sábado, 24 de junho de 2023

Crítica: A Thousand and One (2023)


Vencedor do último Festival de Sundance, A Thousand and One se passa na região do Harlem, no ano de 1994, e traça um panorama da vida dos moradores do subúrbio nova iorquino numa época em que ocorriam mudanças significativas na estrutura social da metrópole.


O filme acompanha Inez (Teyana Taylor), uma mulher que acaba de sair da prisão após um ano, e ao mesmo tempo em que tenta voltar a trabalhar como cabeleireira, também quer resgatar seu filho de seis anos, Terry (Aaron Kingsley Adetola), que está vivendo com pais adotivos. No desespero de tê-lo novamente por perto, ela decide tomar a atitude ousada de "sequestrá-lo", mesmo que o garoto demonstre certa resistência em um primeiro momento, pois não acredita mais que a mãe possa ser capaz de criá-lo sem "sumir" novamente. A partir de então, acompanhamos cerca de duas décadas da vida dos dois, que passam a viver de forma clandestina com documentos falsos em outra região da cidade. Na segunda parte do filme aparece também a figura do pai de Terry, Lucky (William Catlet), que apesar de aparentar ser um homem durão e de pouco afeto, acaba tendo um papel importante no amadurecimento do garoto.

Os problemas começam quando Terry, agora com dezessete anos, quer naturalmente conquistar sua própria independência e entrar em uma universidade pensando num futuro melhor, mas enfrenta dificuldades burocráticas por ter crescido com um nome que na verdade não é o seu. Diante da situação, alguns segredos do passado dele e da mãe também vêm à tona, numa espiral de sentimentos que fortalecem ainda mais a relação dos dois. O ponto alto do filme é a atuação de Teyana Taylor, num papel difícil e arrebatador. Sua personalidade enérgica contrasta com a doçura que tem com o filho, e é o retrato fidedigno de uma mulher forte, combativa, que não se deixa abalar pelos obstáculos imensos que a vida coloca pela frente.

A contextualização da época é importantíssima para a trama, já que Nova Iorque vivia no final dos anos 1990 um período de grandes transformações. O prefeito da época, Rudy Giuliani, ficou conhecido pela dura repressão policial, que dava plenos direitos às autoridades para agirem de forma arbitrária, invadindo casas e abordando pessoas na rua por qualquer motivo e sem precisar de ordens de cima. Ele também lançou o polêmico programa de "limpeza cívica", onde se preocupava em punir até mesmo as pessoas que não atravessavam a faixa de pedestre corretamente. Neste cenário, havia também uma forte tentativa de gentrificação e uma espécie de "limpeza étnica" dos principais bairros da cidade, e achei curioso a forma como o diretor traz isso para a tela, através de discursos na televisão e no rádio. É um "inimigo" invisível, mas que está ali o tempo todo.


O longa metragem de estreia de AV Rockwell poderia ter ido para o lado mais fácil, da dramatização exacerbada e moralista, apresentando um arco de redenção clássico da mãe que ama o filho e faz tudo por ele, mas consegue fugir disso com maestria, sendo na verdade um retrato de pessoas que o sistema adora ignorar, menos quando é para reprimí-los. Um filme bastante sólido e com uma mensagem muito potente por trás.

terça-feira, 20 de junho de 2023

Crítica: A Execução (2022)


Dirigido pelo estreante Lado Kvataniya, A Execução (Kozn) se baseia fortemente na história real de caça ao serial killer Andrei Chikalito, conhecido mundialmente como o "Açougueiro de Rostov", que por muitos anos foi o assassino mais procurado da União Soviética.


Após anos de investigação, um caso de assassinatos em série finalmente parece ter chegado ao fim, com a prisão de dois irmãos gêmeos acusados pela morte de várias mulheres ao longo dos anos 1980. Quem leva todo o mérito é o investigador Issa Davydov (Niko Tavadze), que acaba ganhando até mesmo uma promoção no cargo pela façanha. Porém, quando uma vítima sobrevivente ressurge, o caso é reaberto, e fica comprovado que os dois acusados foram presos injustamente e que o assassino de verdade está à solta. De volta ao caso, Issa precisa encontrar provas para colocar atrás das grades o novo e principal suspeito (Daniil Spivakovskiy), principalmente para limpar a sua própria imagem, que ficou enfraquecida após o engano anterior.

