sábado, 31 de dezembro de 2022

Os 20 Melhores Filmes Lançados no Brasil em 2022

Último dia de dezembro e chegou a hora de fazer a boa e velha listinha dos melhores filmes do ano. O ano de 2022 ficou marcado como um recomeço, após sofrermos dois anos com a Pandemia de Covid-19, e a consequência disto é que tivemos um número expressivo de bons lançamentos, tanto nos cinemas como nos serviços de streaming, que se popularizaram ainda mais durante este período. Lembrando que a lista compila apenas filmes oficialmente lançados no Brasil durante o ano. Sem mais delongas, vamos a ela:


20º  Apollo 10 e Meio, de Richard Linklater


Em Apollo 10 e Maio, Richard Linklater nos trás, através da animação, um pouco de suas memórias da infância em Houston, no final dos anos 1960, quando a corrida espacial entre Estados Unidos e União Soviética estava no auge. Acompanhamos Stan, um garoto de 10 anos que sonha ser astronauta após assistir vários filmes e séries sobre astronomia, e acaba sendo selecionado pela NASA para fazer parte de um projeto teste, antes deles enviarem o primeiro homem à lua. É, sobretudo, o retrato de uma geração que cresceu em uma época muito conturbada mas ao mesmo tempo repleta de mudanças que acabaram moldando a forma como enxergamos o mundo hoje. É um filme que respira nostalgia e encanta pela simplicidade.

19º A Felicidade das Pequenas Coisas, de Pawo Choyning Dorji


A trama gira em torno de Ugyen, um rapaz que mora com a avó na capital do Butão e trabalha como professor para o programa do governo conhecido como "Felicidade Interna Bruta". Um dia ele é transferido para trabalhar em um colégio na aldeia de Lunana, que fica em um lugar muito isolado nas montanhas do Himalaia. No local ele se depara com uma realidade bem diferente do que estava acostumado, se surpreendendo com o modo de vida extremamente simples da população e com a maneira como eles são felizes com tão pouco.

18º O Homem do Norte, de Robert Eggers



A trama conta a história da lenda viking Amleth, que posteriormente também serviu como inspiração para Shakespeare escrever seu clássico Hamlet. Ela inicia em 985 D.C. quando, ainda garoto, Amleth vê seu pai ser morto após uma traição orquestrada por seu tio Fjolnir. Após conseguir fugir do local, o menino promete que um dia irá voltar para se vingar. Os anos passam e Amleth acaba se disfarçando de escravo para ir ao encontro do algoz de sua família e cumprir aquilo que prometeu. A pesquisa histórica que o diretor fez sobre a maneira que os vikings viviam foi profunda, e isso reflete diretamente no enredo do filme. Desde os rituais místicos ao redor do fogo até mesmo a maneira que eles praticavam esportes, é tudo muito bem reconstituído. Vivemos um tempo carente de histórias épicas e históricas, e O Homem do Norte preencheu essa lacuna este ano com brilhantismo.

17º Um Herói, de Asghar Farhadi


Uma característica do cinema de Asghar Farhadi é pegar uma situação super simples do cotidiano e transformar em uma história cheia de desdobramentos e impasses morais. Isso acontece em Um Herói, que gira em torno de Rahim, um homem que está preso por conta de uma dívida que não conseguiu pagar e acaba de ganhar dois dias de saída temporária. Ele aproveita esse tempo para tentar convencer seu credor a retirar a queixa, prometendo pagar uma quantia no ato e completar o restante em breve. Quando uma bolsa com moedas de ouro chega às suas mãos, ele tem a chance de resolver boa parte do problema, mas opta por devolver as moedas para a mulher que supostamente a teria perdido. O ato vira notícia na mídia, e Rahim é tratado como um verdadeiro "herói", ganhando até mesmo entrevista na televisão. Porém, não demora para que boatos comecem a pôr em dúvida se Rahim teria agido mesmo de boa fé ou se tudo não passou de uma farsa para ele se sair como bom moço e conquistar sua liberdade. E essa ambiguidade sobre Rahim é o que abastece o espectador, em um roteiro que prende até o final.

16º Batman, de Matt Reeves


No Batman dirigido por Matt Reeves, quem assumiu a responsabilidade de interpretar o "homem morcego" foi Robert Pattinson, e ele foi muito bem. Diferente dos últimos filmes, onde a figura do Batman já fazia parte do cotidiano de Gotham City, aqui temos um Batman mais jovem, recém descobrindo o que de fato é "ser o Batman". Outra mudança de perspectiva diante das obras anteriores é o fato do filme de Reeves focar muito mais no lado investigativo do protagonista, que trabalha junto com o chefe da polícia para desvendar uma série de assassinatos que está amedrontando a cidade. Por ter essa atmosfera mais enigmática, o roteiro acaba tendo menos cenas de ação, o que achei bom, visto que quando elas aparecem são com propósito e muito bem encaixadas com o enredo.

