terça-feira, 24 de outubro de 2023

Crítica: O Próprio Enterro (2023)


Dirigido por Margaret Betts (de Noviciado), O Próprio Enterro (The Burial) é uma comédia dramática de tribunal que chegou recentemente no catálogo brasileiro do Prime Vídeo e me surpreendeu bastante. Se na teoria o roteiro não me parecia promissor, na prática fiquei encantado com o tom de humor do filme e principalmente com as atuações de um trio de atores espetacular: Jamie Foxx, Tommy Lee Jones e Jurnee Smolett.


O longa se passa na metade dos anos 1990 e acompanha o caso real de Jerry O' Keefe (Jones), dono de uma pequena funerária no Mississípi gerida pela família há décadas. Ao tentar firmar um contrato com a Loewen, um gigantesco conglomerado corporativo de funerárias, Keefe acaba sendo enganado pelo grupo, que é chefiado pelo magnata Raymond (Bill Camp). Bilionário, Raymond é o típico ser humano desprezível e ganancioso que não tem o mínimo de consideração por nada e nem ninguém, e que passa a vida impune de seus atos.

Disposto a reverter isso, e fazer com que Raymond pague pelo que fez, não somente com ele mas com todas as suas vítimas, Keefe decide procurar William Gary (Jamie Foxx), um excêntrico e megalomaníaco advogado, que é conhecido por pegar apenas casos milionários, que possibilitaram ele adquirir mansões, carros importados e até mesmo um avião próprio ao longo da carreira. Em um primeiro encontro, Gary se nega a assumir o caso por três motivos: acha que o valor da indenização é muito insignificante, não vê como um caso ganho (outra de suas exigências ao aceitar fazer uma defesa) e, acima de tudo, jamais havia defendido um homem branco.


Quem muda a visão de Gary sobre o caso é o recém formado Hal Dockins (Mamoudou Athie), que mostrando alguns dados, consegue convencê-lo de que o caso pode, sim, ser muito maior do que eles inicialmente imaginavam. Além do mais, Keefe será julgado em um condado majoritariamente habitado pela população negra, incluindo o juiz, o que facilitaria a ação do advogado. O que ele não contava, no entanto, é que o outro lado, sabendo desta sua intenção, contrataria um time de advogados negros, encabeçados pela competentíssima Mame Downes (Smolett). A atriz tem uma presença incrível em cena, e para mim é o grande destaque de um filme que justamente tem sua força nas atuações.

Gostei muito da forma como a diretora utiliza o humor aqui, de uma maneira muito natural. Por trás deste tom leve, no entanto, temos um tema bastante complexo, que é a corrupção no meio corporativo, em que grandes multinacionais tentavam (e ainda tentam) "engolir" os pequenos negócios familiares da maneira mais suja possível, sempre acreditando na eterna impunidade. O roteiro  ainda aproveita para tecer algumas críticas interessantes sobre o racismo, mas também faz isso com graça e descontração.


domingo, 22 de outubro de 2023

Crítica: Jogos Mortais X (2023)


Lançado em 2004, o primeiro Jogos Mortais rapidamente se tornou um fenômeno, tornando-se um dos principais filmes de terror do século XXI. No entanto, depois de tantas sequências fracassadas, a franquia foi deixada de lado por boa parte do público, que não aguentava mais tanta enrolação desnecessária e sem propósito. Até uma espécie de "spin-off" foi lançada, com Chris Rock no papel principal, e eu confesso que nem me empolguei em assistir. No entanto, Jogos Mortais X chega para definitivamente salvar a franquia e trazer de volta os fãs de anos atrás, ao contar uma história paralela que se passa mais ou menos entre os filmes 2 e 3.


