quinta-feira, 28 de setembro de 2023

Crítica: Afire (2023)


Considerado um dos principais nomes do cinema alemão na contemporaneidade, Christian Petzold volta às telas três anos depois de "Undine" com Afire (Roter Himmel), filme que fez sucesso no último Festival de Berlim se sagrando com o Grande Prêmio do Júri. Com um início que lembra um típico filme leve e divertido de férias, o roteiro surpreende ao ir para um outro lado e mostrar, de maneira bem realista, a forma complexa como surge o amor, o desejo e sobretudo o ciúmes.


A trama inicia com dois amigos, Felix (Langston Uibel) e Leon (Thomas Schubert), indo de carro para a casa da mãe do primeiro, que fica em uma floresta isolada próxima do mar báltico. Ambos tem motivações diferentes para essa viagem: enquanto Felix tem uma ideia para completar seu portfólio de fotografias e dar seguimento nos estudos, Leon quer apenas um lugar tranquilo e relaxado para continuar escrevendo o seu segundo romance. Ao chegar no local, eles logo descobrem que a mãe de Felix havia emprestado a residência para Nadja (interpretada pela "musa" do diretor, Paula Beer), filha de um conhecido da família e que está no local para trabalhar na praia durante a alta temporada. Agora, o único jeito é os três dividirem o mesmo teto pelas próximas semanas.

O diretor trabalha com maestria a aproximação destes personagens. Eles demoram para ter o primeiro contato pessoalmente, e a única coisa que os fazem ter certeza de estarem com outra pessoa na casa são os gemidos ouvidos no quarto ao lado, quando Nadja recebe a visita noturna de Devid (Eno Treds), o salva vidas da praia. A princípio, Felix lida muito bem com toda a situação e acaba fazendo uma amizade com a mulher e o seu "companheiro". Leon, por outro lado, se mostra extremamente incomodado com tudo, desde de ter que dividir o mesmo quarto com Felix (já que a ideia inicial era se isolar no cômodo ocupado pela moça para escrever), até o fato de não conseguir dormir por causa dos sons vindo do quarto ao lado.

É um filme que prioriza sobretudo a construção de seus personagens, e Leon é certamente o mais difícil de ser decifrado. Extremamente pessimista e cheio de neuroses, ele parece incapaz de relaxar e apreciar qualquer coisa que fuja daquilo que havia programado na sua cabeça. Enquanto o amigo toma banho de mar e caminha pela praia, ele prefere ler e dormir na areia, enquanto os outros membros da casa se divertem e confraternizam em um jantar, ele prefere o silêncio do quarto. Porém, sempre espiando de alguma maneira, sobretudo Nadja, por quem logo de cara fica evidente que ele criou algum tipo de sentimento, que talvez nem ele mesmo saiba explicar o que é, apesar de ser evidente a nós espectadores.


Há durante todo o momento do filme uma sensação de desconforto, como se algo errado fosse acontecer a qualquer momento, e isso se intensifica quando ficamos sabendo que as queimadas na floresta que ronda o local, que no início do filme estavam bem distantes, estão ficando cada vez mais próximas de onde os personagens estão. E a forma como o diretor une a trajetória dessa força da natureza com a história dos personagens é sublime, e culmina em um final surpreendente, inesperado e até mesmo chocante.

segunda-feira, 25 de setembro de 2023

Crítica: Ninguém Vai te Salvar (2023)


É possível cativar o público e criar um clima de tensão sem uma única linha de diálogo por cerca de uma hora e meia? Não, eu não estou falando de Um Lugar Silencioso, filme que se tornou um sucesso de bilheteria em 2018, mas sim de Ninguém Vai te Salvar (No One Will Save You), escrito e dirigido por Brian Duffield e que estreou há poucas semanas diretamente no catálogo da Star+. O roteiro é mais uma prova de que a capacidade de comunicação e linguagem entre filme e espectador vai muito além de diálogos, propondo uma verdadeira experiência visual e sensorial que prende a atenção até o final.