15º Moonage Daydream, de Brett Morgen

 

Com um visual que flerta com o psicodelismo, o diretor Brett Morgen faz um apanhado riquíssimo da vida pessoal e pública de David Bowie, fugindo completamente daquela estrutura linear que nos acostumamos a ver em documentários biográficos. Contando com muitas imagens inéditas de apresentações, entrevistas, bastidores e até mesmo da vida privada do artista, Morgen molda pouco a pouco a personalidade de Bowie e mostra o porquê de ele ter chegado onde chegou e conquistado tantos fãs. Temos falas realmente impressionantes do artista sobre a vida, sobre o amor e sobretudo a arte, e ao mesmo tempo em que é bastante sensível nestes momentos, o documentário também consegue ser muito pulsante com as imagens de Bowie tocando ao vivo, que são um verdadeiro deleite para quem é fã.


14º Avatar: O Caminho da Água, de James Cameron


Muito mais do que um filme, Avatar: O Caminho da Água é uma verdadeira experiência sensorial única e incomparável até então. Mais de uma década após o primeiro Avatar, que naquela época já havia sido revolucionário em termos de visual e uso do 3D, James Cameron nos leva de volta à Pandora, o planeta onde vivem os Na'vi, onde Jake Sully agora vive com Neytiri e seus quatro filhos. Tudo ia tranquilo até que os humanos decidem voltar ao planeta para explorar novamente suas riquezas naturais e se vingar do próprio Sully, por um acontecimento do primeiro filme. Correndo perigo, ele parte com sua família para uma outra parte do planeta, onde os seres vivem em conexão com a água e os ajudam a se esconder por um tempo. As cenas subaquáticas apresentam, de fato, as imagens mais bonitas que já vi no cinema, e não existe nada igual em termos de imersão.


13º Pearl, de Ti West

 

Vendo o potencial que a história de "X" tinha para ir além, o diretor Ti West logo anunciou as filmagens de um prequel, onde contaria a história por trás da vilã. Foi aí que nasceu a ideia de Pearl, que se passa no fatídico ano de 1918, marcado por dois acontecimentos: a pandemia da Gripe Espanhola e o final da Primeira Guerra. Neste cenário temos a jovem Pearl, que vive com seus pais em uma pequena fazenda desde que o marido foi lutar na guerra. Seus únicos momentos de distração ocorrem quando ela consegue fugir das garras da mãe e assistir filmes mudos no cinema da cidade, onde acaba criando uma paixão enorme pela dança. Com uma atuação impressionante de Mia Goth, o filme faz um retrato de como funciona a mente humana diante de grandes frustrações, e de como a distância do convívio social acaba afetando o psicológico.


12º O Céu de Alice, de Chloé Mazlo


Com uma estética bastante teatral, que me lembrou um pouco o estilo de Michel Gondry, O Céu de Alice marca a estreia primorosa de Chloé Mazlo na direção de um longa-metragem, e mostra principalmente como uma guerra afeta a vida de cidadãos comuns de uma maneira drástica e irreversível.  O roteiro acompanha Alice, uma jovem que deixa a casa dos pais na Suíça para ganhar a vida como babá em Beirute, capital do Líbano, nos anos 1950. Lá ela conhece o astrofísico Joseph, com quem se casa e tem uma filha chamada Mona. Os anos passam, e a vida da família vira do avesso com o começo de uma guerra civil no país, alimentada sobretudo por questões religiosas.


11º Flee - Nenhum Lugar Para Chamar de Lar, de Jonas Poher Rasmussen


Traumas do passado se tornam feridas que são carregadas por uma vida inteira, e muitas vezes é duro tocar e falar sobre elas. Flee conta a história de um refugiado afegão que precisou deixar o seu país junto com a família no final dos anos 1980 devido à invasão do Talibã. Amigo íntimo do diretor, Amin (nome fictício usado para preservar sua identidade verdadeira) resolveu contar tudo que aconteceu com ele desde sua infância, pela primeira vez, neste documentário íntimo e emocionante. O formato de animação possibilita que, além da entrevista de Amin, também seja feita uma reconstituição de todos os fatos narrados por ele, e o filme também traça um paralelo com os dias de hoje e o preocupante aumento de refugiados pelo mundo.


