quinta-feira, 30 de novembro de 2023

Crítica: The Holdovers (2023)


Distante do cinema desde 2017, quando lançou Pequena Grande Vida, Alexander Payne (de Nebraska e Sideways) está de volta com The Holdovers, que segue o mesmo estilo de seus outros filmes e apresenta, com um roteiro simples mas muito bem elaborado, personagens apaixonantes que se relacionam de maneira extremamente orgânica.


O filme se passa no período do natal de 1970, onde conhecemos Paul Hunman (Paul Giamatti), um professor que dá aulas sobre civilizações antigas na conceituada escola preparatória Barton Academy. Ele foi o "premiado" entre todos os professores para ficar nas dependências da escola durante as férias e cuidar dos alunos que vão ter que ficar no local por não terem para onde ir. O que para a grande maioria seria um martírio, para ele não é nada demais, afinal de contas ele é um homem solitário e já possui o costume de passar o período sozinho de qualquer maneira. Com uma visão extremamente amarga da vida e uma rigidez exagerada em seus métodos de educação, Hunman é odiado por praticamente todos os alunos e até mesmo por boa parte dos seus colegas, mas parece não se preocupar com isso. Com ele na escola ficam apenas o jovem Angus Tully (Dominic Sessa) e a cozinheira chefe do local, Mary (Da'vine Joy Randolph), e é sobre estes três personagens que o roteiro se solidifica, abordando a personalidade de cada um com muita delicadeza, desde suas alegrias até os seus traumas.

Todos os três protagonistas são apaixonantes, mas eu destaco Mary. Mulher negra, ela aceitou o cargo de cozinheira na escola há alguns anos atrás para dar a possibilidade do filho poder estudar no local, que majoritariamente é frequentado por pessoas brancas e ricas. No entanto, o filho acabou sendo obrigado a se alistar no exército (o único da escola a ter que passar por isso, ora vejam só) e ir para o Vietnã, onde perdeu a vida. O natal para ela tem um significado especial por conta dessa perda, que ainda é bem recente. Já Angus é um menino inteligentíssimo mas que possui uma agressividade pulsante, que já o fez ser expulso de três escolas no passado. Ele tenta andar na linha, já que a mãe prometeu colocá-lo em uma instituição militar caso seja mais uma vez expulso, mas sua impulsividade às vezes fala mais alto. Angus estava esperando viajar com a mãe nas férias, mas é surpreendido quando ela o pede para ficar na escola, pois quer aproveitar as férias para curtir uma "lua de mel" com o novo namorado. Dos três, ele talvez seja o mais contrariado em ficar no local, mas o fato é que, querendo ou não, estes personagens são obrigados a conviver por alguns dias, dividindo as tarefas diárias e principalmente a mesa nas refeições.


O roteiro, escrito por David Hemingson é basicamente sobre as reviravoltas sucintas que acontecem em nossas vidas, quando por exemplo um estranho nos leva para uma nova direção, que sequer havíamos considerado, ou quando pequenas conversas aleatórias nos fazem refletir sobre o que somos e o que queremos ser. Apesar de ter alguns clichês, isso não incomoda em nenhum momento, pois a direção de Payne consegue fugir totalmente da previsibilidade. The Holdovers é uma grande surpresa nessa reta final de ano, e um daqueles filmes que deixam o coração "quentinho" após os créditos finais.


segunda-feira, 27 de novembro de 2023

Crítica: Napoleão (2023)


Quando se fala em filme épico na atualidade, não tem outro nome que me venha à cabeça que não seja o de Ridley Scott. O cineasta, que nunca abriu mão da grandiosidade estética em seus trabalhos, é responsável por alguns dos filmes mais expressivos do gênero, como Gladiador (2000), Cruzada (2005) e mais recentemente O Último Duelo (2021), que eu inclusive acho extremamente subestimado, pois ao contrário da opinião geral, o considero um dos melhores lançados naquele ano. Dito isto, quando foi anunciado que Scott estava por trás de uma produção sobre Napoleão Bonaparte, a expectativa não poderia ter sido maior, sobretudo quando foi confirmada a presença de um dos atores mais completos da nossa geração na pele do imperador: Joaquin Phoenix. E diferentemente da esmagadora maioria, posso dizer que gostei do que vi, pois apesar de ter pontos negativos bem evidentes, a experiência no cinema foi bem satisfatória.