O filme possui reviravoltas realmente impressionantes, como eu não via há muitos anos em um filme. Cheio de idas e vindas no tempo, todas muito bem contextualizadas, o roteiro vai incentivando o espectador a montar um verdadeiro quebra-cabeças, não somente a respeito da culpabilidade do assassino, como também sobre os segredos que o próprio investigador esconde do seu passado, até chegar a um final extremamente imprevisível e surpreendente.


Como disse no início, o filme é fortemente baseado na história de Chikalito, mas não se trata de uma biografia propriamente dita. Até porque neste caso, o assassino do filme (que tem inclusive outro nome) até pega "leve" com as vítimas se comparado com os relatos assustadores do assassino da vida real. Por fim, considero A Execução um dos melhores suspenses que vi nos últimos tempos, e é triste pensar que não ganhará o reconhecimento merecido por conta, principalmente, da crise na Rússia e dos boicotes ao país. Mas se tiver a oportunidade, assista!

sábado, 17 de junho de 2023

Crítica: A Extorsão (2023)


Sou um grande entusiasta do cinema argentino e gosto muito das comédias feitas por lá, que costumam sempre criticar os modos de vida da sociedade com muita acidez e sarcasmo. Dito isso, estava bastante curioso para assistir A Extorsão (La Extorsion), filme do argentino Martino Zaidelis que estreou no catálogo da HBO Max há poucas semanas, e que apesar de não ser anunciado como um filme de comédia propriamente dito, tem um tom leve e muito bem humorado.


O roteiro acompanha Alejandro (Guillermo Francella), um experiente piloto de aeronaves que ama o que faz há mais de trinta anos e é super respeitado por todos. De um dia para o outro ele acaba sendo extorquido por uma quadrilha para levar malas com um conteúdo misterioso para a Espanha, em troca de não ter um segredo seu espalhado por aí. Sem saber lidar direito com a situação, Alejandro vai tomando muitas decisões erradas, que vão colocando o personagem em uma teia de onde fica cada vez mais impossível sair.

O ponto alto do filme certamente é a atuação de Francella, um dos melhores atores argentinos da atualidade, que prova mais uma vez que consegue se sair bem tanto no drama como na comédia. O resto do elenco, no entanto, me pareceu bem caricato, sobretudo o personagem de Saavedra, interpretado por Pablo Rago, que é o homem estranho que extorque o protagonista. O roteiro também é bastante exagerado e com situações bem inverossímeis, e por mais que seja um nítido filme de puro entretenimento, e nada mais que isso, algumas cenas poderiam sim ter sido melhor trabalhadas.


No entanto, apesar dos pontos negativos, A Extorsão acaba sendo no fim um thriller divertido de acompanhar, onde a graça está justamente em vermos um personagem comum do dia a dia, cheio de defeitos e indecisões como todos nós, encrencado em meio a situações que fogem do seu controle e com pessoas em quem ele não sabe se pode ou não confiar.

terça-feira, 13 de junho de 2023

Crítica: Beau tem Medo (2023)


Depois de estrear no cinema com Hereditário (2018), e logo em sequência lançar Midsommar (2019), o nova-iorquino Ari Aster entrou definitivamente para a lista dos diretores mais promissores do século, não apenas pela sua inventividade narrativa, mas também por demonstrar uma enorme habilidade em moldar a percepção do espectador através das imagens. Consolidado, e com um fandom para lá de barulhento, o diretor poderia ter seguido na mesma linha em seu terceiro filme, mas decidiu ousar, e talvez o excesso de ousadia tenha custado um pouco caro desta vez.


