domingo, 30 de julho de 2023

Crítica: Barbie (2023)


Vitrines de lojas cor de rosa, centenas de pessoas nos shoppings usando rosa, e até comidas e bebidas em tons de rosa. É inevitável dizer que Barbie já é o maior fenômeno do cinema em muitos anos, diante de todo o furor que causou desde muito antes do seu lançamento, mas será que o filme dirigido pela Greta Gerwig vai além deste marketing todo? Consegui finalmente assisti-lo neste último final de semana, e apesar de ter algumas ressalvas quanto a qualidade das piadas e do roteiro, posso garantir que o que vi me deixou satisfeito diante das próprias expectativas que eu havia criado em torno dele.


O filme começa de maneira icônica, com uma cena que homenageia o clássico "2001: Uma Odisseia no Espaço", onde se vê várias menininhas brincando com suas bonecas bebês em um local deserto até a chegada do "monolito", que aqui nada mais é do que uma Barbie gigantesca. De maneira metafórica, a cena mostra o impacto que a chegada da boneca teve na vida das crianças nos anos 1960, já que antes só existiam as tais bonecas que imitavam bebês, usadas principalmente para preparar e ensinar elas desde cedo a serem boas mães. A Barbie chega então para revolucionar e mudar de vez a forma como as meninas brincam e interagem com seus brinquedos preferidos, mas por outro lado também acaba criando um padrão de beleza quase inalcançável, e por mais que ao longo dos anos a Mattel tenha se esforçado para criar Barbies diversificadas, o filme não poupa críticas a isso.

Logo somos colocados dentro da rotina da "Barbieland", a cidade onde vivem todas as Barbies já criadas, e onde elas podem ser o que quiserem. Apesar da vida metódica e repetitiva, tudo é perfeito para elas nesse mundo controlado por mulheres, onde todos os espaços de poder são dominados por elas. Os homens da história são meros coadjuvantes, como os inúmeros Kens que vivem alheios no lugar, não tendo profissão e passando a maior parte dos seus dias na beira da praia, sendo apenas os acompanhantes das Barbies. Certo dia, a Barbie Estereotipada (ela mesma se denomina assim por representar o visual mais conhecido da Barbie com seus cabelos loiros e seu corpo magro), interpretada por Margot Robbie, percebe que está com alguns defeitos, e acaba descobrindo que o único jeito de voltar ao normal é fazer uma travessia até a "vida real" para conversar com a menina que brinca com ela.


Ao chegar em Los Angeles, Barbie fica decepcionada ao perceber que o mundo real é o extremo oposto de tudo aquilo que ela imaginava, principalmente em relação à posição das mulheres na sociedade. Sentimento bem diferente tem o Ken interpretado por Ryan Gosling, que se esconde no carro dela para ir junto na viagem, e ao chegar no mundo real fica fascinado por descobrir que é tudo dominado pelos homens. Ele decide então levar essas ideias para os seus colegas Kens na "Barbieland", que se juntam e instauram uma nova maneira de vida no local, baseada nos princípios do patriarcado.

O design de produção é o ponto alto do filme, criando uma atmosfera muito imersiva e deslumbrante, e imagino que tenha sido ainda mais impactante para quem cresceu brincando com a boneca pois tem todos os elementos que a acompanhavam, como a casa sem paredes, o carro cor de rosa, os objetos pessoais desproporcionais e os conjuntinhos de roupas. Toda a criação da cidade da Barbie também é pensada nos mínimos detalhes, e de maneira lúdica até brinca com nossa percepção, como se estivéssemos assistindo alguém realmente brincando com elas, como por exemplo o chuveiro que não sai água de verdade, o leite e o biscoito cenográficos, ou até mesmo o fato da Barbie não descer as escadas mas se "teletransportar" ao chão. A ideia de não usar CGI nas cenas da travessia entre o mundo das Barbies e o mundo real também cria ilusões fantásticas, e como é bom ver o cinema voltando às suas origens neste quesito.