O filme inicia logo após a Revolução Francesa eclodir e levar à guilhotina milhares de membros e apoiadores da Monarquia, no chamado "Período do Terror". Nesta época, Napoleão era apenas capitão de artilharia do exército francês, mas ganhou notoriedade na batalha que ficou conhecida como O Cerco de Toulon, em 1793, onde foi o autor do plano que heroicamente levou a França à vitória contra os britânicos. O feito logo o promoveu à General, dando início a caminhada militar e política de Napoleão que o levaria, posteriormente, ao cargo de Imperador da França.

As últimas palavras de Napoleão antes da morte em 1821 foram "França, exército e Josephine", naturalmente suas principais paixões na vida. E são justamente estes três elementos que o roteiro, escrito por David Scarpa, utiliza para forjar a personalidade dele ao longo de duas horas e meia. Há muita discussão rolando acerca da veracidade dos fatos mostrados no roteiro e da forma como o diretor apresenta Napoleão à sua própria maneira, e isso inclusive vem gerando inúmeras críticas por parte de historiadores. A verdade é que às vezes o filme parece realmente desconexo da realidade e peca em não se aprofundar tanto em questões importantes que justificariam o porquê de Napoleão ter se tornado um homem tão idolatrado. E é inegável que isso acaba fazendo falta para uma melhor contextualização do personagem dentro da própria história.


Considerado um homem cheio de controvérsias, Napoleão era reconhecidamente um homem inteligentíssimo e um estrategista de primeira, mas essa sua faceta não é tão explorada no filme, que prefere apostar mais na parte sentimental de sua relação com Josephine (Vanessa Kirby). Aliás, todo o filme é conectado pelas famosas cartas que Napoleão escreveu para a esposa enquanto estava nas batalhas e depois no exílio, e com exceção das cenas de combates, os momentos com a esposa são os que mais tomam tempo de tela. Era uma relação conturbada, cheia de mentiras e traições, e é interessante analisar como as palavras das cartas parecem se contradizer com o que é visto em cena, pois em nenhum momento parece haver amor entre os dois. O que vemos acima de tudo é uma relação fria, talvez apoiada muito mais no sexo, na posse e no desejo de Napoleão em ter um herdeiro, do que pela paixão propriamente dita.

Há que se dizer também que algumas cenas parecem descoladas, e isso talvez se justifique pelo fato do diretor ter cortado boa parte do filme para poder distribuí-lo nos cinemas com uma duração comercialmente aceitável, enquanto promete lançar uma versão completa de mais de quatro horas em breve diretamente no streaming. Ainda assim, acaba sendo bem perceptível que a montagem deixa muita coisa solta e sem explicação, como a própria relação de Napoleão com os personagens secundários da trama, que não têm quase nenhum desenvolvimento.


Apesar dos defeitos serem bem explícitos, uma coisa que não se pode negar é que visualmente o filme é impressionante. Toda a reconstituição da época, tanto os figurinos como os cenários, são extremamente bem construídos, e as cenas das batalhas apresentam uma brutalidade poucas vezes vista em filmes de guerra, sendo um verdadeiro deleite na tela grande do cinema. E justamente por isso, e nadando totalmente contra a maré, afirmo que Napoleão cumpriu com as expectativas que eu havia colocado sobre ele.

segunda-feira, 13 de novembro de 2023

Crítica: Tia Virgínia (2023)


É comum ouvirmos a expressão "vai ficar para titia", de forma pejorativa, quando alguma mulher não tem filhos e nem deseja tê-los, como se gerar uma criança fosse praticamente uma obrigação moral. Em Tia Virgínia, a personagem que dá nome ao título é uma destas mulheres que decidiu se livrar dessas amarras da sociedade, e aos 70 anos de idade nunca sequer casou. Liberdade, no entanto, não é um palavra que define a sua vida, já que Virgínia (Vera Holtz) acabou sendo praticamente obrigada pelas irmãs a cuidar da mãe doente (Vera Valdez) até o final dos seus dias, vivendo enclausurada na antiga casa da família onde acompanha tediosamente a passagem do tempo.


Premiado no Festival de Gramado deste ano, o roteiro de Fabio Meira se passa inteiramente na véspera de natal, onde Virgínia recebe a visita das duas irmãs e de seus sobrinhos já crescidos para se juntarem na ceia. Apesar de não se verem há um bom tempo, o natal para as irmãs tem um clima muito diferente desta vez, já que é o primeiro desde que o pai delas faleceu, e as lembranças dos natais passados acabam sendo inevitáveis, assim como todas as mágoas.

