sexta-feira, 24 de abril de 2020

Crítica: Filhos da Dinamarca (2020)


Em Filhos da Dinamarca (Danmarks Sonner), seu longa-metragem de estreia, o diretor Ulaa Salim disserta sobre um assunto bastante atual na política social europeia: a ascensão de movimentos ultranacionalistas que resulta na xenofobia praticada contra imigrantes, em sua grande maioria oriundos de países que estão vivendo uma guerra.


O filme se passa em 2025, um ano após um violento atentado no centro de Copenhague que matou 25 pessoas e deixou outras tantas feridas. Depois do atentado, que foi atribuído a terroristas muçulmanos, o ultranacionalismo cresceu no país e nesse cenário surge "Filhos da Dinamarca", um grupo conservador e nacionalista que começa a praticar crimes de ódio contra os imigrantes. Em contrapartida nasce também, nos subúrbios da cidade, um grupo de radicais liderados por imigrantes.

Como um barril de pólvora pronto a estourar, o ódio entre os dois lados se intensifica ainda mais quando as eleições para definir o novo primeiro ministro do país começaram a se aproximar. Aproveitando a onda reacionária, Martin Nordahl (Rasmus Bjerg), um político da extrema direita, começa a crescer nas pesquisas com o discurso anti-imigração, dizendo que, literalmente, todos precisam ser varridos da Dinamarca para que o país volte a crescer e viver em harmonia.


O roteiro pode ser dividido em duas partes, e possui uma reviravolta bem interessante na metade. No começo ele foca mais em Zakaria (Mohammed Ismail), um jovem de origem muçulmana que vive com a mãe e o irmão mais novo na capital e entra para o grupo de imigrantes rebeldes na mesma época em que eles estão tramando um atentado contra a vida do político. A segunda parte foca no serviço de inteligência da polícia, que tenta, através de interceptações telefônicas, descobrir até onde Nordahl está ligado ao grupo radical nacionalista.

Por fim, para bom entendedor meio filme basta para que se faça uma ligação da situação mostrada na estória com o que vemos hoje em muitos lugares, inclusive aqui no Brasil, onde o ódio vem cada vez sendo mais disseminado e a empatia deixou de existir há tempos. Basta abrir qualquer caixa de comentários em notícias para ver como estamos no mesmo nível de regressão e isso choca. Confesso que o filme me sufocou bastante no final, justamente por eu conseguir traçar esse paralelo como a nossa realidade.

sexta-feira, 17 de abril de 2020

Crítica: Queen & Slim (2020)


Um dos temas mais abordados ultimamente no cinema é a opressão policial, principalmente contra a população negra, e os filmes "O Ódio que Você Semeia", "Blindspotting" e "American Son" são bons exemplos recentes. Queen & Slim, da estreante diretora Melina Matsoukas, reúne um pouco de cada um deles para trazer às telas mais uma história revoltante de injustiça social.



O filme começa em uma cidade do estado de Ohio, onde Earnest (Daniel Kaluuya) e Angela (Jodie Turner-Smith) estão tendo o primeiro encontro depois de se conhecerem pelo Tinder. Os dois parecem não se dar muito bem, mesmo assim a mulher aceita uma carona até sua casa após o jantar. No meio do caminho, porém, os dois são parados por uma viatura polícia, e sem nenhum motivo aparente o policial resolve agredir Earnest, que numa reação de defesa acaba matando o oficial. 

Analisando o contexto da sociedade que a gente vive, sabemos que um homem negro, mesmo agindo sob legítima defesa, seria abatido ou acusado de agir com dolo assim que chegassem as viaturas para atender a ocorrência. Por isso mesmo, sabendo dessa realidade de marginalização do negro, Earnest e Angela resolver deixar tudo para trás e fugir da cidade, seguindo até outro estado para se esconder na casa de parentes.



O filme tem um ar de "road movie" e boa parte de suas ações acontecem mesmo na estrada, com situações que os dois enfrentam e pessoas que encontram pelo caminho. Mais do que uma fuga de um crime, a jornada acaba sendo até mesmo de descoberta para ambos, e um dos pontos positivos da trama são seus diálogos. Contando com a ajuda de outras pessoas, e muitas vezes com a própria sorte, os dois vão conseguindo escapar da perseguição policial, ao mesmo tempo em que o vídeo do homicídio vaza na internet e inflama toda a comunidade negra a seu favor.

Em termos narrativos, não há muita surpresa, quase como se seguisse uma cartilha. Mas isso não é demérito nenhum. É um filme que evidentemente tem uma bandeira, mas isso não o torna necessariamente panfletário. Há, sim, uma abordagem bastante humana sobre um assunto que vem sendo discutido há muito tempo e que se torna cada vez mais necessário. A trilha sonora também é outro ponto muito bem trabalhado, além das boas atuações de Daniel Kaluuya (do filme Corra!) e da estreante em filmes Jodie Turner-Smith.