10º Aftersun, de Charlotte Wells



Baseado nas próprias memórias da diretora, Aftersun acompanha a viagem de férias de um pai com sua filha de 11 anos em um resort na Turquia. Com um desenvolvimento lento, pouco a pouco vamos sabendo mais a respeito da história de vida e da relação que os dois tem, e o que vemos no fundo é uma relação pai e filha muito emocionante, que poderia facilmente apelar para o melodrama mas foge completamente disso. Os diálogos são muito orgânicos, e as atuações fascinantes. É tudo tão real que parece até que estamos realmente acompanhando um documentário sobre a viagem de um pai com a sua filha, e isso se dá pela ótima química que existe entre os atores. Um filme sensorial, acima de tudo.


Aloners, de Hong Sung-eun

 

Aloners fala com muita sensibilidade da solidão no mundo moderno e das barreiras invisíveis que muitas vezes criamos ao redor de nós mesmos. O filme acompanha Yu Jina, que trabalha em uma central de atendimento de um cartão de crédito e conversa com centenas de pessoas todos os dias. Porém, fora do ambiente de trabalho ela é uma pessoa extremamente reservada, sem amigos, e que prefere almoçar sozinha no refeitório da empresa com seus fones de ouvido para não falar com ninguém. Quando o vizinho de Jina, um rapaz também solitário, acaba morrendo, ela passa a repensar sua vida, sobretudo quando ganha uma nova colega de trabalho que é extremamente falante e tenta a todo custo forçar uma amizade. O filme tem uma atmosfera fria, que ajuda a passar esta ideia de vazio que existe hoje nas relações interpessoais, onde sequer sabemos quem são as pessoas que nos rodeiam e um "bom dia" pelos corredores do condomínio ou do trabalho virou artigo de luxo.


8º Pinóquio, de Guillermo Del Toro


A versão de Pinóquio feita por Guillermo Del Toro talvez seja a melhor já feita no cinema para o personagem criado pelo italiano Carlo Collodi no século XIX, superando até mesmo o clássico da Disney de 1940. O roteiro acompanha Gepeto, um homem que perdeu seu filho único após ele ser atingido por uma bomba durante a guerra. Em luto, ele cria um boneco de madeira que logo ganha vida através de uma fada, e também um nome: Pinóquio. O principal diferencial para as demais versões, e também para a obra original, é que aqui a história se passa na Itália fascista de Mussolini, e isso acaba sendo muito bem contextualizado, tendo um papel importantíssimo no desenvolvimento da trama e na mensagem que Del Toro queria passar com ela. Destaque total para a parte visual e para o primor de detalhes no uso do stop-motion.


7º O Bom Patrão, de Fernando León de Aranoa


A trama acompanha Blanco, dono de uma empresa consolidada e bem sucedida que fabrica balanças de todos os tipos. Aliás, o equilíbrio e a precisão das balanças é algo que Blanco costuma levar metaforicamente para tudo na vida. Apaixonado pelo que faz, ele não deixa de lembrar a todo momento o quanto esses valores são importantes, e gosta de tratar os seus funcionários como membros da família, abraçando seus problemas particulares e tentando inclusive resolvê-los. Esse "ambiente familiar" é ameaçado quando um funcionário não aceita a sua demissão e monta um acampamento na frente do local, fazendo de tudo para tentar botar abaixo a reputação de "empresa comprometida com o ser humano" que Blanco tanto prioriza manter intacta. O sorridente empresário pode até ser um grande chefe, mas como todo bom patrão, na hora do aperto vai passar por cima de qualquer um para defender a saúde financeira da sua empresa, e é exatamente aí que começam as críticas do filme, todas feitas com muito sarcasmo e bom humor.


6º Bardo - Falsa Crônica de Algumas Verdades, de Alejandro G. Inárritu


Bardo: Falsa Crônica de Algumas Verdades é mais um filme de Inárritu que dividiu muito as opiniões. O roteiro acompanha o jornalista e documentarista mexicano Silverio Gama, que mora nos Estados Unidos há anos e volta ao México para receber um prêmio. Pode-se dizer que o filme é uma grande viagem onírica por dentro da cabeça do diretor, que usa o retorno de Silverio ao seu país natal para abordar temas como a futilidade da sociedade atual, os dilemas de quem vai viver em outro país, a chegada da idade que vai consequentemente nos afastando das pessoas que amamos, e até mesmo o passado sangrento da América Latina. Visualmente belo, o filme possui algumas das cenas mais bonitas e marcantes que vi nos últimos anos, e conta com uma atuação impressionante de Daniel Giménez Cacho.