O filme possui uma mensagem clara e nítida a respeito da dinâmica entre homens e mulheres ao longo da história, e o papel de cada um na sociedade, o que fica ainda mais claro em um monólogo forte e potente da personagem interpretada por America Ferreira, que é a mãe da menina que a Barbie está procurando na vida real. No geral, Greta consegue mesclar o humor do filme com as cenas mais tocantes e reflexivas que falam, sobretudo, das dificuldades que é ser mulher no mundo real. Porémconfesso que achei boa parte das piadas forçadas, e em muitos momentos o filme infelizmente me perdeu por conta disso. Consigo entender a proposta de ser uma obra debochada, mas perde um pouco a mão justamente por não querer ser levado a sério demais. Apesar disso, é um filme que tem como mérito apresentar uma mensagem importante e atual para os públicos mais diversos que estão lotando as salas de cinema, e isso por si só já o torna necessário.


domingo, 23 de julho de 2023

Crítica: Oppenheimer (2023)


Baseado no livro "Oppenheimer: O triunfo e a tragédia do Prometeu americano", de Kai Bird e Martin J. Sherwin, o novo filme do cineasta Christopher Nolan nos apresenta de forma grandiosa e ousada o caminho percorrido pelo brilhante físico J. Robert Oppenheimer (Cillian Murphy), considerado o "pai da bomba atômica", desde a época em que ele era apenas um estudante promissor em Cambridge até o momento pós Segunda Guerra, onde acabou sendo perseguido pelo governo americano sob acusação de cooperar com os soviéticos.


Dá para dizer que o filme possui três linhas do tempo distintas, que se convergem numa excelente montagem. A primeira delas acompanha o início da carreira de Oppenheimer, e chega ao momento em que sua carreira decola de vez quando ele é chamado para comandar o Projeto Manhattan, que visava criar uma bomba atômica. A segunda linha, e talvez a que mais tenha tempo em tela, se passa alguns anos depois do fim da Segunda Guerra, momento em que o físico está sendo julgado sob a acusação de ser comunista e ter cooperado com a União Soviética em relação a segredos militares dos Estados Unidos. Há ainda a terceira linha, mais singela que as outras e que se passa entre as duas anteriores, e mostra o momento de maior prestígio da sua carreira logo após o "sucesso" do uso das bombas em Hiroshima e Nagasaki, onde Oppenheimer é convidado por Lewis Strauss (Robert Downey Jr) para chefiar um instituto de pesquisas científicas e chega a ter contato com outros físicos lendários, como Albert Einstein.

A obsessão do governo norte americano pela criação de uma bomba de destruição em massa era tanta, que durante três anos de pesquisas foram gastos mais de dois bilhões de dólares, tendo sido construída até mesmo uma cidade às pressas, no meio do deserto, que abrigaria os melhores cientistas e suas famílias durante a operação, chamada de "Los Alamos". Um dos acertos do roteiro é mostrar a frieza com que os militares americanos tratavam essa questão da bomba e a banalidade de sua possível destruição. Em uma das cenas, entre risos, um dos oficiais mostra uma lista incluindo onze cidades japonesas que seriam possíveis alvos para a bomba, deixando de fora uma pela qual ele tem apreço por ter passado sua lua de mel lá. E logo após os ataques, a população comemora fervorosamente, com bandeiras dos Estados Unidos em punho, o grande sucesso que foi a morte de mais de duzentos mil inocentes.


