quarta-feira, 24 de março de 2021

Crítica: Agente Duplo (2020)


Realidade ou ficção? Essa dúvida paira no ar em alguns momentos durante a exibição de Agente Duplo, um documentário diferente de tudo que eu já havia visto até então no gênero e que foi escolhido para representar o Chile no Oscar 2021.



Quando uma mulher entra em contato com uma agência de detetives para descobrir como sua mãe está sendo tratada em um asilo, a cineasta Maite Alberdi vê nesta história uma oportunidade única de fazer um “filme de espionagem” usando a investigação como pano de fundo. Após anúncio no jornal, vários idosos na faixa de 80 anos são entrevistados para um trabalho que até então não sabem qual é, e entre eles o escolhido acaba sendo Sérgio, um viúvo de 83 anos. Ele aceita de prontidão o trabalho, que consiste em entrar como "espião" na casa de repouso para passar informações de como está sendo tratada a idosa.

O filme começa mostrando o processo de seleção de Sérgio e o seu treinamento, onde, dentre outras coisas, precisa aprender a usar celular, já que ele não tem nenhuma experiência com tecnologias. Esta, inclusive, é uma das partes engraçadas do longa. Depois do treinamento, ele enfim entra na casa de acolhimento munido de uma agendinha para anotar tudo, um óculos com câmera embutida e microfones escondidos.



Sergio passa então a conviver com os moradores do asilo como se fosse um interno de verdade, ouvindo histórias, lembranças, queixas e até mesmo despertando paixões. Aos poucos vamos sabendo mais da vida de cada um deles apenas pelas conversas com Sérgio, e é impossível não se emocionar com o que vemos. O que era para ser um filme denúncia, acaba se transformando num filme sobre o cotidiano da velhice e da sua solidão. A trama desperta muita ternura, mas também destaca algo bem doloroso: a maior parte dos idosos estão vivendo abandonados pelos familiares, e não recebem visitas há anos. E fica evidente o sentimento de ingratidão que eles carregam dentro de si.

O filme particularmente me tocou muito, pois me fez lembrar da minha avó que faleceu há 2 anos atrás, e que eu visitava constantemente num desses lares. É um desses filmes que, de certa forma, muda algo dentro da gente após seu término e é impossível continuar o mesmo.


terça-feira, 16 de março de 2021

Crítica: Quo Vadis, Aida? (2020)


As cicatrizes da guerra da Bósnia, que durou de abril de 1992 até dezembro de 1995 nos territórios balcânicos, ainda doem na população daquela região, e isso reflete muito no cinema feito por lá. Quo Vadis, Aida?, da diretora Jasmila Zbánic, se passa no final do conflito e conta a história real do que ficou conhecido como genocídio de Srebrenica, o maior massacre ocorrido em terras européias desde a Segunda Guerra Mundial.


Após invasão do exército sérvio à cidade de Srebrenica, a população desesperada tenta se refugiar na base da ONU localizada na cidade. No entanto, nem todos conseguem entrar no local por conta do espaço limitado e uma multidão de mais de 30 mil pessoas fica do lado de fora. Enquanto isso, do lado de dentro, o coronel Karreman (Johan Handerberg), encarregado da ONU para intermediar o conflito na região, tenta a todo custo salvar essas vidas, mas enfrenta o total descaso de seus superiores e vê a situação ficando cada vez pior com a aproximação dos sérvios.

No meio disso tudo está Aida (Jasna Duricic), que trabalha como intérprete na sede e ajuda nas negociações entre bósnios, sérvios e membros da ONU. A câmera a acompanha a todo momento, quase de forma documental, tanto em momentos de tranquilidade como em momentos de extremo caos. Ao perceber que a situação está ficando irremediável, Aida tenta de tudo para salvar pelo menos seu marido e seus dois filhos.



Pelo tema abordado, obviamente não poderia se esperar um filme leve. Pelo contrário, é uma trama que dói, machuca, e principalmente nos revolta. Não poderia faltar críticas à forma que a ONU lidou com tudo, que assim como já mostrado em outros filmes sobre o conflito (vide  Terra de Ninguém), se mostrou completamente incompetente em lidar com a situação. Com uma direção competentíssima e uma excelente atuação da sua protagonista, Quo Vadis, Aida? se tornou, para mim, o grande favorito ao Oscar 2021 de melhor filme estrangeiro. Filmes como esse são necessários não somente para se compreender a história, mas principalmente para que ela não se repita.


quarta-feira, 3 de março de 2021

Crítica: Nomadland (2020)


"Lar é só uma palavra, ou é algo que carrega consigo?". O trecho de uma letra de The Smiths, tatuada no braço de uma personagem, diz muito sobre Nomadland, novo trabalho da diretora Chloé Zhao, premiado como melhor filme no último festival de Veneza e aclamado em todos os lugares onde é exibido.

 


A trama acompanha Fern (Frances McDormand), uma mulher que ficou desamparada depois que a empresa onde trabalhava fechou as portas por conta da crise econômica que assolou os EUA em 2008. Sem trabalho fixo e sem casa, Fern passa a atravessar as estradas do país fazendo bicos, enquanto dorme em sua van e enfrenta todo tipo de adversidades. Na sua jornada, Fern vai conhecendo outras pessoas que vivem a mesma situação dela, de marginalização, inclusive uma comunidade nômade, onde faz amizades e finalmente se sente parte de algo maior.

O roteiro tem um ar documental, até pelo fato de juntar ao elenco pessoas que realmente vivem essa realidade na pele diariamente. É bem emocionante ouvir os relatos deles, alguns inclusive dos quais jamais esquecerei. São abordados assuntos como o sistema de aposentadoria, a chegada da idade e o peso de se viver numa sociedade injusta e desigual. Uma das personagens que mais me marcou foi Swankie, uma senhorinha que tem um monólogo belíssimo, e que faz a gente pensar no valor das coisas simples e no quanto nos preocupamos com coisas superficiais sem realmente apreciarmos o que está de graça à nossa volta.



McDormand por sua vez está maravilhosa, como sempre, mesmo numa personagem que, a princípio, não exige tanto dela. A fotografia e a trilha sonora também são encantadoras e fazem toda a diferença no conjunto da obra. Por fim, Nomadland é um filme grandioso na sua simplicidade e que desperta os sentimentos mais diversos com muito pouco. Com certeza um dos filmes mais bonitos e sensíveis do ano.