A primeira a chegar na casa é Valquíria (Louise Cardoso) com seu filho Bernardo (Iuri Saraiva). Ela é a mais eloquente das três irmãs, e nitidamente a que mais critica Virgínia em praticamente tudo que ela faz. Em seguida chega Vanda (Arlete Salles), junto com o seu companheiro (Antônio Pitanga) e sua filha Ludi (Daniela Fontan). A dinâmica familiar vai se intensificando à medida que os personagens vão conversando sobre os rumos que cada um tomou na vida e relembrando memórias da família. Ao mesmo tempo, por se tratar de uma relação cujas feridas estão bem expostas, qualquer coisa também vira motivo de briga, como a escolha do prato principal, a roupa a ser usada no jantar e até mesmo o uso de frutas cristalizadas no arroz (com essa com certeza vocês irão se identificar).

O filme conquista pela fácil identificação, afinal de contas, todos nós temos família, algumas maiores, outras nem tanto, e todos sabemos o quão complexas elas podem ser em suas particularidades. E principalmente, o quanto essas complexidades afloram justamente em dias de reunião, como numa noite de natal. O trabalho de direção de arte é elogiável, criando um cenário que remete profundamente às "casas de vó" pelo Brasil à fora, com uma gama de detalhes impressionante, e para muitos, nostálgica.

Se na parte técnica o filme é impecável, o que dizer então das atuações. Todo o elenco se destaca, mas Vera Holtz é um fenômeno em cena! Com uma personagem cheia de camadas, que vai guardando tudo dentro de si até finalmente (e lindamente) estourar, Vera brilha, e o prêmio de melhor atriz em Gramado foi mais do que merecido. Arlete Salles também se destaca ao apresentar alguns dos momentos mais cômicos da trama, e Louise Cardoso está firme na pele de uma personagem extremamente humana cujo principal defeito é sempre achar que está com a razão e sabe de tudo.


Por fim, Tia Virgínia acaba sendo o verdadeiro "filme de natal", data onde famílias se reúnem para a ceia tentando forçar uma união que, muitas vezes, não passa de puro teatro e fingimento diante de tantas feridas abertas. E a protagonista parece saber disso, tanto que em uma das cenas mais bonitas do filme, se permite encenar junto de todos uma dança, como se quisesse abrilhantar ainda mais o "espetáculo". Um filme recheado de momentos cômicos, mas com uma carga dramática acentuada e conduzida na medida certa

sábado, 11 de novembro de 2023

Crítica: O Assassino (2023)


Metódico, frio e extremamente calculista. Assim dá para definir o personagem de Michael Fassbender em sua rotina de trabalho. Porém, não se trata de um emprego como qualquer outro, já que ele ganha a vida como assassino de aluguel. Baseado em uma HQ francesa de mesmo nome, O Assassino (The Killer) é o novo filme do veterano David Fincher, em mais uma parceria sua com a Netflix, e tem dividido bastante as opiniões desde sua estreia no serviço de streaming.


O protagonista não tem nome mas ao mesmo tempo tem vários, já que usa dezenas de identidades falsas ao longo da trama para viajar de um lugar a outro sem deixar rastros. No começo do filme ele está em Paris, e acompanhamos todo o processo dele para se posicionar estrategicamente em frente ao apartamento onde sua próxima vítima estará dentro de poucas horas. Enquanto prepara tudo, o personagem fala em uma narração off sobre os seus métodos de trabalho, deixando bem claro a forma perfeccionista com que age. Ele também tem quatro regrinhas básicas que leva como um mantra: nunca improvisar, nunca confiar em ninguém, não ter empatia nenhuma e não fazer absolutamente nada além do que foi pago para fazer. 

Na mesma narração ele também reflete sobre várias questões da vida, o que me fez lembrar um pouco outro filme do diretor, Clube da Luta, e até mesmo o clássico Táxi Driver, de Martin Scorsese, onde o personagem de Robert De Niro também divaga sobre nuances da sociedade da época. Isso serve para apresentar ao espectador um panorama da personalidade e principalmente a visão de mundo do protagonista. Outro filme ao qual este início remete, mas de forma ainda mais explícita, é Janela Indiscreta, do Alfred Hitchcock, já que enquanto espera entediado a aparição do seu alvo, o assassino fica acompanhando as janelas vizinhas como uma espécie de voyeur.