5º Great Freedom, de Sebastian Meise


Great Freedom conta a história de Hans Hoffman, um homem que ao longo de três décadas foi preso três vezes por praticar atos sexuais com outros homens, um "crime" que fazia parte do código penal alemão até 1994. Entre idas e vindas no tempo, o diretor Sebastian Meise costura histórias vividas por Hans na prisão durante os três períodos, sobretudo a sua relação com Viktor, um homem heterossexual que está preso acusado de assassinato. Com uma direção extremamente competente, Meise consegue passar toda a angústia de alguém que está impedido de ter a sua liberdade, em todos os sentidos possíveis.


4º Elvis, de Baz Luhrmann

 

Em Elvis, Baz Luhrmann nos apresenta a trajetória e o legado de Elvis Presley, mesclando a história do astro com um retrato da sociedade norte-americana dos anos 1950, 1960 e 1970. Para contar a história do artista desde a sua infância em Memphis até sua morte em 1977, o diretor utilizou outro personagem como fio condutor: o coronel Tom Parker, que trabalhava em um circo e descobriu Elvis quando ele ainda era apenas um jovem promissor. Visto por muitos como vilão e talvez até causador da morte do cantor, Parker narra a sua versão da história, direto do seu leito de morte, cabendo ao espectador julgar suas atitudes como certas ou erradas. A montagem do filme é muito dinâmica, contendo inclusive inserções animadas, e tudo transcorre com muita agilidade, o que não deixa o filme perder o ritmo em nenhum momento apesar da sua extensa duração. Importante destacar o trabalho brilhante do ator Austin Butler, que praticamente incorpora Elvis em cena.


3º A Pior Pessoa do Mundo, de Joachim Trier


Abordando as imperfeições e as fragilidades que todos nós temos, o filme de Joachim Trier se divide em 12 capítulos, mais um prólogo e um epílogo, para contar alguns anos da vida de Julie, que está naquela fase de transição (aproximadamente 30 anos) onde o tempo parece estar se esgotando para decidir os caminhos a trilhar. Depois de fazer cursos como medicina e fotografia, mas não encontrar de fato o seu lugar neles, Julie ganha a vida trabalhando numa livraria, enquanto escreve artigos para um site e vive com um homem 10 anos mais velho. Relacionamento, carreira, tudo parece estar indo de mal a pior na vida da personagem, que vive um grande conflito interno e se sente culpada por não estar no mesmo ritmo que os demais ao redor. A Pior Pessoa do Mundo acaba sendo um filme sobre decisões, sobre relações humanas, mas principalmente sobre como a vida é maleável e pode mudar em um piscar de olhos.


2º Argentina, 1985, de Santiago Mitre

 

O filme se passa dois anos após o fim da última e mais violenta ditadura da Argentina, e acompanha o julgamento que colocou os militares responsáveis pela brutal repressão na cadeira dos réus. O caso foi levado a júri pelo veterano promotor Julio Strassera e seu vice-promotor, Luis Moreno Ocampo, que com a ajuda de vários jovens estudantes, conseguiram em tempo recorde resgatar dezenas de milhares de provas dos crimes cometidos durante o regime, além de reunir testemunhas e familiares das vítimas. O filme tem diálogos muito potentes, e a frase "Nunca Mais!" com que Strassera termina seu discurso, e que virou um lema contra a repressão, remete ao sentimento de qualquer sociedade que tenha passado por momentos de perda da liberdade e não quer que isso se repita jamais. Uma grandiosa atuação, mais uma vez, de Ricardo Darín.


1º Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo, de Daniel Kwan e Daniel Scheinert

 

Existem filmes que vão muito além da simples relação filme/espectador, e se tornam verdadeiras experiências para a vida toda. É o caso de Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo, que me deixou completamente sem reação após o seu fim, e que é para mim o grande filme de 2022. O roteiro acompanha Evelyn, dona de uma lavanderia que comanda os negócios com pulso firme junto do marido Waymond. Certo dia, Evelyn descobre uma ruptura interdimensional que a possibilita viajar entre milhares de universos paralelos, e em uma velocidade frenética logo ficamos conhecendo várias outras versões dela, que foram sendo moldadas nos outros universos de acordo com suas próprias escolhas neste atual. Sim, o multiverso acaba sendo o ponto principal do enredo, e é sublime a maneira como os diretores conseguem unir essa característica da ficção científica com um enredo ao mesmo tempo humano e emocional. O filme tem várias passagens reflexivas, que no meio de tanta loucura e insanidade, nos fazem pensar, dentre outras coisas, no sentido da vida, nas relações familiares e nos nossos próprios atos e suas consequências. Como o próprio nome diz, tudo neste filme realmente acontece ao mesmo tempo e em todo lugar, e é uma viagem fascinante.