Baseado em um curta metragem do próprio diretor, Beau tem Medo (Beau is Afraid) é uma verdadeira odisseia por dentro da mente problemática de Beau (Joaquin Phoenix), um homem que vive sozinho em seu apartamento numa região caótica de uma cidade fictícia. Caótica, inclusive, talvez seja uma palavra branda para descrever o local onde ele mora, onde o simples ato de atravessar a rua para ir numa mercearia se torna uma missão quase impossível em meio aos transeuntes alucinados e descontrolados que o atacam arbitrariamente. A primeira hora do filme acompanha Beau tentando "sobreviver" neste ambiente, e eu estava gostando bastante dessa energia anárquica, onde tudo era imprevisível. Os únicos momento de Beau fora do apartamento neste início acontecem quando ele vai nas sessões com seu terapeuta para tratar as crises de ansiedade.

Após uma noite mal dormida por conta de uma rixa com seu vizinho, Beau está se preparando para ir visitar a mãe (Patti LuPone), uma magnata dona de um gigantesco conglomerado empresarial que fabrica de tudo um pouco, de produtos alimentícios a eletrodomésticos, e que construiu até mesmo prédios como o que Beau mora. Porém, ao tentar sair do apartamento, sua mala e a chave do apartamento são roubados, o que faz com que ele ligue para sua mãe dizendo que não irá mais, algo que não a surpreende pois aparentemente Beau já possui o costume de inventar desculpas para não vê-la. Um tempo depois, ao ligar novamente para a mãe, ele fica sabendo que ela supostamente morreu esmagada por um lustre dentro de casa, e que sua presença no enterro é imprescindível. Beau decide então ir de qualquer jeito, e é a partir de então que começa a grande virada de chave do filme, que passa a acompanhar de forma lenta (mas não menos intensa) a odisseia do personagem, que se vê em uma série de situações bizarras e completamente irreais.


É justamente nesta passagem do primeiro para o segundo ato que o filme perde a sua força, com o uso excessivo de metáforas e alegorias para nos fazer adentrar na cabeça do personagem. Após ser atropelado, Beau acaba sendo acolhido pelo casal que causou o acidente em uma residência isolada, onde o homem, um cirurgião renomado, passa a medicá-lo. Após fugir, Beau se vê dentro de uma mata, onde encontra um teatro itinerante e, de alguma forma, se sente representado em cena. São longas cenas interpretativas e inusitadas, com uso até mesmo de cenários animados (que lembram bastante o cinema de Michel Gondry), e não dá para saber direito se o que estamos vendo é o mundo quase distópico criado pelo diretor, ou se estamos de fato dentro da mente do personagem e de suas paranoias. Aliás, grande atuação de Joaquin Phoenix, que consegue transparecer em seu rosto todo o desespero anêmico e passivo do personagem.

O filme talvez seja um grande pesadelo do seu protagonista (quem sabe um sonho real do próprio diretor), daqueles de onde não conseguimos sair e vamos ficando cada vez mais desesperados com isso. É possível perceber, por exemplo, que em muitos momentos os personagens que interagem com Beau aparecem distantes, com rostos desfocados, tal qual num sonho de verdade. Eu, que costumo ter sonhos muito malucos e nonsense, consegui identificar várias semelhanças, como os cenários que se modificam rapidamente e as ações completamente abstratas dos personagens que surgem pelo caminho, como a menina que do nada bebe tinta diretamente da lata, ou um "perseguidor" de Beau que fica o tempo atrás dele e aparece em momentos inesperados. O final me deixou ainda mais certo desta teoria, onde Beau aparece em uma espécie de "julgamento" dos atos que teve durante a vida até que de repente, como num abrir de olhos abrupto, some.


Por fim, Beau tem Medo é um filme extremamente divisivo e corajoso do diretor, ainda que eu ache que poderia ter sido menos exaustivo e mais objetivo. Ao tratar a psique do protagonista e seus traumas, são abordados temas como o afeto familiar e até mesmo a sexualidade, visto que Beau sofreu uma forte repressão na infância que fez com que ele nunca tivesse amadurecido emocionalmente e sexualmente. As passagens onde ele se enxerga mais novo e mais velho deixam isso bem claro. É aquele tipo de obra que cada espectador vai ter sua própria interpretação e possivelmente buscar por teorias e significados após o seu final, e como falei anteriormente, irá dividir muito as opiniões de quem o assistir.

sábado, 10 de junho de 2023

Crítica: Mixed by Erry (2023)


Recém chegado no catálogo brasileiro da Netflix, Mixed by Erry é uma ótima surpresa no meio de tanta história enlatada que surge no serviço de streaming semanalmente. O filme se passa em Nápoles, entre as décadas de 1970, 1980 e 1990, e acompanha os três irmãos Frattasio, Angelo, Giuseppe e Enrico, que enriqueceram fazendo cópias de fitas cassetes e produzindo milhares de discos de maneira pirata.