Após cometer um erro incomum, ele foge apressadamente do local, limpa todos os rastros e volta para casa na República Dominicana. Porém, chegando no local, descobre que sua namorada Magdala (Sophie Charlotte) foi violentamente agredida enquanto ele estava fora, e agora ele está disposto a caçar cada um dos responsáveis. E nessa busca, culpados e não culpados acabam pagando o preço. O mais interessante nesta virada de chave do filme é ver que nessa sua jornada de vingança, o assassino passará por muitos testes de empatia, onde a cada cena nós iremos nos perguntar "será que ele vai fazer isso mesmo?", e geralmente sim, ele faz. Chega a ser até engraçado como ele não abandona seu método, seja contra quem for. 

O que me incomodou um pouco no roteiro foi a maneira facilitada com que o personagem consegue ir de um lugar a outro (em poucos dias ele passa por Paris, Santo Domingo, New Orleans, Los Angeles e New York) e adentrar prédios sem nenhum esforço, bem como a facilidade que ele tem de conseguir identidades e placas de carro falsas. Aos poucos, isso começou a ficar cada vez menos crível para mim, o que me afastou um pouco da história. O desenvolvimento dos personagens secundários da trama também é quase inexistente, sobretudo com relação a namorada do assassino (interpretada pela brasileira Sophie Charlotte), e mesmo que eu tenha entendido desde o início que a intenção do diretor era justamente ter um filme intimista focado em apenas um personagem, não posso negar que senti falta dos demais.


Apesar de não considerá-lo um dos melhores trabalhos do Fincher, O Assassino me prendeu enquanto o assistia, e está longe de ser um filme descartável, principalmente pela ótima atuação do Fassbender. Além dele e da Sophie Charlotte (que aparece pouco mas tem um papel crucial na história), o elenco ainda tem Tilda Swinton na pele de uma "colega" de profissão do protagonista, e cuja cena juntos é muito interessante. Por fim, o ritmo pode até ser diferente do que estamos acostumados a ver, mas a assinatura do diretor está presente em cada frame, e isso é inegável.

terça-feira, 7 de novembro de 2023

Crítica: A Menina que Matou os Pais: A Confissão (2023)


Um é bom, dois é aceitável, e três é desnecessário. O ditado não é bem assim, mas alterei para falar especificamente da trilogia A Menina que Matou os Pais, que desde 2020 tenta trazer a história por trás de um dos assassinatos que mais marcaram o Brasil no começo dos anos 2000: o de Manfred von Richtofen e sua esposa Marísia, mortos brutalmente em uma ação orquestrada pela própria filha, Suzane von Richtofen.


Os dois primeiros filmes, lançados simultaneamente há três anos atrás, narravam o crime de acordo com cada versão dos envolvidos. Em A Menina que Matou os Pais, temos a história contada sob a ótica de Daniel Cravinhos, o namorado de Suzane na época e autor do crime, e apresenta uma narrativa em que a menina é vista como uma verdadeira psicopata, que armou tudo e fez a cabeça dele para cometer o crime junto com o irmão Cristian. Já em O Menino que Matou Meus Pais, a narrativa é sob a visão de Suzane, apresentando uma menina ingênua que caiu em uma relação abusiva e foi psicologicamente influenciada a agir contra os próprios pais. 

O que sustentava o interesse nos dois primeiros filmes era justamente essa disputa de narrativas entre o depoimento de um e de outro, e a construção dos personagens de acordo com essa ambiguidade. Agora com A Menina que Matou os Pais: A Confissão, a intenção do diretor Maurício Eça era mostrar os fatos verdadeiros do caso, de acordo com as investigações e o próprio julgamento, mas fica o questionamento: era mesmo necessário remexer novamente no assunto?