quinta-feira, 29 de dezembro de 2022

Crítica: As Nadadoras (2022)


O filme da diretora britânica Sally El Hosaini se baseia na história real de Yusra Mardini, atleta da Síria que teve que sair do seu país após o início dos conflitos armados em 2014, mas conseguiu competir nas olimpíadas do Rio de Janeiro pela equipe de refugiados montada pelo comitê olímpico.


O tema dos refugiados é um tema que sempre tem a minha total atenção, e vem sendo constantemente abordado no cinema atual. Não é para menos, já que estamos vivendo um dos períodos de maior crise neste sentido, sobretudo em países do nordeste da África e do Oriente Médio. A própria Síria é, hoje, o país que mais enfrenta o êxodo, tendo o número de refugiados estimado em 13 milhões desde 2015.

O filme começa em 2011 e mostra como a Síria era, até então, um país como qualquer outro, com os jovens se divertindo em festas e tendo sonhos. Nesse cenário vive Yusra (Nathalie Issa), junto de mais duas irmãs menores. Todas são treinadas pelo pai, que sonha um dia ver elas disputando as olimpíadas como nadadoras. A aproximação da guerra cria um clima de tensão dentro da família, até atingir diretamente seus membros e a situação ficar perigosa. Mesmo contrariada, Yursla acaba cedendo a vontade dos pais e vai buscar uma vida na Alemanha junto com sua irmã (Manal Issa) e com o primo Nizar (Ahmed Malek).

No entanto, para chegar na Europa, eles precisam enfrentar uma jornada e tanto, passando por vários países e caindo nas mãos de vários contrabandistas golpistas pelo caminho. O roteiro mostra com muita veracidade todo o processo que boa parte dos refugiados enfrentam para tentar fazer este percurso, onde muitas vezes precisam caminhar por muitas horas ou atravessar longos mares em botes pequenos e com capacidade excedida. Inclusive, uma das cenas de maior tensão do filme é justamente em um momento como esse.


No final, por mais que fuja de apelar para o melodrama, o filme acaba seguindo alguns vícios de "filmes de superação", até por ser uma produção Netflix e, consequentemente, ter uma série de filtros que a impedem de ir mais além do que certamente poderia ir. Mas isso não atrapalha a experiência como um todo e principalmente a mensagem que ele tenta passar.

terça-feira, 27 de dezembro de 2022

Crítica: A Acusação (2022)


Adaptação do romance “Les choses humaines”, da escritora francesa Karine Tuil, A Acusação parte da denúncia de um suposto estupro para mostrar os conflitos que surgem entre os envolvidos, o acusado e a vítima, os familiares dos dois, e a opinião pública estimulada pela mídia.


O filme começa com Alexandre Farel (Ben Attal), filho de um importante jornalista da tv francesa, chegando ao aeroporto de Paris. Ele vive e estuda em Stanford, nos Estados Unidos, e veio passar apenas uns dias no seu país natal. Sua mãe (Charlotte Gainsbourg), uma militante ferrenha dos direitos das mulheres, é quem o acolhe, e no jantar ele conhece o novo namorado dela e sua filha, Mila (Suzanne Jouannet). Os dois acabam saindo para uma festa e no dia seguinte Alexandre recebe a polícia na porta, que o leva para delegacia sob a acusação de ter estuprado Mila na noite anterior.

Dá para dizer que o filme se divide em três partes. A primeira mostra os acontecimentos sob o olhar de Alexandre, enquanto a segunda mostra a visão de Mila, e a direção trabalha muito bem essas duas versões para não ficar repetitivo e ser bem dinâmico. Na terceira parte já estamos no tribunal, onde o júri deve decidir se Alexandre deve ser condenado por estupro ou não, de acordo apenas com os testemunhos, já que não há nenhuma prova do ocorrido.


Ao mesmo tempo que o filme acompanha os depoimentos diante do júri, também vai mostrando através de flashbacks o passo a passo do que ocorreu naquela noite, deixando a cargo de nós espectadores irmos montando a história conforme nossa própria dedução. É interessante a dualidade que o filme causa, pois é difícil saber quem está falando a verdade ou não. É claro que há uma predisposição de acreditar em Mila, até por ela aparentar estar traumatizada com o acontecido, mas ao mesmo tempo vamos percebemos que é plausível o argumento de que tudo não passou de um mal entendido, e que Alexandre pode ser inocente.