Enrico (Luigi D'Oriano) desde pequeno sempre foi apaixonado por música, e apesar da dificuldade em chegar as novidades musicais na cidade, fazer amizade com o dono de uma loja de rádios e fitas cassetes ajudou muito ele a estar sempre por dentro de tudo que surgia ao redor do mundo. Os anos se passam e ele segue o sonho de tentar ser DJ, mas enquanto não consegue realizá-lo, segue trabalhando na mesma loja onde cresceu ouvindo suas músicas. Quando o local é fechado, Enrico decide arrumar um dinheiro para comprá-lo junto com os irmãos, a fim de usar o espaço para criar e vender fitas cassetes de acordo com o gosto de cada cliente, uma ideia até então inovadora na região. É aí que surge a "Mixed By Erry", onde eles ganham muito dinheiro produzindo fitas personalizadas para todos na cidade, inclusive com gravações inéditas que ainda nem haviam saído oficialmente.

Não sei até que ponto é verdade ou não, mas o roteiro mostra uma certa inocência por parte dos irmãos, que não viam maldade no que faziam. Inclusive, quando indagado sobre o que os músicos estariam achando disso, Enrico diz que só estava fazendo com que mais pessoas ouvissem as músicas, ou em outras palavras, ele estaria "ajudando" os próprios artistas. De fato não havia uma lei que proibisse o que eles faziam naquela época, e eles souberam usar bem a brecha para escapar da polícia, mesmo que as batidas tenham continuado constantes sob o comando do esquisito Fortunato (Francesco Di Leva). Com o tempo, as gravadoras também se juntam à Polícia Federal Italiana para combater a pirataria, já que os irmãos passaram a ter o impressionante domínio de cerca de 70% do mercado fonológico do país, e é aí que o cerco começa a se fechar de vez.

O filme tem todo o clima nostálgico da época, e da própria cultura das fitas cassetes. A dificuldade que era para conseguir ouvir algum lançamento e a maneira que se gravavam fitas enquanto as músicas tocavam nas rádios, ou até mesmo as declarações feitas em forma de fitas, quando se fazia uma coletânea para alguém especial. Tudo é mostrado com muito carinho pelo roteiro, que também mostra como foi recebido na época o anúncio de uma nova tecnologia que revolucionaria o mundo musical: o CD.


O roteiro acaba sendo uma espécie de "comédia de erros", em que os protagonistas vão se complicando mais a cada novo segundo, e isso faz com o que o ritmo seja bastante ágil. O filme também tem boas atuações, mesmo que algumas sejam desnecessariamente caricatas, e como já é costume em obras que remetem aos anos 70 e 80, o ponto alto acaba sendo a trilha sonora, com alguns dos clássicos que marcaram época e que ajudam, junto com a fotografia, a criar todo o clima saudosista. Por fim, Mixed by Erry é um filme leve, despretensioso, e com uma história que vale muito a pena ser conhecida.


quarta-feira, 7 de junho de 2023

Crítica: Sede Assassina (2022)


Quase dez anos após o excelente Relatos Selvagens, para mim um dos melhores filmes da década passada, o diretor argentino Damián Szifron volta às telas irreconhecível com Sede Assassina (To Catch a Killer), filme que marca sua estreia nos Estados Unidos mas que infelizmente foge totalmente da originalidade que o diretor havia demonstrado no seu filme anterior, com um roteiro genérico e muito decepcionante.

 

É noite de ano novo em Baltimore, e enquanto estouram os foguetes que a prefeitura prometeu serem os mais bonitos já vistos na cidade, um assassino usa o barulho para disfarçar seus tiros, e da janela de um prédio mata vinte e nove pessoas aleatoriamente, explodindo o apartamento em que estava logo depois. Todos os policiais da área são chamados ao local com urgência, e entre eles está Eleanor (Shailene Woodley). Por se tratar de um crime gravíssimo, o FBI passa a investigar o caso sob o comando de Lammark (Ben Mendelsohn), que chama para junto dele a própria Eleanor, pois percebeu a destreza dela e principalmente a sua coragem enquanto ela ajudava a evacuar o prédio de onde foram feitos os disparos e ajudar os sobreviventes.