A primeira meia hora do filme apresenta um ritmo cadenciado, e mostra John Kramer (Tobin Bell) lidando com a notícia de que tem um câncer terminal. Ele vai a uma espécie de terapia em conjunto com outros pacientes, e tenta encontrar uma alternativa para enfrentar a doença da melhor maneira possível. Quando um colega de terapia recomenda um tratamento novo aplicado na Cidade do México, Kramer decide viajar até o país vizinho para um último suspiro de esperança. No entanto, ele acaba sendo enganado, e disposto a não deixar barato ele passa a planejar a vingança contra cada um dos envolvidos nessa farsa.

A segunda parte do filme acompanha a busca e a captura de cada um de suas novas vítimas, e quem reaparece para ajudar Kramer é sua antiga parceira Amanda (Shawnee Smith). Diferente de outros filmes onde as vítimas de Kramer eram pessoas que, de alguma forma, faziam mal à sociedade, e ele agia quase como um "coach de aperfeiçoamento pessoal" (há inclusive uma boa piada sobre isso no filme), aqui temos uma narrativa de vingança contra quem agiu diretamente contra ele. Kramer inclusive faz questão de aparecer pessoalmente para quem está nas novas armadilhas.


As armadilhas, inclusive, estão aperfeiçoadas. Se eu achava que já havia visto de tudo na franquia, aqui fui surpreendido novamente. Mas é interessante perceber como elas aparecem em número bem menor do que em outros filmes, já que aqui o foco é outro. Quando aparecem, no entanto, trazem aquele banho de sangue costumeiro e extremamente agoniante. Quase no fim, ainda acontecem várias reviravoltas na trama, algumas que funcionam e outras nem tanto.

Jogos Mortais não é Jogos Mortais sem Tobin Bell, e justamente por saber disto, o diretor coloca ele ativamente em todas as cenas, sempre como personagem central em tudo que está acontecendo. E é impossível não se sentir próximo novamente deste personagem tão ambíguo, e que traz tantos sentimentos controversos. Sua relação com Amanda, no entanto, continua meio obscura, e incomoda um pouco essa idolatria quase cega que ela tem por ele. Mas ao mesmo tempo, é legal revê-la na história. Teoricamente não é um filme que traga nenhuma novidade, mas como é bom voltar um pouco no tempo e ver um Jogos Mortais ganhando destaque novamente com um enredo envolvente.

sábado, 21 de outubro de 2023

Crítica: Assassinos da Lua das Flores (2023)


Poucos diretores conseguem abordar a sede pelo poder e a ganância, e sobretudo a violência que surge disto, como Martin Scorsese. Quem acompanha a filmografia dele há décadas já sabe que seus roteiros costumam brincar com a ambiguidade e a linha tênue que existe entre o bem e o mal, geralmente apresentando anti-heróis complexos e controversos. Em Assassinos da Lua das Flores (Killers of the Flower Moon), o diretor resgata uma das páginas mais sombrias da história dos Estados Unidos, que ficou conhecida como "Reinado do Terror", onde dezenas de indígenas da nação Osage foram mortos pela ganância inescrupulosa do homem branco. Baseado no livro homônimo de David Gran, o filme traz à tona os acontecimentos e a investigação destes casos, fazendo acima de tudo uma bonita homenagem ao povo nativo americano e seus costumes.


O filme se passa nos anos 1920 em Oklahoma, mais especificamente no condado de Fairfax, onde vive grande parte do povo nativo americano Osage após terem sido expulsos do estado do Kansas. A população local vive em uma época de extrema prosperidade após a descoberta de petróleo na região, o que automaticamente faz com que os Osage se tornem o povo com maior renda Per Capita de todo o país. Obviamente que isso chama a atenção de gananciosos, trazendo uma invasão enérgica mas quase sutil do homem branco. Digo sutil pois eles não chegaram invadindo e tomando as terras para si de um dia para o outro, mas criando uma espécie de armadilha que foi, pouco a pouco, encurralando estes indígenas em seu próprio território. A maioria destes homens brancos acaba casando com mulheres nativas, donas ou herdeiras de terras petrolíferas, e é até curioso perceber como no começo do filme a maioria deles se apresenta dizendo o nome seguido de "sou marido de fulana", pois a figura feminina era literalmente a "galinha dos ovos de ouro" dos homens brancos e por isso eram tão exaltadas. 