Além do acusado e da vítima, o filme também explora bastante a figura dos familiares, principalmente os de Alexandre. O pai é um mulherengo controlador, e mesmo sendo uma figura pública, têm comportamentos totalmente indecentes, inclusive no próprio tribunal, onde fala um absurdo repulsivo na tentativa de defender o filho. A mãe por sua vez vive a controvérsia de sempre ter defendido publicamente uma condenação pesada para crimes de abuso sexual, mas agora precisa lidar com o próprio filho sendo acusado de tal crime.


É um drama que aborda muito bem essa dificuldade de encontrar a verdade, sobretudo quando os envolvidos têm vivências e impressões bem diferentes sobre o acontecimento. Os advogados travam verdadeiras batalhas de argumentos, que muitas vezes acabam até expondo as vidas íntimas, tanto do suposto agressor quanto da vítima, mas a verdade de fato não aparece.


Crítica: Glass Onion - Um Mistério Knives Out (2022)


Lançado em 2019, Entre Facas e Segredos se tornou um grande sucesso de público e crítica, e logo fez com que o diretor Rian Johnson anunciasse para ele uma sequência. Foi aí que nasceu a ideia de Glass Onion: Um Mistério Knives Out, que na verdade não se trata propriamente de uma continuação, a não ser pela presença do mesmo protagonista (o detetive Benoit Blanc), e acaba sendo um filme que se sustenta sozinho.


O enredo começa com vários personagens recebendo uma caixa misteriosa cheia de enigmas para resolver, que no final traz dentro dela um convite para passar uns dias na ilha isolada do magnata Miles Bron (Edward Norton) na Grécia. Entre os convidados está uma governadora em campanha para o Senado (Kathryn Hahn), um cientista renomado que trabalha na empresa de tecnologia deste mesmo magnata (Leslie Odom Jr.), uma socialite que ganha dinheiro com um site de roupas (Kate Hudson), e um influencer que faz vídeos sobre a "supremacia masculina" na twitch (Dave Bautista). Todos parecem super à vontade de voltar à ilha mais uma vez, mas se surpreendem com a presença de outras duas pessoas no embarque: a ex-sócia de Miles, (Janelle Monáe), e o detetive Blanc (Daniel Craig).

Este início, com a caixa misteriosa e a maneira que cada um deles a recebeu e resolveu o mistério para abri-la, foi excelente para nos apresentar de uma só vez todos os personagens e suas principais características, que vão de certa forma explicar suas ações ao longo da trama. O diretor também escolhe contextualizar o início do filme no meio da pandemia de Covid-19, e a forma como alguns deles estão lidando com o isolamento mostra o desapego e o egoísmo da parte de cada um.

A partir do momento que eles estão na ilha e se aconchegam na mansão de Miles, algumas coisas começam a sair do controle do empresário, e o roteiro traça uma estratégia muito parecida com a do primeiro filme, em trazer uma situação em que vários personagens se vêem em um único cenário e precisando desvendar um mistério entre eles. Aos poucos vamos descobrindo o elo que une cada um dos personagens a Miles Bron, e isso também nos ajuda a montar o quebra-cabeça junto com o detetive Blanc.


O design de produção realmente impressiona, e a mansão de Miles é exatamente do jeito que se espera ver da casa de um personagem megalomaníaco como ele, cheia de labirintos e inovações tecnológicas. Outro ponto positivo é a trilha sonora, que encaixa perfeitamente com o clima pretendido do filme. O final, no entanto, me decepcionou um pouco, porque me pareceu forçado e pouco inspirado em relação ao resto. Ainda assim, posso dizer que gostei mais deste filme do que do anterior.


segunda-feira, 26 de dezembro de 2022

Crítica: Bem-Vindos a Bordo (2022)


Seja aos vinte anos, seja aos trinta, o fato é que nós nunca estamos 100% certos sobre nossas escolhas e o nosso futuro. A vida vai passando e a gente vai tentando fazer o nosso melhor, ainda que tenhamos que trabalhar em empregos ruins ou manter relacionamentos superficiais para suprir a carência. E é um pouco sobre isso que fala Bem-vindos a Bordo (Rien à Foutre), dos diretores estreantes Emmanuel Marre e Julie Lecoustre.