A trama acompanha Brynn Adams (Kaitlyn Dever), uma jovem que vive sozinha em uma cidade pitoresca e isolada no interior dos Estados Unidos, onde aparentemente todos os vizinhos a tratam com desdém e rancor por algo que aconteceu no passado, e que vai ser desvendado no decorrer da narrativa. Certo dia ela ouve barulhos enquanto tenta dormir e percebe que a casa está sendo invadida, mas não são invasores comuns: são alienígenas. Ao tentar combatê-los, ela fere um deles, que cai morto no assoalho da casa, e a partir de então começa a receber cada vez mais visitas inesperadas e lutar pela sua própria sobrevivência.

Este primeiro ato, onde a ação ocorre dentro da casa da personagem, é muito bem construído e eu diria que é o ponto forte do filme. No entanto, toda a tensão que o diretor consegue criar nestes primeiros minutos parece diminuir quando Brynn sai de casa e os cenários externos passam a ser explorados, onde aparecem novos personagens e situações a serem enfrentadas por ela. Em um filme sem diálogos, é importantíssima a linguagem corporal, e nisso Kaitlyn Dever dá show. Sua personagem consegue segurar o clima do filme todo apenas com seus trejeitos e suas expressões, em um trabalho primoroso da jovem atriz. Além disso, toda a construção da personagem, tanto a parte visual (uma menina que se veste e vive como se ainda estivesse no século passado) como o mistério instigante que envolve o seu passado, ajudam a criar a empatia no espectador, o que é importante quando se precisa torcer pela "mocinha", já que por ser tão reclusa ela literalmente não tem ninguém para salvá-la, a não ser a si mesma.


O diretor mergulha nesse mundo dos filmes de invasão alienígena e mesmo não trazendo nada relativamente novo, consegue apresentar alguns rompantes de originalidade. O visual do filme, e principalmente dos seres extraterrestres, é muito bem feito. Temos uma variação de tamanhos, desde seres com tamanho de crianças até alguns que são maiores que uma casa, e isso também cria uma estética curiosa. O que faz o filme perder um pouco de força perto do final é justamente a trama que envolve os acontecimentos do passado de Brynn, que quando revelados, não tem a força necessária para justificar que tenha sido tão importante até então para a trama. O diretor tenta fazer um paralelo entre a invasão e o sentimento de culpa que a personagem carrega consigo, e o final acaba sendo interpretativo, ficando a critério de cada um entender os simbolismos da maneira que preferir.


domingo, 24 de setembro de 2023

Crítica: Cassandro (2023)


De grande importância na cultura mexicana, as "luchas libres" ganharam força a partir dos anos 1940 e se tornaram um fenômeno de audiência nas décadas seguintes. Muito mais do que uma luta entre dois oponentes, estes eventos eram verdadeiros espetáculos, onde os "wrestles" enlouqueciam o público com uma série de movimentos acrobáticos, tudo devidamente combinado. Os vencedores já eram escolhidos previamente, e a diversão consistia justamente na performance de cada um dentro do ringue, geralmente com todos utilizando máscaras coloridas. Dentre muitos lutadores que ficaram conhecidos neste meio está Saúl Almendáriz, um homem assumidamente homossexual que revolucionou a forma como o público e o próprio espetáculo em si enxergavam os "exóticos", homens que lutavam vestidos como drag queen. Baseado na história real de Saúl, o filme de Roger Ross Williams é uma homenagem não somente à figura icônica do luchador, mas também às próprias apresentações que marcaram uma geração.


A trama inicia nos anos 1980, onde Saúl (interpretado brilhantemente por Gael García Bernal) está ganhando a vida participando de pequenos shows de lucha libre em Juarez, na fronteira do México com os Estados Unidos, onde encarna o personagem "El Topo". Por ser franzino e não saber lutar como os outros, ele é sempre escalado para ser o lutador derrotado, sendo "humilhado" pelos grandalhões com quem divide o ringue, principalmente por "Gigántico", que é aclamado pelo público local. Disposto a aprender mais sobre os golpes e tentar crescer dentro deste universo, ele passa a receber treinamento de Sabrina (Roberta Colindrez), que luta na categoria feminina destes eventos.