Uma coisa me chamou a atenção no início do filme. Assim como na vida real os Osages ficaram ricos praticamente da noite para o dia, o roteiro também não se importa em apresentar um prólogo ou explicar toda a situação neste começo, já mostrando os nativos aproveitando desta riqueza. Essa trajetória de enriquecimento é rapidamente mostrada em pequenas imagens em preto e branco, com uma perspectiva 3x4, que remete aos filmes mudos, mas nada mais do que isso. Confesso que senti falta de algumas nuances que o livro traz neste momento, principalmente quando se refere a curatela do dinheiro destes indígenas, que ficava a cargo do governo americano. Segundo uma lei federal, os indígenas eram considerados incapazes de gerirem sua própria riqueza, e por isso não podiam usar o dinheiro sem ter autorização de seus curadores: homens brancos. Essa visão que considerava os indígenas como sub humanos está a todo momento nas palavras e nas ideias dos personagens de fora, que enxergavam eles como meras ferramentas manipulativas para alcançar o seu objetivo principal: o dinheiro e as concessões das terras deles.


Um deles é Ernest Burkhart (LeonardoDiCaprio), que chega na cidade para trabalhar com seu tio, William Hale (Robert De Niro). Ernest é um personagem extremamente contraditório, e é brilhante a forma como o diretor trabalha isso junto ao ator, que tem aqui mais uma das suas melhores atuações na carreira. Hale, por sua vez, não é chamado à toa de "o rei das colinas Osage", pois tudo que acontece na cidade gira em torno dele. Rico criador de gado, ele é visto como um pai por todos, que com seu dinheiro não só ajuda diretamente algumas pessoas, como também indiretamente, na construção de escolas e hospitais. Enquanto isso, no entanto, está por trás das maiores crueldades contra o mesmo povo que o admira. Essa complexidade do personagem não poderia exigir um ator melhor do que Robert De Niro, que está brilhante em mais uma parceria sua com Scorsese (a décima em cinquenta anos).

Com um empurrãozinho cheio de interesses do tio, Ernest acaba se apaixonando por Mollie (Lily Gladstone), uma mulher Osage que é a principal herdeira da fortuna da mãe, Lizzie. O mais interessante nesta relação entre Ernest e Mollie é que é possível identificar de longe que existe amor e ternura entre os dois, e diferente de outras relações cobiçosas entre brancos e nativas, aqui o sentimento era de verdade. O grande problema é que Ernest sempre foi absurdamente manipulado pelo tio, e o casamento acaba se transformando em uma relação sórdida e recheada de mentiras quando Ernest aceita passivamente ajudar Hale em suas tramoias ardilosas, inclusive contra a própria Mollie e sua família.


Quando uma série de vítimas fatais começa a aparecer no povo Osage, sem que haja nenhum tipo de investigação delas, o clima de terror toma conta da pequena cidade. Para piorar, quem tenta investigar acaba tendo o mesmo fim trágico, deixando a população não só temerária mas também sem respostas. São inúmeras mortes, desde envenenamentos disfarçados e doenças misteriosas, até assassinatos brutais com uso de armas de fogo, entre elas a de Anna (Cara Jade Myers), irmã de Mollie, cujo corpo é encontrado na beira de um riacho, criando ainda mais comoção entre todos.

A virada de chave no roteiro acontece quando uma outra irmã de Mollie, Rita, é morta após uma explosão destruir completamente a casa onde vivia com o marido, Bill. Este fato faz com que Mollie viaje para Washignton D.C afim de pedir ajuda ao Presidente na solução dos casos. É quando entra na história Tom White (Jesse Plemons), um agente federal que trabalha para o recém criado Bureau of Investigation, órgão comandado por J. Edgar Hoover que posteriormente viria a se tornar o que hoje é conhecido como FBI. Agora com alguém de fora investigando sem interferências dos criminosos, cresce a esperança dos Osage de finalmente descobrirem quem está por trás das mortes e obterem justiça.