Apesar do foco ser o desenvolvimento da bomba H, é importante dizer que o grande embate do filme é a perseguição política que Oppenheimer sofre depois disso por ter tido ideias de esquerda. O que vemos aqui é uma construção de personagem fantástica, e isso se deve muito a atuação de Cillian Murphy, provavelmente a melhor da sua carreira. As questões morais de ser o responsável pela criação de um artefato que pode destruir não somente uma cidade inteira, mas também o mundo todo, bem como as consequências disso em um futuro incerto, também são muito bem trabalhadas. O físico sabia do perigo de se ter uma bomba com tamanho poder de destruição, mas ao mesmo tempo preferia ver ela nas mãos dos Estados Unidos do que nas mãos dos nazistas, e isso foi o que o motivou inicialmente a seguir com o projeto. No entanto, e nunca deixou de demonstrar preocupação com o quanto esta "máquina de mortes" poderia ser usada de forma arbitrária dali em diante, ou servir como base para bombas ainda mais letais. Nolan, porém, não se esquiva de mostrar também os defeitos do personagem, tanto na vida pessoal como na profissional, apresentando um retrato muito humano dessa figura histórica e controversa.

O filme possui cenas emblemáticas, que certamente serão lembradas por muitos anos, e o grande "clímax", inclusive, pode ser considerada facilmente como uma das maiores realizações da história do cinema no século, tanto na parte visual como na imersão que ela propôs ao espectador. Talvez eu nunca tenha visto um silêncio tão ensurdecedor em uma sala de projeção, estando todos completamente absortos e fascinados. E pensar que foi tudo feito de maneira prática, sem CGI, deixa tudo ainda mais incrível. A fotografia, aliás, é maravilhosa, mesclando cenas coloridas com cenas em preto e branco de maneira muito orgânica, o que ajuda a situar o espectador na questão cronológica.  A direção de arte também é impecável, e conseguiu recriar todo o cenário da época de maneira estupenda. Outro ponto alto é a utilização do som, além da trilha sonora fantástica de Ludwig Goransson.


Na parte das atuações, a grande surpresa para mim foi Robert Downey Jr, na pele do personagem que, aos poucos, vai se tornando quase como um antagonista da história. É possível ver toda a entrega do ator, e sinceramente, como é bom ver ele atuando dessa maneira depois de tantos anos. O elenco ainda conta com outros grandes nomes como Florence Pugh, Emily Blunt, Matt Damon, Rami Malek, Josh Hartnett, Casey Affleck, Ben Safdie e Gary Oldman, que aparecem menos em tela, mas que tem sua parcela de importância na história. Por tudo isso, Oppenheimer é, até o momento, o grande filme do ano, feito para ver e apreciar na tela grande do cinema.


sexta-feira, 21 de julho de 2023

Crítica: O Último Ônibus (2023)

 

Um filme extremamente simples e despretensioso, mas que toca fundo no coração de quem assiste. É assim que eu começaria definindo o singelo O Último Ônibus (The Last Bus), dirigido pelo cineasta escocês Gillies MacKinnon, que acompanha a jornada de um homem no fim da vida que decide fazer uma viagem onde atravessa o Reino Unido de ônibus por um único e emocionante propósito.


Em 1952, Tom Harper e sua esposa saíram da região da Cornualha, na ponta mais ao sul da Inglaterra, para viver em John o' Groats, um vilarejo que fica no extremo norte da Escócia e que é popularmente conhecido como o ponto mais setentrional da Grã-Bretanha. Após mais de seis décadas vivendo de forma pacata no local, Tom (Timothy Spall), agora com noventa anos, quer refazer o trajeto de volta, de cerca de 1.350 km, e voltar para Land's End. Tudo isso de ônibus, e por um motivo muito especial.

Entre uma parada e outra, e diversas trocas de ônibus, Tom vai encontrando pessoas de todos os tipos pelo caminho, e de certa forma fazendo alguma diferença na vida de cada uma delas. Ele também acaba passando por situações perigosas e até mesmo preconceituosas, mas não desiste, e segue firme na sua missão custe o que custar, munido apenas de sua maleta, que ele protege como se fosse sua própria vida. Não falarei o motivo da viagem para não soltar spoiler, mas no final ficamos sabendo de tudo e é bem emocionante este momento. 