O enredo acompanha Cassandre (Adèle Exarchopoulos), uma mulher na altura dos 26 anos que acaba de perder a mãe em um acidente de carro, e luta para seguir firme na carreira de aeromoça em uma companhia aérea espanhola. Apesar de viver viajando e conhecendo novos lugares, a vida de Cassandre acaba sendo bem monótona, sem contar que ela não consegue criar laços com ninguém, já que não tem tempo para isso e nem um lugar fixo. Seu único escape da realidade são as breves noitadas com colegas de trabalho e encontros rápidos com homens que conhece em aplicativos de relacionamento.

Além de mostrar a rotina cansativa das aeromoças, o filme também critica as exigências absurdas que algumas companhias aéreas possuem com suas funcionárias, principalmente em relação a aparência das mulheres. São regras bastante invasivas, como imposição de depilação em dia ou boa forma, além de terem que aprender a manter um sorriso forçado no rosto a todo instante para os passageiros. Isso fica ainda mais evidente quando Cassandre tenta uma vaga na Emirates, que a princípio é o sonho de todos os seus colegas, e precisa passar por um entrevista bem constrangedora.


O filme, no entanto, beira muitas vezes ao amadorismo, principalmente na parte técnica. Alguns movimentos de câmera são tenebrosos, e dá até mesmo a impressão de estarmos vendo uma gravação de celular. Inclusive, a cena final é uma das coisas mais sem sentido que assisti este ano no cinema, o que me deixou bem frustrado. Ainda assim, mesmo com estes defeitos, Bem-Vindos a Bordo ainda vale a pena pela boa atuação da Adèle Exarchopoulos e pelo bom desenvolvimento da sua personagem.


domingo, 25 de dezembro de 2022

Crítica: Avatar - O Caminho da Água (2022)


Muito mais do que um filme, Avatar: O Caminho da Água é uma verdadeira experiência sensorial única e incomparável até então. Ao sair da sala de cinema, falei a seguinte frase: "o 3D engatinhou para que chegássemos até aqui, e foi criado especialmente para que pudéssemos assistir a esse filme". Sim, eu estava completamente extasiado com o que vi, e se um filme é capaz de nos deixar assim após o seu final, é porque ele conseguiu cumprir o seu papel.


Mais de uma década após o primeiro Avatar, que naquela época já havia sido revolucionário em termos de visual e uso do 3D, James Cameron nos leva de volta à Pandora, o planeta onde vivem os Na'vi, seres humanóides que medem de 3 a 4 metros de altura e possuem a coloração azul. Jake Sully (Sam Worthington), o humano que acabou ajudando os Na'vi a combater o coronel Miles Quaritch (Stephen Lang) no primeiro filme, agora vive entre eles, e formou uma bela família junto de Neytiri (Zoë Saldana). O casal e seus três filhos vivem tranquilamente em conexão com a natureza exuberante de Pandora, até os humanos voltarem ao planeta para explorar as riquezas naturais com máquinas ainda mais mortais do que anos atrás.

Percebendo que existe um ação para vingar a morte do coronel, e que ele é o alvo principal, Jake decide ir com sua família para outro canto do planeta, chegando em uma tribo completamente diferente nos modos e até mesmo na aparência. É muito interessante o jeito como Cameron introduz esta nova tribo e seus costumes, e principalmente a forma como Jake, Neytiri e os filhos passam a aprendê-los para conviver entre eles. Como seres que viviam basicamente nas matas, eles agora precisam desenvolver aptidões específicas para a água, bem como lidar com uma nova fauna e flora.

Este período entre um filme e outro foi importantíssimo para que o diretor aprimorasse ainda mais as questões técnicas, sobretudo o uso do 3D embaixo d'água, e o resultado é realmente estupendo. As cenas subaquáticas são, de fato, as cenas mais bonitas que já vi no cinema. Não existe nada igual em termos de imersão e beleza, e Cameron sabe disso, por isso usa e abusa de cenas longas de silêncio e pura contemplação.


Em relação a roteiro e montagem, no entanto, é preciso dizer que o filme tem os seus deslizes e suas limitações. Não atrapalha a experiência final, mas tem. O roteiro acaba sendo bastante cíclico, e em uma cena específica uma das personagens até brinca com isso, quando fala "olha, aqui estou eu mais uma vez no mesmo lugar". O vilão também parece estar numa vingança quase cega, e com uma motivação meio torpe, e no final ainda tem um momento envolvendo ele e o "filho" que me deixou um tanto quanto revoltado. Outro ponto negativo, mas que considero algo totalmente pessoal, é o velho hábito que existe em filmes "blockbuster" norte-americanos de sempre colocar piadinhas na boca dos personagens enquanto eles estão lutando pela própria vida e vêem colegas sendo mortos. Para mim não faz o menor sentido, e é um dos motivos de eu detestar filmes de heróis, por exemplo.