 

O filme tem inúmeros pontos negativos, a começar pelas atuações forçadas que não passam grau nenhum de veracidade, principalmente a de Carla Diaz, que exagera nos trejeitos para tentar mostrar o desequilíbrio mental da sua personagem. Algo que já havia sido feito em um dos filmes anteriores, mas aqui fica ainda mais caricato. A cena da confissão, que está no próprio nome do filme, também é muito superficial e mal conduzida, o que tira completamente o propósito da existência deste longa. Isso sem contar na cena em que os pais dos irmãos cravinhos descobrem que os filhos estavam envolvidos no crime, que é de uma mediocridade inexplicável. O único adendo que faço no elenco é em relação a Bárbara Colen, que faz a delegada do caso, e que mesmo em um roteiro frágil consegue se destacar. Em resumo, o terceiro e último filme da trilogia acaba sendo apenas uma enrolação a mais de uma história que já deu o que tinha que dar. É insatisfatório, mal feito, e, talvez até mesmo desrespeitoso com a memória das vítimas e de seus familiares.

segunda-feira, 6 de novembro de 2023

Crítica: Mussum: O Filmis (2023)


Comediante, sambista e orgulho da dona Malvina. Antônio Carlos Bernardes Gomes, conhecido popularmente como Mussum, foi um dos maiores artistas que este país já teve o prazer de acompanhar, e além do sucesso na música com o conjunto Os Originais do Samba, também ficou marcado por participar de grandes programas da televisão brasileira como A Escolinha do Professor Raimundo, com Chico Anísio, e Os Trapalhões, onde junto com Didi, Dedé e Zacarias fez a alegria da criançada por cerca de duas décadas. Dirigido por Sílvio Guindane, Mussum: O Filmis conta a trajetória do artista desde pequeno, quando vivia com sua mãe em uma comunidade do Rio de Janeiro.


Apaixonado desde cedo por samba, Carlinhos (como carinhosamente era chamado) fazia de tudo para assistir apresentações ao vivo do ritmo, coisa que deixava sua mãe furiosa, já que para ela samba era "coisa de cachaceiro" e ela não queria ver seu filho metido com isso. Empregada doméstica, Malvina se virava como podia para sustentar a casa, e se viu obrigada a colocar o menino em um colégio interno ao não ter mais com quem deixá-lo durante sua jornada de trabalho. Seu sonho era que ele focasse nos estudos e, futuramente, pudesse seguir uma carreira militar, e esse sonho passa muito pelo fato de que a própria Malvina jamais teve chances na vida, sendo inclusive analfabeta, e a última coisa que ela desejava na vida era que seu filho não seguisse os seus passos.

O tempo passa, e Antônio tenta mesclar seu tempo na escola militar com o grupo de samba que formou com os amigos, e que vai conquistando cada vez mais espaços para tocar. Até que em uma das apresentações do grupo para a televisão, ele é chamado para substituir um comediante, e a partir de então sua história muda para sempre. A montagem é muito ágil ao misturar esse passado de Antônio antes da fama com momentos em que ele já está filmando suas esquetes para a televisão, mostrando todos os fatos que moldaram a sua personalidade.

De todos os elementos que construíram a vida e a carreira de Mussum, a sua relação com a mãe é certamente a mais importante, e as melhores cenas do filme envolvem estes dois personagens. Para isso, era importante haver química entre todos os atores envolvidos, e aqui é o que não falta, tanto na fase da infância, com Cacau Protásio e Thawan Lucas interpretando mãe e filho, como na fase já adulta, com Neusa Borges e Airton Graça. Os dois últimos, inclusive, são responsáveis pela cena mais bonita de todo o longa, um recorte emocionante que mostra como funcionava essa dinâmica entre os dois. Há ainda uma participação curta mas muito marcante do comediante Yuri Marçal no papel de Antônio na juventude, época em que o personagem vivia o dilema entre seguir o sonho da mãe ou seguir o próprio sonho. No ato final, acompanhamos a entrada de Mussum no grupo Os Trapalhões, em parceria com Renato Aragão (Gero Camilo), Dedé Santana (Felipe Rocha) e Zacarias (Gustavo Nader), e toda a controversa que culminou no fim do programa, enquanto Mussum precisava lidar também com a doença terminal da mãe.


Ao longo de suas duas horas, o filme ainda conta com a presença de personagens importantes da história do samba e do próprio Brasil, como Cartola, Elza Soares, Jorge Ben, Alcione, Grande Otelo e até Mané Garrincha, e mostra como cada um fez parte, à sua maneira, da vida do artista. Com a dosagem certa entre humor e drama, atuações muito competentes e uma trilha sonora estupenda, Mussum: O Filmis foi o grande destaque no último Festival de Gramado, e eu posso garantir a vocês que vale muito a pena assisti-lo no "cinemis".

quinta-feira, 2 de novembro de 2023

Crítica: Os Delinquentes (2023)


Escolhido para representar a Argentina no Oscar de 2024, Os Delinquentes (Los Delincuentes) desconstrói a narrativa clássica de filmes de roubo a banco, apresentando uma história bastante engenhosa sobre um homem de meia idade que está cansado da monotonia da vida neste mundo metódico e capitalista e decide tomar uma atitude drástica para fugir disso: roubar o banco onde trabalha.