Durante o trajeto de Tom, também vamos acompanhando, através de memórias suas, o que aconteceu quando o casal morava em Land's End e principalmente o que motivou eles a deixar o local décadas atrás para nunca mais voltar. O ponto alto do filme é certamente a atuação de Timothy Spall, muito sensível e emocional na pele de um personagem que é extremamente doce mas que não baixa a cabeça em situações adversas e injustas.


O Último Ônibus é, como falei no início, um filme extremamente simples, então não espere grandes reviravoltas e muito menos um filme coeso em tudo que propõe. Mas ainda assim é uma história que vale a pena ser vista e principalmente refletida. Gostei da escolha do diretor em utilizar os créditos finais para mostrar vídeos feitos por pessoas que encontraram Tom pelo caminho e que postaram eles em suas redes sociais, já que o personagem acabou viralizando e virou uma espécie de herói por atravessar a ilha de uma ponta a outra.


sexta-feira, 14 de julho de 2023

Crítica: Os Irmãos de Leila (2022)


Com uma história intensa, profunda e sobretudo humana, Os Irmãos de Leila (Baradaran-e Leila), do diretor Saeed Roustaee, é uma obra incrível sobre a complexidade das relações familiares, que aborda os costumes de uma família tradicional iraniana e critica o sistema patriarcal do país.


Leila (Taraneh Alidoosti) é a única filha mulher de Esmail (Saeed Poursamini), e a única que também consegue manter um emprego aparentemente estável em uma empresa comercial. Ela é a grande protagonista da história, apesar do nome do filme indicar que sejam os seus irmãos, em uma crítica muito oportuna do diretor ao fato dela se tornar mera coadjuvante na sua própria história, pois apesar de ser a única com condições de manter a família financeiramente, ela não possui o mesmo peso de decisão dos irmãos apenas por ser mulher. As ideias surgem dela, mas na hora da execução, ela fica de fora e é silenciada.

Apesar de conturbada e barulhenta, principalmente pelas dificuldades financeiras, a relação dos irmãos é muito fraternal. Temos Alireza (Navid Mohammadzadeh), que aparentemente é o mais centrado de todos, e acaba de perder o emprego em uma fábrica após a mesma falir. Em busca dos salários atrasados, os trabalhadores do local fazem protestos violentos no local, mas Alireza não participa da ação, e acaba sendo taxado de covarde pelos ex-colegas ao não querer reivindicar o dinheiro que lhe ficou devido. Farhad (Mohammad Ali Mohammadi) trabalha como taxista, enquanto Parviz (Farhad Aslani) é faxineiro em um banheiro público. Por fim ainda tem Manouchehr (Payman Maadi), que ao invés de trabalhar, sempre tenta arranjar alguma forma de fazer dinheiro com esquemas ilegais e fraudes. Acima de todos eles está o pai, que sonha se tornar o patriarca do clã após a morte do antigo detentor do título. 

Para nós aqui do ocidente talvez seja um pouco difícil de compreender, mas se tornar líder de um clã é uma posição muito almejada entre os homens mais velhos no Irã, e para tanto, Esmail está disposto a usar todas as suas economias para bancar o casamento de um dos membros. Leila, por sua vez, pensa usar esse dinheiro para abrir um negócio próprio da família e melhorar a vida de todos, e é quando começa o embate entre eles, já que proteger financeiramente a família pode ocasionar na humilhação pública e a perda da dignidade do próprio pai.