Muito mais do que a vida profissional, o filme foca também na vida particular de Saúl, onde ele tem uma relação muita estreita com a mãe (Perla de la Rosa), com quem mora junto. Das novelas que assiste com ela na televisão surge a ideia de uma vestimenta diferente para utilizar nas lutas, e um novo nome: Cassandro. Não demora para o novo personagem cair nas graças do público, mas a dificuldade agora é convencer os brutamontes que eles devem perder para um "exótico" no ringue, algo que era até então vergonhoso e inaceitável. Com uma carreira cada vez mais sólida, Saúl sonha juntar dinheiro para comprar a tão sonhada casa com piscina para a mãe, ainda que o destino pregue algumas peças pelo caminho.

Através de flashbacks, acompanhamos também como foi a relação de Saúl ainda pequeno com o pai, um homem que teoricamente nunca assumiu sua mãe por já ter uma esposa e filhos em outro lugar. Apesar de serem emocionalmente distantes, foi por causa do pai que Saúl passou a assistir e gostar de lucha libre, enquanto acompanhavam juntos o grande ídolo do esporte no passado, El Hijo del Santo. E o irônico é que agora ele mesmo é um ícone no esporte, não pode contar com este mesmo apoio, já que o pai virou um religioso contumaz e renega o filho há anos desde que ele se assumiu sua homossexualidade.

 

A alma do filme é Gael García Bernal. Sou fã do ator desde o início da sua carreira, e posso dizer com propriedade que esta é uma das suas melhores atuações até então. Incrível como ele consegue ser tão versátil e trazer tanta sinceridade na pele de um personagem que precisava exatamente disso para criar empatia no espectador. A trilha sonora do filme também é excelente, assim como toda a parte estética, que nos coloca vigorosamente dentro deste mundo tão singular. Por tud isso, Cassandro é uma das grandes surpresas do ano para mim.

sábado, 23 de setembro de 2023

Crítica: Tenho Sonhos Elétricos (2023)


Marcando a estreia da costa-riquenha Valentina Maurel na direção de longas metragens, Tenho Sonhos Elétricos é um drama sensível e bastante humano que entrou recentemente no catálogo da Mubi no Brasil, e fala sobre amadurecimento, sobre ambientes familiares desajustados e sobre o círculo de violência que permeia muitas famílias de maneira passiva.


Eva (Daniela Marín Navarro) é uma adolescente de 16 anos, que vivencia a separação dos pais após o pai, Palomo (Reinaldo Amien), deixar com que o vício em bebidas alcoólicas, aliado à sua própria personalidade explosiva, destruísse a relação dentro de casa. No entanto, ela não aguenta mais morar com a mãe e as irmãs mais novas, e de certa maneira até culpa a mãe pelo divórcio, e justamente por isso tenta se aproximar o máximo possível da figura paterna, vendo inclusive apartamento para que eles possam morar juntos.

Apesar das enormes diferenças entre os dois, Eva tem uma semelhança crucial com o pai: ela é dona de um "espírito livre" e também tem um gosto forte pela arte, assim como ele. É bem interessante analisar a construção que a diretora faz da personalidade de ambos. Palomo é um tradutor que explora seu lado poético em pequenas poesias não publicadas, algo que jamais se esperaria de alguém que age de maneira tão impulsiva e violenta. Ele demonstra ser carinhoso e protetor com a filha, mas tem uma raiva contida que quando transborda acaba ferindo aqueles que ele ama e principalmente a si mesmo. Uma personalidade ambígua, onde é difícil decifrar a antever seus atos. A personalidade de Eva também é complexa, sobretudo por estar em uma idade de autoconhecimento, inclusive na parte da sexualidade. E mesmo assim, há um elo que os une de forma muito orgânica, inexplicável e inquebrável.