Juntos, os dois vão buscando provas e chegando cada vez mais perto do assassino e de suas motivações. Eleanor inclusive já tentou entrar para o FBI, mas acabou sendo reprovada por questões pessoais e de comportamento, e agora finalmente tem a chance de acompanhar de perto uma operação da agência federal. Porém, como falei no início, o roteiro é extremamente genérico, e as atuações não ajudam nem um pouco a melhorar isso. Shailene Woodley tem aqui uma das personagens mais básicas de sua carreira, e se torna completamente impossível comprar sua personalidade, mesmo com o diretor tentando abordar seus traumas do passado e até mesmo uma possível depressão enfrentada por ela. O personagem de Ben Mendelsohn também é mal construído e o seu arco fora da investigação é extremamente vazio.


Ao priorizar a relação e a vida pessoal dos dois protagonistas, o filme faz aquilo que não deveria ter jamais cogitado fazer: deixar a história do serial Killer em segundo plano. O que parecia um início promissor, com a ideia de um assassino em série à solta, acaba perdendo totalmente o foco, e no final a sua motivação acaba sendo muito rasa. Sem falar em uma cena que envolve a mãe do assassino, que é uma das coisas mais constrangedoras que vi em um filme este ano. O filme também tenta fazer uma crítica a respeito da liberação das armas e a facilidade de se conseguir comprar elas nos Estados Unidos, mas também não se aprofunda nisso e se torna uma discussão vazia. No fim, Sede Assassina acaba sendo apenas um episódio longo, e muito mal feito, de qualquer série de investigação estilo C.S.I., e nada mais do que isso.

segunda-feira, 5 de junho de 2023

Crítica: Ela e Eu (2023)


Novo filme do paulistano Gustavo Rosa de Moura, Ela e Eu é um drama familiar bastante intimista que chegou a pouco tempo no catálogo da Star+, e fala sobre afeto, sobre amor, mas principalmente sobre as mudanças que ocorrem na vida de todos nós diante da implacável passagem do tempo.


O filme começa com Bia (Andrea Beltrão) entrando em coma logo após dar à luz a sua filha, Carol. Vinte anos se passam, e ela segue no mesmo estado, sendo cuidada diariamente em casa pela própria filha agora adulta (Lara Tremouroux), pelo marido Carlos (Eduardo Moscovis) e por uma cuidadora (Karine Teles). De repente, quando ninguém mais esperava acontecer, ela começa a mostrar sinais de estar acordando do coma, e pouco a pouco vai voltando à sua vida normal, tendo que reaprender todas as coisas básicas novamente, como andar e falar.

O roteiro mostra com delicadeza o choque que um retorno desses é capaz de produzir na família, até porque, por mais que todos torcessem para que isso um dia acontecesse, é inevitável a mudança drástica na vida de todos. A mais afetada com certeza é Renata (Mariana Lima), a nova esposa de Carlos, que faz um esforço para disfarçar que dentro dela existe um misto de piedade e empatia com Bia, mas ao mesmo tempo de raiva e ciúmes, e um medo grande de ser substituída como mãe e como mulher depois de tantos anos. Sentimentos esses que não se pode controlar, e por isso mesmo não dá para considerá-la uma pessoa ruim. Apenas humana.

Andréa Beltrão é o grande destaque do filme, com uma atuação muito sensível e forte. Era imprescindível para uma personagem como Bia, que precisa não só reaprender a viver, como resgatar as memórias do que um dia já foi. Inclusive, uma das cenas mais bonitas do longa é justamente quando ela recorda momentos através de fotos antigas, e o que poderia cair num melodrama bobo acaba sendo um momento muito potente na história. Pois é justamente isso que encanta na personagem: a doçura e o prazer que ela sente nas pequenas coisas que vai redescobrindo com o tempo. Destaco também Mariana Lima, Karine Teles e a jovem Lara Tremouroux, um elenco feminino de peso que não poderia ter sido melhor escolhido.