Morán (Daniel Elias) trabalha como bancário no centro de Buenos Aires. Há anos ele segue a mesma rotina diariamente, um cotidiano quase claustrofóbico e que todos nós também estamos inseridos, cada qual à sua maneira. Afinal, a vida da gente gira em torno do trabalho, e em um momento reflexivo, o personagem chega a dissertar sobre isso, lembrando que a primeira pergunta quando conhecemos alguém novo é justamente com o que a pessoa trabalha, como se isso fosse sempre a coisa mais importante a saber sobre o outro. Morán trabalha na tesouraria e é o responsável por guardar o dinheiro nos cofres do banco, sempre acompanhado de um colega. Porém, um dia ele acaba fazendo a tarefa sozinho, e é quando aproveita para guardar uma quantia em sua mochila e levar embora despercebido.

Mais do que simplesmente roubar um dinheiro aleatório que estava no cofre, Morán tinha todo um propósito por trás: a quantia era exatamente o que ele iria ganhar se continuasse trabalhando no local até se aposentar. Dito isso, sua ideia é simples: esconder o dinheiro enquanto cumpre a pena pelo crime, que ele calcula que seja cerca de três anos e meio, e depois viver o resto da vida sem se preocupar com salário. Ele precisa de um cúmplice que guarde o dinheiro em segurança, e para isso ele decide chamar o amigo e colega de banco Román (Esteban Bigliardi), que reluta no início mas aos poucos passa a ver vantagem no negócio.


Temendo que o dinheiro não fique seguro na cidade, Morán sugere ao amigo que ele o enterre em uma região bem remota da Argentina, em uma montanha nos arredores de Córdoba. Quando está no local, Román conhece um grupo de jovens que estava fazendo um piquenique em uma trilha da montanha, e nesse ínterim acaba se envolvendo com uma das mulheres, Norma (Margarita Molfino), que possui uma pousada na região junto com a irmã Morna (Cecilia Rainero) e o cunhado Ramón (Javier Zoro). Se você reparar, todos os nomes dos personagens formam espécies de anagramas, e isso não é por acaso, já que se cria uma teia de conexões (e coincidências) entre todos eles, que acaba gerando uma narrativa interessante de acompanhar até certo momento. 

Digo isso pois o filme é dividido em duas partes, sendo a primeira muito intensa e atrativa, enquanto a segunda é um verdadeiro sonífero. A primeira acompanha lentamente a rotina no banco, a rotina da cidade de Buenos Aires, e principalmente a rotina do protagonista Morán. É tudo muito preciso e detalhado, mas jamais entediante. Ainda nesta parte temos uma alternância de protagonismo, onde também passamos a acompanhar a vida de Román, e posteriormente sua ida até o local do enterro do dinheiro. Já na segunda parte, o filme volta um pouco no tempo e mostra o momento em que Morán esteve neste mesmo local antes de ser preso, acompanhando morosamente o dia a dia sossegado do lugar, onde os personagens vivem em total conexão com a natureza. E é justamente aqui que o filme se perde. 

É possível listar inúmeras cenas que poderiam facilmente terem sido encurtadas, deixando o ritmo mais ágil. Não costumo reclamar da duração de filmes, muito pelo contrário, pois escrevo isso dias após ficar 3h40 imerso no novo filme de Martin Scorsese. O fato é que aqui o tempo é muito mal empregado, com cenas demasiadamente extensas e tediosas, onde as horas pareciam não passar. Também não tenho problema com finais subjetivos, desde que o roteiro saiba trabalhar isso, mas neste caso o filme conclui de maneira totalmente abrupta e insatisfatória todo o arco que o próprio roteiro construiu.


Apesar de tudo, não dá para dizer que é um filme inteiramente ruim, com exceção de sua última hora. Ao longo da trama temos boas discussões sobre a sociedade atual, sobre o uso que fazemos do nosso tempo, e sobretudo a nossa relação com o mercado de trabalho. Alguns ótimos diálogos reforçam a falsa ideia de liberdade que temos, onde só enxergamos isso quando nos relacionamos com pessoas que estão em outra frequência.