Apesar de ter a estrutura de um filme "coming of age" clássico, o roteiro foge de alguns clichês e mostra esse amadurecer da personagem de forma muito verdadeira. Aliás, o filme todo é de um realismo voraz e quase perturbador, ao apresentar junto com essa jornada de crescimento da protagonista um recorte preciso e muito humano sobre famílias desajustadas e suas consequências. Uma ótima estreia para uma diretora promissora.


segunda-feira, 18 de setembro de 2023

Crítica: El Conde (2023)


Minha relação com o cinema de Pablo Larraín é bastante controversa. Gosto muito de "No" e tenho simpatia por "Jackie" e "Spencer", mas por outro lado detestei "Ema" e "El Club". Apesar da inconstância, é um cineasta que sempre chama a minha atenção quando lança algo novo, e com El Conde não poderia ser diferente, até pela sua premissa no mínimo inusitada. Conhecido por suas críticas a respeito da política e da sociedade chilena, Larraín lança agora aquela que, sem dúvidas, é a mais escrachada de todas, onde nos apresenta uma das figuras mais odiosas da história recente, Augusto Pinochet, em forma de vampiro e sedento por corações humanos.


Na trama, Pinochet (Jaime Vadell) é um vampiro bicentenário, que está na Terra desde os tempos da Revolução Francesa, onde era soldado do reino e apaixonado por Maria Antonieta. Com o decorrer do tempo, e a queda da monarquia, veio parar em terras sul americanas, onde resolveu espalhar sua maldade se tornando general, e logo após, um ditador sanguinário (o trocadilho perfeito neste caso). Decepcionado por ter feito tanto pela população chilena (segundo ele mesmo, é claro) e ainda assim ser desprezado e tratado como um ladrão ("assassino sim, ladrão jamais" grita o general), ele quer abrir mão de sua imortalidade, e para isso deixa de beber sangue humano, que é o que lhe dá vida.

Com diferentes propósitos em jogo, a esposa e os filhos se reúnem na velha mansão de Pinochet para discutirem sobre esse desejo de morrer do patriarca. Em uma conspiração para ficar com a herança, os filhos chamam a freira Carmencita (Paula Luchsinger), que finge ser uma contadora que estaria no local para analisar as contas da família, mas que tem outro plano por trás desta visita. Cheio de simbolismos, e com uma narração onipresente, o roteiro até começa interessante e promissor, mas vai aos poucos desgastando. Quando Larraín decide deixar um pouco de lado a figura central do filme para focar nestes personagens secundários, a sensação que fica é de que o filme se perde de vez. Até mesmo a inserção de outra figura historicamente repugnante como vampira acaba não sendo bem aproveitada, e a crítica no final acaba sendo rasa e sem propósito.


A fotografia em preto e branco (belíssima, por sinal) ajuda a criar o clima gótico que o diretor buscava, e em algumas cenas realmente funciona muito bem. Mais do que uma sátira ácida sobre um homem que, por si só, já poderia ser considerado um "monstro", o filme também tem uma aura de filme de terror clássico, e algumas cenas que lembram até mesmo filmes "trash" de horror. A grande sátira contida na história é óbvia e simples de entender (apesar do filme insistir em ser o mais didático possível a todo momento): Pinochet, mesmo após sua morte em 2006, ainda segue "vivo" por todas as atrocidades que cometeu, pois assim como vampiros que nunca morrem, os crimes de ditadores como ele, que por sinal jamais enfrentou a justiça por eles, vão viver para sempre na memória do povo.

domingo, 17 de setembro de 2023

Crítica: Retratos Fantasmas (2023)


A vida é feita de mudanças. Seja na nossa vida particular, seja no mundo de uma forma geral, o fato é que estamos sempre em constante mutação. O que hoje existe, amanhã talvez não exista mais, o que hoje é moda amanhã deixa de ser, e o que hoje importa amanhã é facilmente esquecido. Em um projeto íntimo e pessoal, o cineasta Kléber Mendonça Filho fala destas mudanças implacáveis do tempo traçando um paralelo entre a sua própria trajetória e o centro de sua amada Recife, tendo como pano de fundo os cinemas de rua que fizeram história no local e que hoje praticamente não existem mais, e mostrando sobretudo como essas transformações no cenário urbano ao longo dos anos refletiram na sua vida e na sua filmografia.