Gostei como os cenários também são peça importante no filme. Por exemplo, no quarto onde Bia ficou desacordada por duas décadas, é possível ver vários desenhos feitos pela filha quando criança, sempre enaltecendo a mãe ou sonhando com o dia que ela iria acordar, além das fotos de quando Bia era mais nova, que permite que conheçamos quem era ela um pouco mais: aparentemente uma mulher de espírito livre, que tinha uma banda de rock e gostava da vida. O final emociona, e faz pensar bastante no quanto a vida é finita, e devemos aproveitar enquanto é tempo. E por mais que a mensagem pareça piegas, às vezes é exatamente isso que precisamos.


sexta-feira, 2 de junho de 2023

Crítica: John Wick 4: Baba Yaga (2023)


Lançado de forma despretensiosa em 2014, John Wick aparentava ser apenas mais um filme de vingança e ação como tantos outros que chegam aos cinemas todos os meses e que já saturaram o gênero até o limite. No entanto, a história de um homem que está lidando com o luto e decide se vingar após ter seu cachorro morto foi se destacando dos outros e ganhando cada vez mais fãs com seus próprios méritos, mostrando desde sempre ser um universo diferenciado. Após três filmes e um sucesso estrondoso e inesperado de bilheteria, a saga chega ao seu quarto e melhor filme, que visualmente é uma das coisas mais impressionantes que vi nos últimos anos.


O universo de John Wick é instigante, e é muito interessante ver como o diretor Chad Stahelski foi expandindo-o a cada novo filme. Se no primeiro filme nós tínhamos uma ideia rasa de como funcionava essa sociedade de assassinos profissionais e o que era a Alta Cúpula, agora nós temos uma ideia muito clara de como tudo funciona, e de como esse mundo é administrado de uma maneira estranhamente burocrática. Após John Wick continuar vivo no final do terceiro filme, o prêmio por sua cabeça segue aumentando sem parar no mercado dos assassinatos. Quem se torna o principal antagonista da vez é o Marquês de Grammont (Bill Skarsgard), membro poderoso da Alta Cúpula que está disposto a tudo para matar Wick. Outro personagem que aparece pela primeira vez é o de Shamier Anderson, conhecido como "Sr. Ninguém", que ao mesmo tempo em que caça Wick de forma implacável, também o protege de certa forma, pois sabe que quanto mais tempo ele ficar vivo, maior será a sua recompensa quando finalmente conseguir matá-lo. Outro que está na cola de Wick é Caine (Donnie Yen), um matador deficiente visual que é extremamente carismático e tem como principal motivação a vida da sua filha que corre perigo nas mãos da Cúpula.

O que já tinha ficado subentendido nos filmes anteriores, agora fica ainda mais claro: a ideia cartunesca que faz com que os atos violentos não atraiam a atenção das pessoas comuns, e muito menos da polícia, porque de fato é uma sociedade que se acostumou com isso e naturalizou as mortes. O filme foge da verossimilhança com a realidade, e não se importa com isso, pois esse "absurdo" encaixa perfeitamente dentro dessa atmosfera criada desde o primeiro filme. Dá para perceber isso em vários momentos, como na cena de perseguição automotiva em volta do Arco do Triunfo em Paris, uma das mais impactantes do filme, ou na casa noturna, onde a festa continua normalmente enquanto corpos vão sendo amontoados no chão.

A direção de arte de Kevin Kavanaugh é o ponto alto do filme, e o que faz ele ser tão grandioso e visualmente fantástico. Todos os cenários são majestosos, e cada um com sua própria personalidade, que vai ditando o tom do filme e o que se espera de cada cena. De salões e quartos de hotel luxuosos a subterrâneos sujos, é tudo milimetricamente detalhado. Junto a direção de arte, tem a fotografia de Dan Laustsen, que usa as cores de uma maneira estonteante, incluindo belíssimas cenas tendo como pano de fundo o nascer e o pôr do sol. Mas para mim o grande destaque é a sequência em que John luta com vários homens entre os cômodos de uma casa, e uma câmera área mostra tudo de cima em plano sequência, quase como se fosse um jogo de videogame. Inclusive, segundo o próprio diretor, a sequência foi mesmo inspirada em um jogo chamado "Hong Kong Massacre".