É notório que a grande intenção do diretor era filmar uma obra que fizesse jus à importância dos povos originários na América, falando principalmente da tentativa covarde de invisibilidade destes povos ao longo dos anos, seja na cultura, nos costumes, ou até mesmo no idioma que falavam. Por isso, é tão importante este resgate histórico, onde Scorsese mostra até mesmo os rituais e os elementos místicos que faziam parte deste povo, sempre com muita sensibilidade e respeito. Só não considero um filme perfeito pois senti falta de alguns elementos importantes tratados no livro, não gostei de algumas escolhas cronológicas, e esperava um pouco mais de desenvolvimento do personagem vivido por Jesse Plemons (novamente tendo como referência o livro). Porém, terminando com um epílogo original e diferente de tudo que eu havia visto até então (e uma participação especial que me pegou desprevenido), Assassinos da Lua das Flores é mais um filme lindo e esteticamente impecável deste cineasta extraordinário.

sexta-feira, 20 de outubro de 2023

Crítica: Anatomia de uma Queda (2023)


Vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes deste ano, Anatomia de uma Queda (Anatomy of a Fall) apresenta um mistério que literalmente transforma o espectador em um jurado de um suposto crime de homicídio, sem no entanto jamais apresentar a resposta conclusiva do que aconteceu. A diretora Justine Triet inteligentemente brinca com as nossas perspectivas a respeito da verdade, e é essa subjetividade do roteiro que faz ele ser tão complexo e envolvente.


Sandra (Sandra Hüller) é uma escritora de relativo sucesso que vive com o marido Samuel (Samuel Theis) e o filho Daniel (Milo Machado-Graner) em uma casa isolada nos Alpes Franceses. O filme começa com ela recebendo uma jovem que vai até o local para entrevistá-la, mas elas acabam sendo interrompidas pela música alta que Samuel coloca para provocar a esposa enquanto faz uma reforma no sótão. Ela tenta levar na brincadeira e fala para a entrevistadora que isso é rotineiro e ele não faz por mal, mas já fica evidente que há um clima estranho entre eles no ar.

Quando o filho do casal volta para casa após sair para passear com o cachorro, ele encontra o corpo do pai caído na neve. Este é só o início de uma investigação forense que tenta determinar o que ocorreu enquanto o menino estava fora e a mãe supostamente tirava um cochilo. Foi um acidente? Foi suicídio? Ou foi um homicídio? A partir de então, a trama amarra todas estas possibilidades de maneira primorosa, manipulando nossa opinião conforme cada nova pista é mostrada. Não há uma verdade definitiva apesar de Sandra se tornar a principal suspeita do crime, e as dúvidas só crescem na medida em que o filme transcorre, pois a cada momento aquilo que parece ser a verdade evapora com novos indícios.


Seguindo a fórmula clássica de um trhiller de tribunal, a narrativa é dividida em três partes, sendo a do julgamento a que tem maior tempo de tela. E o que era para ser um caso de possível assassinato, acaba sendo praticamente um estudo da relação entre Sandra e Samuel. Passamos a acompanhar detalhes da vida do casal e da dinâmica que existia entre eles, tornando um julgamento muito mais pessoal do que qualquer outra coisa. Até mesmo a bissexualidade da protagonista é trazida à tona, virando munição da acusação. 

Por trás disso tudo o filho do casal, que se vê obrigado a ouvir e descobrir coisas sobre os pais que ele não estava preparado. O menino, inclusive, acaba sendo uma peça fundamental na reconstituição dos fatos, ainda que não tenha testemunhado o momento da queda. É através das memórias do garoto, muitas vezes confusas e embaralhadas, que o júri vai montando um quebra-cabeças de como as coisas funcionavam dentro desta convivência familiar.