O diretor consegue construir uma família complexa e de personagens muito marcantes, e mesmo com suas quase três horas de duração, não cansa em momento algum pela maneira com que os conflitos vão aparecendo e sendo resolvidos. É tudo muito frenético, com os personagens sempre estressados, batendo boca, e em situações sempre conflituosas, o que de certa forma gera cenas engraçadas no final das contas. As atuações poderosas são um ponto importante nessa construção, com destaque para Taraneh Alidoosti, que brilha de forma notável. Os Irmãos de Leila não somente me prendeu durante quase três horas de sua duração, como acabou se tornando um dos melhores filmes que vi no ano.

domingo, 9 de julho de 2023

Crítica: L'Inoccent (2022)

 

Vencedor do prêmio de melhor roteiro no Cesar 2022, L'innocent, novo filme de Louis Garrel, é uma boa comédia policial que tem como mérito não cair em armadilhas narrativas do gênero, e conquista pelas excelentes atuações, pelo bom ritmo e pela ótima trilha sonora.


Assim como em seus filmes anteriores, aqui Garrel também interpreta o protagonista da história, Abel, que se vê enredado em uma trama conturbada após sua mãe (Anouk Grinberg) se casar com um presidiário. Ela é atriz e dá aulas de atuação na cadeia, e é lá mesmo que ela acaba se apaixonando por Michel (Roschdy Zem), que logo é solto da prisão e vai viver junto com ela. Apesar de Michel prometer que largou a vida do crime, Abel fica instigado a investigar os seus passos, e descobre que no fundo o novo padrasto não está sendo totalmente sincero. Mais do que isso, acaba até mesmo ajudando-o em uma missão.

Garrel constrói muito bem os personagens e suas personalidades, como o próprio Abel, que descobrimos que vem de um trauma grande na vida envolvendo sua ex-esposa, e tem na amizade com Clémence (Noémie Merlant) o seu pilar de sustentação. Enquanto passa os dias trabalhando como instrutor em um aquário, ele tenta reorganizar a vida, tendo sempre a presença forte da mãe e da amiga.


As atuações são o ponto forte do filme, sobretudo Noémie Merlant, que inclusive também ganhou o prêmio Cesar de melhor atriz na edição passada. Tanto a mãe como o novo padrasto também têm participações intensas, o que torna tudo muito orgânico. E o humor é muito bem utilizado, sem parecer forçado em nenhum momento. Um dos exemplos disso está na inaptidão de Abel na hora de ser discreto quando está perseguindo Michel, o que acaba gerando boas cenas quando o mesmo descobre. Com um tom leve, L'innocent já é o quarto filme como diretor de Louis Garrel, que parece finalmente atingir aqui a maturidade que o coloca como um bom expoente dentro do novo cinema francês.


quinta-feira, 6 de julho de 2023

Crítica: Meu Vizinho Adolf (2023)


Os livros de história contam que Adolf Hitler se matou logo após a concretização da derrota alemã na Segunda Guerra Mundial, porém, existem muitas teorias obscuras e absurdas de que ele teria forjado a própria morte e se refugiado na América do Sul após a vitória dos Aliados. Partindo desta ideia, Meu Vizinho Adolf (My Neighbor Adolf) adota um tom de humor leve para trazer uma premissa simples mas muito instigante: o que você faria se suspeitasse que seu novo vizinho é uma das figuras mais desprezíveis da história?


O filme se passa em 1960 e começa acompanhando Marek Polsky (David Hayman), um judeu sobrevivente do holocausto que agora vive em uma região extremamente pacata no interior da Argentina. Solitário e mal humorado, sua única paixão na vida é a roseira que ele cultiva no pátio, e que cuida com muito amor e carinho por trazer memórias afetivas da sua família no período antes da guerra. Certo dia um alemão chamado Herman Herzog (Udo Kier) se muda para a casa ao lado, e após uma discussão acalorada acerca do tamanho dos terrenos, ele passa a suspeitar que o vizinho é nada mais, nada menos, do que Adolf Hitler, que ele teria conhecido em um campeonato de xadrez ainda nos anos 1930. Segundo ele, jamais teria esquecido dos olhos de "pura maldade", que ele reviu no vizinho com muita nitidez.

