente bateu recordes àquela noite e gerou uma grande receita para os seus patrocinadores, que é o que mais importava aos produtores.

Inteligente, cínico e até mesmo engraçado em alguns momentos, o filme traz uma abordagem original e diferente ao subgênero da possessão demoníaca, trazendo por trás uma crítica a respeito do quão longe os programas de televisão podem chegar pelo sucesso. Mais do que isso, creio ser possível montar um paralelo com as próprias redes sociais, que se tornaram a grande vitrine dos nossos dias, e onde milhares de pessoas forçam as mais bizarras situações para viralizar, às vezes colocando a própria vida em risco. Porém, deixando de lado as críticas que o filme faz, pode-se dizer que ele também funciona apenas como um bom entretenimento, e é impressionante o trabalho dos irmãos Cameron e Collin Cairnes na condução da narrativa, que não perde o ritmo em momento algum e termina com um plot muito interessante. Por tudo isso, Late Night with the Devil acaba sendo um dos melhores filmes de terror dessa nova safra.

sábado, 20 de abril de 2024

Crítica: O Livro da Discórdia (2023)


Imagine que você seja um escritor e decida contar a história íntima de sua família em um livro, porém sem eles saberem. Mais do que isso, imagine que o livro atinja um êxito inesperado e venda muitas cópias. Qual seria a reação das pessoas citadas quando descobrissem que os seus segredos foram expostos? Como eles reagiriam ao ter a vida e seus segredos lidos por tanta gente? Esses são questionamentos que surgem ao longo de O Livro da Discórdia (Youssef Salem a du succès), uma comédia inteligente e deliciosa de assistir, dirigida pela francesa Baya Kasmi (de Os Nomes do Amor).


A trama gira em torno de Youssef Salem (Ramzy Bedia), um aspirante a escritor que acabou de lançar um livro sobre o qual ele coloca grandes expectativas de finalmente alcançar o sucesso na carreira. Ele chega a ser convidado para um importante programa literário da televisão, e está esperançoso em relação ao que vêm pela frente. No entanto, ao mesmo tempo, Youssef tenta a todo custo esconder o lançamento do livro de seus pais, pois mesmo jurando não se tratar de uma autobiografia, fica evidente que os personagens retratados através de pseudônimos são, na verdade, a sua própria família. A intenção de Youssef é evitar que eles se sintam expostos, e o bom humor do roteiro reside justamente nestas tentativas quase fracassadas dele tentar ocultar a sua obra deles. 

Descendentes de argelinos, os membros da família de Youssef vivem em Paris há décadas, e sempre foram, de certa maneira, bastante conservadores. O livro que Youssef escreveu, chamado Choque Tóxico, retrata um pouco da sua infância e adolescência neste ambiente amoroso mas cheio de tabus, principalmente em relação à sexualidade. O próprio nome do livro, por exemplo, nasceu de uma história que a mãe de Youssef contava quando ele era pequeno, sobre um casal que morreu de um "choque tóxico" após fazer sexo antes do casamento, história esta que influenciou negativamente a sexualidade de Youssef por anos. Outra questão abordada pelo filme é a homossexualidade da irmã de Youssef, Lena (Vimala Pons), que sempre teve que esconder isso dos pais, e que no livro acaba sendo descrita como um irmão gay que passa pelas mesmas dificuldades de aceitação.


Com o sucesso inesperado do livro, Youssef acaba sendo indicado a um importante prêmio literário francês, e inevitavelmente seus pais acabam sabendo disso. A princípio a alegria toma conta deles, que sem saber o teor do livro, ficam orgulhosos do filho ter alcançado o que sempre almejou. Mas é justamente aí que a mentira começa a ficar ainda mais difícil de ser sustentada. Como se não bastasse todas as inverdades em torno do livro, Youssef também criou uma vida paralela para os pais, omitindo por exemplo, que se separou da esposa há dois anos e que vive numa casa muito mais simples do que eles esperavam.

Eu gostei muito do teor cômico do filme, e da forma como o roteiro vai dissecando todas as camadas de mentiras de Youssef até criar uma situação onde o personagem se vê preso dentro do que ele mesmo criou. Por trás de tudo, ainda é possível perceber uma crítica sucinta mas muito perspicaz sobre a forma com que os imigrantes são tratados na França, mesmo aqueles que viveram sua vida inteira no país. Um filme leve e despretensioso, mas muito competente nas discussões que propõe.

quinta-feira, 11 de abril de 2024

Crítica: O Reino Animal (2023)


Não é comum vermos filmes de gênero vindos da França, sobretudo uma ficção científica distópica como O Reino Animal (La Régne Animal), que surpreendentemente obteve um sucesso expressivo de público e crítica desde que foi lançado. Dirigido por Thomas Cailley, a produção franco-belga acabou sendo indicada em nada menos do que doze prêmios César, o Óscar do cinema francês, superando inclusive o badalado Anatomia de uma Queda. Este já é o primeiro ponto que chama a atenção, mas o que exatamente este filme tem de tão legal e diferente?