O trabalho sonoro é impecável, e em um dos poucos momentos em que o filme sai da sua narrativa linear, é justamente quando utiliza a transcrição de um áudio para apresentar um flashback daquilo que estava sendo ouvido nele diante do tribunal. O ritmo nos conduz por cerca de duas horas e meia sem cansar, e isso se deve não só à montagem ágil da diretora, mas também ao trabalho impressionante da atriz Sandra Hüller, possivelmente a melhor atuação feminina que vi até então este ano.

segunda-feira, 16 de outubro de 2023

Crítica: Dezesseis Facadas (2023)


E se a franquia Pânico se unisse a franquia de De Volta para o Futuro? Parece um pouco improvável, mas é quase o que acontece com Dezesseis Facadas (Totally Killer), filme da diretora Nahnatchka Khan que entrou em cartaz no Prime Vídeo nessa última semana e vem dando o que falar, juntando os fãs de slasher com os fãs de filmes de viagem no tempo.


A premissa é simples: três amigas foram brutalmente assassinadas em 1987 por um assassino que utilizava uma máscara (estilo Leatherface) e tinha como método dar exatas dezesseis facadas em cada uma de suas vítimas. De todas, apenas uma das meninas do grupo sobrevive. Trinta e cinco anos se passam, e sem explicação o assassino ressurge para matar a sobrevivente, Pam (Julie Bowen), que era casada e tinha uma filha adolescente, Jamie (Kiernan Shipka). Afim de reverter a morte da mãe, Jamie resolve usar a máquina do tempo criada por sua melhor amiga Amelia (Kelsey Mawema) em uma feira de ciências para voltar ao ano de 1987, e tentar parar o assassino antes mesmo dele cometer seus primeiros crimes.

Com um tom satírico, o roteiro brinca com a mudança de comportamento entre a juventude dos anos 2020 e a dos anos 1980, quando Jamie passa a se chocar com a permissividade assustadora que existia naquela época. Ela está na mesma cidade mas parece um outro universo, tamanho é o choque de gerações e culturas, inclusive quando ela tem contato com seus pais mais novos e percebe como eles eram bem diferentes do que ela estava acostumada. Mas essa não é nem de longe a pior coisa que ela terá que enfrentar, já que de fato, ela não sabe nem por onde começar a deter o assassino, que ela não faz ideia de quem seja.

Ao não fazer questão de ser levado a sério, o roteiro não se acanha em criar uma série de facilitações absurdas, e até mesmo exagerar nas piadas. Algumas funcionam perfeitamente, outras soam extremamente repetitivas, mas o fato é que o tom cômico não deixa espaço para que se crie um clima de suspense e tensão, que seria necessário para o desenrolar da história do assassino. A perseguição que ocorre no ato final acaba sendo muito mais engraçada do que tensa, e isso acaba fazendo com que o filme seja apenas um besteirol, quando poderia ser muito mais.

 

É inegável, no entanto, que o elenco está muito bem, com destaques para Kiernan Shipka (a bruxa Sabrina da série da Netflix) e Julie Bowen (conhecida por fazer a Claire na série de comédia Modern Family). Os figurinos e os cenários também nos levam direto aos anos 1980 e aos filmes da época, trazendo uma sensação de nostalgia que encaixa muito bem. Com algumas reviravoltas surpreendentes e um roteiro que não se estende mais do que deveria, Dezesseis Facadas é uma boa pedida para quem quer dar boas risadas enquanto pessoas são violentamente mortas, sem culpa.


domingo, 15 de outubro de 2023

Crítica: You Hurt My Feelings (2023)


A cineasta Nicole Holofcener já é conhecida por tratar nas telas o "white people problem" de novaiorquinos que, em geral, são estáveis financeiramente e possuem uma boa estrutura familiar, mas que mesmo assim não conseguem fugir das crises existenciais que surgem na faixa dos quarenta. Foi assim em À Procura do Amor e em Gente do Bem, e com You Hurt My Feelings não poderia ser diferente.