Ao comparar as características do tirano com as de seu vizinho, Polsky passa a acreditar fielmente se tratar dele, e apresenta o caso à polícia, que por sua vez não leva a sério pois já está acostumada com este tipo de denúncia que sempre se provaram infundadas. O homem, no entanto, não desiste, e passa a coletar cada vez mais provas dessa sua suspeita, e o mais legal do roteiro é que ele também nos incita a ficar com a pulga atrás da orelha, pois o tempo todo fiquei me perguntando "será que é o Hitler mesmo, ou é tudo coisa da cabeça dele?". Ao mesmo tempo em que Polsky vai lendo sobre as características de Hitler nos livros que pegou da biblioteca, vamos percebendo que Herzog possui todas elas, como o fato de ser canhoto, pintar quadros de ruínas e prédios abandonados, ter um pastor alemão e apresentar rompantes de raiva.


O grande êxito do filme são as atuações brilhantes dos protagonistas, mas confesso que senti um dissabor na reta final. Obviamente não contarei o que acontece, e muito menos se era ou não Hitler, mas por mais que o filme tenha um clima leve e bem humorado, não dá para apagar a história e o que representou o holocausto. Dito isso, não dá para engolir facilmente a aproximação dos dois personagens, até porque a suposta fuga de Hitler para cá é apenas uma teoria, mas os milhares de oficiais nazistas que se refugiaram no Brasil e nos países vizinhos não é, e ocorreu de verdade. Porém, não dá para negar que o final surpreende e muito.


domingo, 2 de julho de 2023

Crítica: A Esposa de Tchaikovsky (2023)


Dirigido por Kirill Serebrennikov, A Esposa de Tchaikovsky (Zhena Chaikovskogo) se passa no final do século XIX e conta a história real do casamento entre o compositor Pyotr Tchaikovsky e a jovem Antonina Miliukova, usando esta relação para trazer uma análise de como funciona uma paixão doentia e obsessiva.


Após se apaixonar pelo compositor, a jovem Antonina (Alyona Mikhaylova) decide ingressar no conservatório de música de Moscou para ter aulas com ele, e não desiste dessa sua paixão até conseguir que ele a aceite como sua parceira. Tchaikovsky (Odin Biron), no entanto, era homossexual, e mesmo não nutrindo nenhum tipo de desejo por ela, acabou vendo no casamento uma chance de fugir da perseguição em uma Rússia que já era extremamente homofóbica. Apesar de sempre ter sido sincero com Antonina e dito desde o princípio que a relação seria muito mais fraternal do que qualquer outra coisa, ela de alguma forma sempre manteve a esperança de que ele mudaria de ideia e um dia seria o marido perfeito, o que não aconteceu.

Temos aqui um romance que é o completo oposto do que costumamos ver nas telas, pois não há nenhuma leveza ou felicidade nesse amor. Aliás, nem pode-se chamar de amor, a não ser que o consideremos unilateral, o que é uma porta aberta e escancarada para o sofrimento. Mas Antonina não parece preocupada com as migalhas (ou nem isso) que recebe, e quer continuar assim mesmo. Era uma verdadeira obsessão cega, e nos termos de hoje poderia facilmente ser considerado um relacionamento abusivo. Isso até ele cansar da "farsa" e pedir para se afastar, algo que obviamente não foi bem aceito por ela.


Até hoje a sexualidade de Tchaikovsky é um tabu na Rússia, e o filme vem para quebrar isso, ainda que de forma sutil. O termo, por exemplo, jamais é falado, e muito menos confessado pelo músico, mas é algo nítido durante todo o filme. O roteiro é bom, mas senti que poderia ter sido mais compacto em alguns momentos, o que diminuiria um pouco a sua longa duração. A trilha sonora é onipresente e a música clássica reverbera por quase todos os 150 minutos da trama. É, por fim, um filme lento, soturno e melancólico, sobre uma história que é muito mais trágica do que romântica.