Por fim, Queen & Slim é uma grata surpresa do cinema neste ano. Um filme que sabe discutir o preconceito racial com muita maturidade, ao mesmo tempo que disserta sobre valores como o amor e a empatia. Possui algumas cenas bem emblemáticas e uma representatividade muito forte, que só engrandecem ainda mais essa bela obra.

terça-feira, 14 de abril de 2020

Crítica: Magnatas do Crime (2020)


O britânico Guy Ritchie é aquele típico cineasta que possui uma assinatura própria e inconfundível em seus trabalhos. Entretanto, ele vinha deixando de lado esse seu estilo nos últimos anos para se embrenhar no mundo dos blockbusters, onde filmou longas como Aladdin e Rei Arthur. Com Magnatas do Crime (The Gentlemans), Ritchie volta ao velho estilo que o consagrou, para alegria dos fãs que esperavam ávidos por esse momento.


O filme conta a história de Mickey (Matthew McConaughey), um produtor e vendedor de maconha do Reino Unido que está querendo se aposentar dos negócios e vender o império que construiu do zero e comandou por décadas. O principal interessado na compra é um bilionário britânico (Jeremy Strong), mas no meio de tudo existem muitos outros interessados, que irão tentar tomar o negócio de outras formas mais "fáceis".

Ao bater o olho no roteiro, ele até não parece trazer nada de extraordinário e que já não tenha sido mostrado em tela, mas o que faz o filme ser diferente de tudo que foi visto no cinema nos últimos anos é a sua forma narrativa nada convencional. Toda a história de Mickey é contada por Fletcher (Hugh Grant), que está escrevendo o roteiro de um filme e está mostrando-o para Ray (Charlie Hunnan), que por sua vez é um dos principais empregados e capangas de Mickey. Essa metalinguagem utilizada para contar uma história dentro de outra pode parecer confusa pra quem ainda não assistiu o filme e está lendo isso, mas funciona demais na tela.


Ao longo do filme vão surgindo muitas histórias paralelas, muitos personagens, e isso não deixa o filme cair de rendimento em nenhum momento, porque está sempre com aquele clima de novidade no ar. O final traz um plot twist muito interessante e deixa um gostinho de sequência vindo por aí. Na parte técnica, é imprescindível falar primeiramente da trilha sonora, que é fantástica e casa perfeitamente com todo o clima do filme. Figurino, design de produção e fotografia também são de encher os olhos.

Se a parte técnica está impecável, o que dizer desse elenco afiadíssimo? Matthew McConaughey está mais uma vez perfeito no papel do protagonista, mas dois nomes se destacam entre os demais: Charlie Hunnam (um dos melhores atores dessa geração e que infelizmente ainda é muito subestimado) e Hugh Grant (uma atuação de gala do ator como eu não via há muito tempo). O filme ainda tem participações importantes de Colin Farrell, Jeremy Strong, Henry Golding e Michelle Dockery, todos excelentes.


Magnatas do Crime é, para mim, uma das maiores e mais bem vindas surpresas do cinema nesse ano louco que a gente está vivendo. Um filme que eu reverencio pela qualidade, mas acima de tudo pela coragem de não se apegar em artifícios simplórios para agradar o grande público. Um grande acerto de Guy Ritchie depois de muitos anos.

segunda-feira, 13 de abril de 2020

Crítica: Waves (2020)


Com o passar dos anos a gente vai aprendendo a identificar se um filme vai ser bom ou ruim logo nos primeiros dez minutos da exibição. Claro, existem exceções e alguns até conseguem surpreender depois, mas em regra isso dificilmente falha. Waves, do diretor Trey Edward Shults, me conquistou desde a sua primeira cena e segurou minha atenção até os créditos finais com um drama familiar bastante intenso e humano.



O filme acompanha uma família negra de classe média de Miami e pode ser dividido em duas partes, que mesmo distintas se ligam por um "denominador comum". A primeira parte foca em Tyler (Kevin Harrison Jr.), o filho mais velho da família, que cursa o colegial e sofre uma pressão violenta do pai (Sterling K. Brown) para ser bem sucedido na vida, principalmente nos esportes. Essa relação pai e filho é o que move essa primeira parte, além do namoro de Tyler com Alexis (Alexa Demie), que descobre estar grávida.

Após um fato trágico a família se desestrutura totalmente, e a segunda parte do filme foca em Emily (Taylor Russell), a irmã mais nova da família, e na sua relação com os estudos e com Luke (Lucas Hedge). O roteiro muda um pouco de tom nessa parte mas não perde o ritmo, graças aos bons argumentos que vão surgindo a todo momento e que vão mantendo a curiosidade no espectador.



A direção de Trey Edwards é sublime. A forma não convencional que é utilizada para contar a estória faz toda a diferença no seu desenrolar e auxilia no apego emocional que se cria entre o espectador e os personagens. Isso ganha ainda mais força por conta das atuações, e neste quesito eu destaco o garoto Kevin Harrison Jr., que surpreende com uma atuação extremamente madura e enérgica.

A trilha sonora também é um dos pontos mais fortes do filme. Algumas músicas se fundem com a própria cena e com os sentimentos e pensamentos dos personagens naquele momento e é muito interessante ver como isso funciona na tela. Por falar em tema, os formatos da exibição também mudam conforme o tom do filme, ora com tela cheia, ora com tela reduzida. 



Por fim, Waves é mais uma prova concreta de que, por mais simples que seja a história contada, nas mãos de um diretor competente ela ganha potencial para se transformar em uma grande obra. Mais uma produção competente da A24 que não ganha a notoriedade que merece, mas que se torna inesquecível para qualquer um que tem a oportunidade de assisti-la.