Assim como no primeiro Avatar, é bem explícita a crítica feita a respeito da destruição gananciosa da natureza, e neste caso em específico sobre as pescas predatórias. Há inclusive um momento em que um dos personagens indaga sobre eles terem gasto horas de esforço para matar um animal, sendo que a única coisa que vão usar dele é um líquido que no final é coletado em menos de 1 minuto. Essa questão ambiental ganha ainda mais força quando paramos para analisar o modo como os Na'vi se conectam com a natureza e vêem os animais quase como membros de suas famílias.
 

Por fim, Avatar é, acima de tudo, uma realização pessoal de James Cameron, pois mesmo sendo responsável por clássicos como Titanic e Exterminador do Futuro, percebe-se que ele tem aqui o grande projeto da sua vida, e que o trata com o maior carinho e cuidado. E nós agradecemos por isso, porque o resultado na tela do cinema é fascinante.
 

domingo, 18 de dezembro de 2022

Crítica: Bardo - Falsa Crônica de Algumas Verdades (2022)


Alejandro González Inárritu chega ao seu sétimo filme solo na carreira, e por mais que alguns sejam bem divisivos, não dá para chamar nenhum deles de ruim. É impressionante a habilidade que ele tem de contar uma história, e eu sou um grande admirador do seu trabalho desde Amores Brutos, que foi inclusive um dos responsáveis por eu amar tanto o cinema latino-americano.


Bardo: Falsa Crônica de Algumas Verdades é mais um filme que vai dividir muito as opiniões, e eu mais uma vez estou do lado dos que gostaram. O roteiro é uma grande viagem onírica por dentro da cabeça do diretor, abordando temas como a futilidade da sociedade atual, o dia a dia de quem deixa seu país natal para viver em outro, a chegada da idade que vai consequentemente nos afastando das pessoas que amamos, e até mesmo o passado sangrento da América Latina.

Vivendo há mais de uma década em Los Angeles, o jornalista e documentarista mexicano Silverio Gama (Daniel Giménez Cacho) está de volta ao seu país de origem para receber um prêmio. Durante a estadia, é fortemente criticado pelos compatriotas por estar vivendo "como os americanos" e ter esquecido suas raízes. Durante a estadia, Silverio vai sobretudo reencontrando velhos desafetos, com quem tem debates calorosos sobre a situação atual do México e o fato de ter deixado sua pátria anos atrás.


O roteiro nos confunde propositalmente em vários momentos, onde não dá para saber se o que está acontecendo é real ou fruto da imaginação do protagonista, salvo algumas exceções onde isso fica bem evidente, como nas cenas em que ele conversa com os pais. O filme ainda tem uma inserção interessante quando Silverio conversa com Hernán Cortés, o conquistador espanhol que destruiu o Império Azteca nos anos 1500, sob uma pirâmide de cadáveres indígenas.
 
Outro ponto interessante é a relação que Silverio tem com seus filhos, Camila (Ximena Lamadrid) e Lorenzo (Iker Sánchez Solano), e sua esposa, Lucia (Griselda Siciliani). Enquanto ele está revisitando memórias e tentando se redescobrir, os filhos estão apenas curtindo a viagem e até mesmo achando enfadonho o tempo ocioso, já que eles não conseguem enxergar o México como terra deles, visto que não viveram ali (no caso de Lorenzo, que nasceu nos Estados Unidos, jamais havia sequer pisado no país). Quando a família está voltando para casa nos Estados Unidos, Silverio é tratado com desprezo pelo funcionário do aeroporto, que diz que ele não tem o direito de chamar os Estados Unidos de lar, mesmo morando no país há anos, e essa é apenas uma das várias críticas que aparecem ao longo do filme a respeito da forma como os norte-americanos enxergam os latinos.
 

Algumas cenas do filme são um verdadeiro deleite visual e estético, como a "cena da dança", em que o protagonista faz uma performance ao som de David Bowie. A transição, a coreografia e o movimento da câmera neste momento são o suprassumo do que podemos chamar de cinema arte. Aliás, que grande atuação de Daniel Giménez Cacho, para mim uma das maiores do ano. Por fim, Bardo é o exercício de um grande diretor em tentar contar sua história de uma forma nada convencional, e eu achei tudo sensacional, dos diálogos às atuações, da fotografia à trilha sonora. Um filme potente, diferente e, sobretudo, artístico.