O documentário é dividido em três capítulos, sendo todos narrados de forma quase informal pelo próprio diretor. Eles servem para nos orientar, mas não seguem uma ordem cronológica propriamente dita, uma vez que o filme é composto por vários recortes soltos que montam uma grande colcha de retalhos. No primeiro destes capítulos, denominado "O Apartamento de Setúbal", Kléber nos conta um pouco de suas memórias no local em que viveu com a mãe e os irmãos durante muitos anos. O apartamento também foi se transformando com o tempo, com algumas mudanças mais sucintas e outras mais drásticas, e acabou sendo cenário dos dois primeiros filmes de Kléber, O Som ao Redor e Aquarius. O diretor também aproveita para exaltar a sua paixão pelo bairro onde cresceu, que também serviu como inspiração e cenário para estes mesmos filmes. Aliás, também é interessante acompanhar nesta parte algumas situações da vida real que Kleber levou para suas obras, e perceber o tanto que a vida no bairro influenciou elas.

Os "retratos fantasmas" do título nada mais são do que a captura que fazemos dos momentos, dos lugares, e das pessoas, que muitas vezes não existem mais, mas ainda permanecem conosco através de fotos, vídeos ou simplesmente incrustados na memória. O cinema tem muito isso, como o caso do cachorro Nico, vizinho de Kleber no apartamento, que apareceu em dois filmes seus (um propositalmente e outro sem querer), e que mesmo após a sua morte continuou tendo seu latido reverberando pelo bairro através do som das televisões. Kléber também cita um prédio que abrigava uma escola e que foi demolido para a construção de um shopping, e cujas únicas imagens internas do local são de um filme independente que foi rodado lá. Ou seja, a ficção acabou sendo o retrato de uma realidade, que neste caso não existe de nenhuma outra forma.


Após essa introdução bastante pessoal, somos levados ao segundo capítulo, onde o diretor nos apresenta o mundo dos cinemas de rua de Recife nos anos 1970, 1980 e 1990, e que hoje tem apenas um sobrevivente entre todos, o clássico cinema São Luiz. A grande maioria, assim como aconteceu em tantas outras cidades (inclusive na minha), deixaram de ser salas de exibição para se tornarem centros comerciais, isso quando não viraram apenas um dentre os muitos prédios abandonados que fazem parte da paisagem urbana. Com uma excelente coleção de imagens de arquivo, o diretor nos coloca literalmente dentro destes ambientes, tanto no antes como no agora, e faz uma analogia não somente sobre as mudanças estruturais dos locais citados, como também a mudança nos próprios costumes da população e na sua maneira de consumir cinema.

Esta segunda parte foi a que mais me tocou, pois mostra muito bem a decadência que tomou conta dos cinemas com o passar das décadas, onde salas que faziam isso com dedicação e amor deram lugar a salas que fazem isso de maneira mecânica e visando apenas o dinheiro. Não é uma visão anticapitalista, ou talvez em sua essência até seja, mas o fato é que é triste ver como o cinema foi transformado quase em um entretenimento de luxo (vide o preço dos ingressos nas grandes salas), quando nas décadas passadas chegou a ser o grande entretenimento das famílias de todas as classes. Toda a graça e elegância dos letreiros manuais, que continham frases de efeito (e algumas de duplo sentido) para fisgar o público, deram lugar aos televisores digitais com cartazes dos filmes e uma frieza quase burocrática no processo de assistir um filme. Sim pode ser uma visão nostálgica exagerada minha, mas é o que o filme me fez refletir, e muito.