Apesar de haverem boatos de um quinto filme, creio que John Wick 4 encerra com maestria a saga, tendo um final épico e muito bem construído. Porém, conhecendo Hollywood como conhecemos, sabemos que eles não vão querer abrir mão do projeto no momento em que ele encontra o seu ápice. Pois sim, John Wick chega no topo do que um filme de ação pode alcançar com esta quarta parte, e com certeza já entra para a história como uma das sagas mais importantes do cinema.

quinta-feira, 1 de junho de 2023

Crítica: Rabiye Kurnaz vs. George W. Bush (2022)


Baseado em uma história real, Rabiye Kurnaz vs. George W. Bush acompanha Rabiye (Meltem Kaptan), uma mãe que faz tudo que está ao seu alcance para conseguir justiça por seu filho, que se tornou prisioneiro em Guantánamo após ser acusado de envolvimento com o Talibã. Além da forte crítica que faz aos métodos desumanos que os Estados Unidos conduziram as prisões dos acusados de terrorismo, o filme também levanta a questão da xenofobia na Europa, que neste período em especial cresceu exponencialmente.


Na trama, o turco Murat (Abdullah Emre Öztürk) vive com a mãe e os irmãos em Bremen, na Alemanha, até que em um dia simplesmente desaparece. A mãe, preocupada com o sumiço, vai atrás e descobre que ele pegou um avião para o Paquistão junto com o amigo Sedat (Hüseyin Ekici), e que eles supostamente estavam indo se juntar ao Talibã. Não demora para ela descobrir que Murat foi capturado pelas autoridades norte-americanas e está em Guantánamo, a prisão militar em território cubano que ficou mundialmente conhecida após diversas denúncias de violação dos direitos humanos. Para tentar trazer seu filho de volta, Rabiye conta com o apoio do advogado Bernhard Docke (Alexander Scheer), e não deixa nunca de acreditar que o filho é inocente e está preso injustamente, ainda que tudo indique o contrário.

O que está em jogo não é a culpabilidade ou não de Murat, mas a maneira como ele é mantido em um local isolado e sem direito de defesa. Mesmo duas décadas depois, ainda há discussão acerca da jurisdição em Guantánamo, e da maneira como os Estados Unidos impossibilita que os prisioneiros tenham direito a um julgamento justo, alegando que eles são "detentos em campo de batalha" e por isso estão à margem da lei. Diante desta extrema dificuldade em conseguir um mínimo contato com Murat, Rabiye e seu advogado acabam apelando para a imprensa e até mesmo para a Suprema Corte dos Estados Unidos, se tornando também uma espécie de porta-voz de outras tantas famílias que vivem o mesmo drama. Ao mesmo tempo, ela também precisa enfrentar a opinião pública contrária e o governo alemão, que age de forma arbitrária para proibir que ele volte ao país caso seja solto.


Alguns problemas cronológicos em relação aos personagens me incomodaram bastante, como por exemplo a esposa de Murat aparecer apenas dois anos após o sumiço do marido, e como se sempre tivesse estado ali na história. Tem também o pai de Murat, que mesmo morando com Rabiye, só aparece três anos depois na linha do tempo, quando conhece pela primeira vez o advogado do caso. Ele ficou todo esse tempo alheio a tudo, mesmo morando na mesma casa de Rabiye? Outro ponto negativo foi a tentativa de mostrar a protagonista quase como uma ignorante, que não sabe nem direito o que é um tribunal, na tentativa de deixar o filme com um tom leve e descontraído. Por último, quando ela volta pra casa após um tempo fora, as crianças dão a entender que falta tudo em casa, como se tivessem sido abandonadas ali, sendo que o pai estava o tempo todo com eles. Difícil engolir tantos equívocos. Por tudo isso, Rabiye Kurnaz vs George W. Bush infelizmente acaba sendo mais um exemplo clássico de um filme que apresenta um tema super importante, mas que infelizmente acaba não tendo foco e sendo mal conduzido.