A trama começa com François (Romain Duris) e Émile (Paul Kircher), pai e filho, presos em um engarrafamento gigantesco. Do carro, eles avistam uma movimentação estranha em uma ambulância logo à frente, de onde logo sai uma espécie de "homem pássaro", um ser misto com asas que foge desesperado dos médicos. Apesar do pânico que a situação cria, os humanos parecem já estar acostumados com isso, sendo este o "novo normal". Pois sim, o mundo está vivendo uma espécie de pandemia, onde a doença não apenas deixa as pessoas doentes, mas faz com que elas sejam vítimas de mutações genéticas que as transformam em híbridos de outras espécies. Em outras palavras, o que vemos são humanos com asas, como o da cena inicial, mas também humanos com pelos, escamas, garras, e feições de animais silvestres.

Como esperado, o filme logo levanta a questão: como lidaríamos em uma situação dessas? Como as autoridades lidariam com isso? Primeiramente, o governo decide, por segurança, manter todos os doentes em hospitais isolados, longe dos centros urbanos, e é para um desses lugares que a esposa de François (Billie Blain) é levada após começar a sofrer mutações e virar uma espécie de "mulher-loba". Para ficar mais próximo dela, François e Émile se mudam momentaneamente para o sul da França, e paralelamente à história principal, passamos a acompanhar também a adaptação dos dois nesta nova região, tanto de François no trabalho como a de Émile na nova escola, e principalmente a relação de afeto que existe entre eles, onde o filme ganha contornos mais emotivos. Os problemas começam quando Émile passa a notar que também está em processo de mutação, ao mesmo tempo em que o caos se instaura na região após um acidente liberar dezenas de "criaturas".


O roteiro conduz muito bem a mistura de gêneros, com elementos de drama, de ficção científica e até mesmo de terror, mas o que eu mais gostei foi da escolha de utilizar efeitos práticos, e não CGI. Tenho certeza que um filme desses, feito em Hollywood, teria inúmeros efeitos computadorizados que deixariam tudo com um ar superficial, mas aqui tudo é tão orgânico que acaba sendo bastante verossímil, ainda que seja tudo "fantasioso". Acima de tudo, é um filme sobre como o ser humano lida de maneira hostil em situações adversas e com o "diferente", podendo servir de metáfora para muitas situações reais.

sexta-feira, 5 de abril de 2024

Crítica: O Caso Goldman (2024)


Filmes de tribunais que são compostos de apenas diálogos e uma única locação podem ser tanto empolgantes quanto entediantes, e esta linha tênue que separa a experiência do espectador varia muito de acordo com a maneira com que a direção apresenta a história na tela. Os franceses já provaram que sabem fazer filmes do gênero muito bem, e O Caso Goldman (Le Procès Goldman), dirigido por Cédric Kahn, é mais um exemplo satisfatório.


O filme acompanha um julgamento real ocorrido na Suprema Corte de Amiens na década de 1970. O réu na ocasião era Pierre Goldman (Arieh Worthalter), acusado de três assaltos à mão armada na cidade de Paris durante o ano de 1969. Ele confessa os crimes com exceção de um, onde duas mulheres acabaram mortas em um assalto a uma farmácia. Sentenciado à prisão perpétua pelo crime, agora ele ganha uma nova chance de revisão do caso diante da côrte, com um novo advogado (Arthur Harari).

Provocador, Goldman chegou a escrever livros durante sua estadia na cadeia, o que o fez ganhar um número expressivo de seguidores, sobretudo adeptos da esquerda. Seu passado como revolucionário, unido à forma como ele enfrenta seus acusadores e a polícia chamando-os de racistas e antissemitas (já que ele é oriundo de uma família judia da Polônia), é mais um ingrediente que inflama quem está do seu lado e transforma o julgamento num verdadeiro ato político. Segundo Goldman, tudo não passou de uma manipulação da própria polícia para achar um culpado do crime, e ele tenta o tempo todo mostrar isso com falas ácidas e eloquentes.


Ao longo de suas duas horas, o filme mostra todo o processo, desde a entrada dos jurados e a apresentação do caso até a sentença definitiva, passando por inúmeras testemunhas e pessoas do convívio de Goldman, como amigos da época e até mesmo seu pai, um imigrante que lutou pela resistência durante a Segunda Guerra Mundial. Diferente de outros filmes do gênero, não temos inserção de flashbacks ou cenas externas sobre o que ocorre fora das quatro paredes do tribunal, então acaba sendo um filme focado na eletrizante disputa de retóricas neste processo, e surpreendentemente prende do início ao fim apenas com isso. Ele serve até mesmo pequenas doses de humor, sobretudo pela intervenções de Goldman, um personagem deveras apaixonante e ao mesmo tempo extremamente controverso.