Alguns trechos em específico também me deixaram bastante emocionado, como nos momentos em que o diretor mostra o dia a dia do seu Alexandre, um projetista que trabalhou por muitos anos no extinto cinema Trianon. As filmagens feitas dele por Kleber nos anos 1990 mostram um pouco de como era feito o processo com os rolos dos filmes e do funcionamento das salas, e termina com um emocionado Alexandre falando sobre a sua última exibição no dia em que o cinema fechou as portas. O último capítulo mostra principalmente o destino final destes cinemas, alguns deles virando lojas de eletrodomésticos, outros virando igrejas evangélicas, mas todos perdendo completamente aquela alma pulsante que possuíam anos atrás.

O filme termina com um ato ficcional bem simbólico, onde o diretor interage com um motorista de Uber (um dos tantos trabalhadores "invisíveis" que fazem a cidade funcionar) enquanto olha pela janela do carro as ruas tomadas por farmácias. Somos obrigados a nos acostumar com a paisagem urbana atual, mas jamais podemos esquecer de como tudo era tempos atrás. Assim como a nossa vida, onde também precisamos nos acostumar com o panorama atual, sem jamais esquecer o que nos levou até ali. Porque a vida muda, as cidades se transmutam, mas as memórias "fantasmas" são eternas.

domingo, 10 de setembro de 2023

How to Blow Up a Pipeline (2023)


Baseado no livro homônimo de Andreas Malm, How to Blow Up Pipeline (em uma tradução livre: Como Explodir um Gasoduto) é um thriller desafiador que acompanha um grupo de jovens que está cansado de lidar com as consequências de viver próximo de grandes refinarias de petróleo e decidem iniciar um movimento para explodir estas grandes instalações como forma de protesto. Apesar da "boa intenção" do grupo, eles sabem que a alcunha de terroristas irá recair sobre eles, mas estão dispostos a enfrentar isso para dar visibilidade à causa que defendem. No entanto, deixam bem claro que a intenção é apenas destruir o patrimônio do governo, cuidando para que o ato não traga nenhum impacto destrutivo na natureza ou na vida das pessoas que vivem no local escolhido para ser o marco inicial, que fica no leste do Texas.

 

Cada um deles tem um motivo específico, como Theo (Sasha Lane), que adquiriu uma espécie de leucemia por viver perto de uma refinaria. Sua melhor amiga, Xochitl (Ariela Barer) também perdeu a mãe por uma doença oriunda desse contato com produtos químicos, e é uma das mais engajadas na causa. Já Dwayne (Jake Weary), por sua vez, enfrenta um processo contra o governo, que tenta a todo custo forçá-lo a entregar a casa que a família viveu por mais de 100 anos e que está em uma área de exploração petrolífera. Enquanto se nega, tem que aceitar viver quase do lado de um oleoduto, se expondo e expondo a esposa e o filho recém nascido. Mais três personagens também fazem parte do grupo: Michael (Forrest Goodluck), um especialista em bombas autodidata que faz vídeos explicando como montá-las, e o casal Logan (Lukas Gage) e Rowan (Kristine Froseth). Rowan, inclusive, é responsável por um plot twist interessante do meio para o final.

Gostei da forma como o filme vai mostrando os motivos de cada um, com inserções em forma de mini capítulos no meio da ação principal. A montagem é muito eficaz e consegue deixar o filme bem dinâmico e ágil. O que vemos em 1h40 de filme é toda a preparação do ato, desde a compra dos materiais para fazer as bombas até a colocação delas em lugares estratégicos. Não espere, no entanto, ver as consequências da ação do grupo, a não ser por breves imagens que aparecem nos créditos finais.