O roteiro acompanha o casal Beth (Julia Louis-Dreyfus) e Don (Tobias Menzies). Ela é uma escritora que tenta a todo custo conseguir um espaço nas livrarias para seu livro de memórias, enquanto Don é um psicólogo que anda descontente com sua profissão e se acha medíocre por não conseguir ajudar seus pacientes da forma como gostaria. A vida dos dois muda quando Beth descobre uma traição de Don. Mas não estou falando da traição como todos conhecemos, e sim de um ato de Don que Beth considera a pior das traições: sem querer ela flagrou ele falando muito mal de seu livro e de suas pretensões como escritora. A partir de então, a crise existencial toma conta de Beth, que passa a desacreditar em si mesma e principalmente na relação que tem com as pessoas em volta.

Apesar do roteiro ser um tanto superficial e as preocupações dos personagens serem relativamente insignificantes, a atuação dos dois protagonistas ajuda o filme a manter os pés no chão. Conhecidos por seus papéis em séries de televisão (ela na comédia e ele no drama), Dreyfus e Menzies combinam bem na pele deste casal narcisista (e chato), que precisa urgentemente reencontrar um sentido para a vida e para o próprio relacionamento. No entanto, as melhores cenas do filme não envolvem os dois juntos, até porque não há muito desenvolvimento destes personagens, e o ponto alto acabam sendo as cenas que acontecem dentro do consultório de Don, tanto com o casal que procura terapia para tentar acertar aquilo que já não tem mais conserto, como o jovem solitário que está tentando aprender como viver neste mundo maluco.


O tom leve e descompromissado pode até funcionar as vezes, mas se o filme não apresenta nenhuma reviravolta ou novidade durante sua duração, acaba ficando entediante. E infelizmente é o que acontece com You Hurt My Feelings. Há um conflito evidente após a descoberta de Beth, mas os personagens não são devidamente confrontados com isso. Talvez a intenção da diretora fosse justamente mostrar como as relações precisam ter o diálogo como base de tudo, mas neste caso acaba sendo apenas um filme "bonitinho", mas sem sal.

sábado, 14 de outubro de 2023

Crítica: Jeanne du Barry (2023)


Conhecida como Madame du Barry, Marie-Jeanne Bécu foi uma cortesã francesa do século XVIII que alcançou a riqueza e a nobreza após se tornar amante principal do Rei Luis XV, de 1768 até a morte do monarca em 1774. Dirigido pela cineasta francesa Maiwenn (de Polissia e Mon Roi), Jeanne du Barry é um drama biográfico desta figura histórica, que apesar de ter defeitos evidentes, narra com esmero as engrenagens da controversa vida da nobreza nos séculos passados.


Jeanne (interpretada pela própria diretora) era filha de uma empregada e costureira, e teve sua educação bancada em um convento pelo patrão da mãe. Porém, logo cedo ela fugiu do local, que de longe não combinava em absolutamente nada com seu espírito livre e irredutível. Após trabalhar um tempo como leitora para uma viúva e ser expulsa depois se relacionar com o filho da mesma, Jeanne acaba usando sua beleza estonteante para entrar na vida da prostituição de luxo. Esse seu dom de sedução, que para muitos era incomparável, acabou chegando até os funcionários do Palácio de Versalhes, que tentavam encontrar uma nova amante para o Rei após a última e mais famosa delas, a Madame de Pompadour, falecer.

Ao ver Jeanne em uma cerimônia festiva no Palácio, o Rei (Johhny Depp em seu primeiro papel após as polêmicas envolvendo seu julgamento com Amber Head) se encanta e solicita a presença dela em seu leito. O que era para ser apenas mais uma de suas noitadas de prazer, acaba virando obsessão quando o Rei se apaixona pelo jeito excêntrico da jovem camponesa, e decide tê-la como sua nova "amante oficial". Para isso, no entanto, ela deveria ter no mínimo um título de nobreza, o que obrigou-a a se casar com seu próprio irmão, o conde Guillaume du Barry, para se tornar uma duquesa e enfim poder ser aceita na realeza. Pelo menos teoricamente, já que as filhas do Rei jamais aceitaram este relacionamento alegando que ela era vulgar demais para conviver com a Família Real, o que no fundo era apenas preconceito por ela vir de uma classe baixa.