É um filme de manifesto e de protesto, e vai do espectador comprar a causa ou não, o que obviamente muda toda a forma de você enxergar a história. O próprio livro em que se baseia já trazia controvérsias e polêmicas por trazer a ideia de que os protestos ecológicos precisam deixar de ser "pacíficos" para ser "atos de sabotagem", trazendo grandes consequências às grandes indústrias. Porém, as tais consequências não ficam bem esclarecidas, o que é suficiente para gerar um grande debate acerca do tema e sobre quem, de fato, iria sofre-las na pele. Independente de qualquer coisa, o fato é que How to Blow Up a Pipeline é um filme pulsante e sobretudo enérgico.

sábado, 2 de setembro de 2023

Crítica: Past Lives (2023)


Particularmente gosto muito de filmes que falam sobre os relacionamentos pessoais na atualidade, principalmente aqueles que junto disto trazem uma abordagem sobre as expectativas frustradas da vida adulta, a melancolia da rotina, a saudade do passado, e todos os demais sentimentos que surgem diante da passagem impiedosa do tempo. Past Lives, filme de estreia da diretora Celine Song, tem um pouco de tudo isso, e é uma das obras mais sensíveis e poéticas que assisti este ano.


A cena inicial do longa já mostra todo o brilhantismo e a sutileza da direção, onde uma pessoa aleatória em um bar tenta adivinhar o grau de relação que existe entre três personagens que estão juntos em outra mesa. Essa inserção é eficiente para também atiçar a curiosidade no espectador em querer saber quem são aquelas pessoas e o que levou elas até ali, já que o filme imediatamente volta vinte e quatro anos no tempo. É quando conhecemos Nora e Hae Sung, dois "namoradinhos" de doze anos de idade que estão naquele período inocente de uma relação, mas suficiente para criar uma conexão para a vida toda. Porém, eles são obrigados a se separar após a família de Nora migrar para o Canadá, enquanto Hae Sung permanece vivendo em Seul.

Doze anos se passam e eles se reencontram de maneira virtual após Hae Sung (Teo Yoo) procurar Nora (Greta Lee). Entre muitas conversas descontraídas por Skype, os dois vão descobrindo aos poucos o que aconteceu com cada um no tempo em que ficaram ausentes na vida um do outro. Enquanto Hae Sung ainda vive na Coreia do Sul, Nora agora está casada com Arthur (John Magaro), e mora junto com o marido em Nova Iorque. A distância física não impede que eles fortaleçam os laços criados na infância e planejem um futuro reencontro de forma presencial. Apesar de haver uma química latente entre os dois, até mesmo pela questão cultural, é possível perceber que não há nenhuma intenção neste encontro que vá além de um singelo papo entre dois velhos amigos. Ou talvez há, mas nem eles mesmos sabem direito o que sentem em relação a isso, pois a vida andou, os anos passaram, e tudo mudou. Será mesmo?

Gosto como o filme trabalha essa confusão de sentimentos que as relações trazem para as nossas vidas. O próprio marido de Nora brinca com isso, quando insinua que, caso estivessem em um filme, ele seria visto como o vilão que está separando duas pessoas que nasceram para ficar juntas. E é justamente nessa metalinguagem que Past Lives acerta em cheio. Aliás, o nome do filme é baseado na noção de In-Yun, um conceito coreano que argumenta que os nossos ‘eus’ atuais são apenas uma versão mais recente de vidas anteriores. Em outras palavras, diz que todos aqueles que conhecemos já fizeram parte de nossas vidas em outras vidas, mas não tem nada religioso ou dogmático nisso, e o conceito é explorado e debatido pelos próprios personagens de maneira filosófica.


Por tratar três décadas na vida dos personagens, senti que há alguns problemas na condução cronológica, como na própria relação entre Nora e Arthur, que não ganha muito desenvolvimento em um primeiro momento. Não que isso atrapalhe o resultado final, mas é algo que definitivamente existe. O final, por sua vez, é um dos mais bonitos do ano, e emociona justamente pela sensibilidade com que finaliza todo o arco da maneira mais humana possível. Uma gigantesca estreia de Celine Song, e um filme que já nasce um jovem clássico.