O filme tem uma bela fotografia e uma direção de arte que nos transporta vividamente ao século XVIII, mas infelizmente peca ao não conseguir acertar o tom entre a comédia e o drama. A tentativa da diretora em ser debochado diante dos costumes e tradições da época acaba sendo bastante forçada, sobretudo na atuação dela mesma, que não passa seriedade e em vários momentos destoa dos demais. Johhny Depp, sempre conhecido por seus papéis carismáticos e expressivos, aqui também tem uma participação irreconhecível, e parece estar em um verdadeiro piloto automático. Apesar disso, Jeanne du Barry não chega a ser um filme descartável, pois consegue sustentar o ritmo até o fim e tem como principal mérito mostrar, com acidez, como a realeza era mais libertina do que se imaginava, mesmo que escondesse bem isso atrás de um filtro imaculado e recatado.

quinta-feira, 12 de outubro de 2023

Crítica: O Dia que Mudou o Mundo (2023)


Tem filmes que são essenciais você assistir sem saber absolutamente nada a respeito da história que vai ser mostrada, e eu diria que é o caso de O Dia que Mudou o Mundo (Die Welt Wird Eine Andere Sein/Copilot), da cineasta alemã Anne Zohra Berrached. Inclusive, se você não assistiu ainda, passe essa crítica até vê-lo e volte depois, vai por mim. A experiência vale a pena, e para mim foi uma enorme surpresa quando me dei conta do que estava por trás de tudo, principalmente depois do seu final arrebatador.


De início, o filme remete a um simples romance entre dois jovens que se conhecem na faculdade e se apaixonam perdidamente. Não que isso seja demérito, até porque desde o começo já dá para perceber que este romance possui camadas interessantes de acompanhar, afinal de contas, os dois são de religiões e culturas bem diferentes (e opostas), e possuem visões distintas de mundo. Logo no começo, também já ficamos sabendo que este relacionamento durará cinco anos. Sim, o filme dá um prazo de validade para a relação através de uma carta de término que é lida no primeiro minuto, e vamos acompanhamos o desenrolar desta história através de capítulos que remetem a cada ano que eles passaram juntos.

O casal é Saeed (Roger Azar) e Asli (Canan Kir), dois estudantes de medicina que vivem na Alemanha e se conhecem por acaso em uma festa. Ela é da Turquia, ele do Líbano. Ela vem de família judia, ele é árabe. Apesar das enormes diferenças, nada impede que eles criem uma relação muito forte, ainda que a família de Asli se mostre extremamente contra, fazendo com que eles se relacionem de maneira escondida. Já a família de Saeed, por outro lado, parece mais acolhedora, como quando Asli vai conhecê-los em Beirute enquanto Saeed faz uma viagem misteriosa para o Iêmen. Ele desaparece nesta viagem e só volta meses depois, cheio de segredos, mas com muita esperança de finalmente se tornar um piloto de aviões, algo que sempre sonhou. Para conseguir sua licença ele viaja até os Estados Unidos, e aos poucos você vai ligando os pontos do que, de fato, está para acontecer, principalmente pela ordem cronológica dos acontecimentos se aproximar de setembro de 2001.


Por ter um relacionamento amoroso como base, era essencial que no filme houvesse uma boa química entre os personagens, e aqui isso não faltou, principalmente pela ótima atuação dos atores principais. É muito interessante acompanhar a escalada do relacionamento e a sólida construção destas duas duas partes, sobretudo quando chegamos ao poderoso final. Uma aula de direção da Anne Zohra Berrached, em um dos trabalhos mais impactantes deste ano.

quarta-feira, 11 de outubro de 2023

Crítica: Ângela (2023)


É uma verdadeira lástima quando um filme possui um potencial enorme em mãos para apresentar uma ideia e acaba jogando tudo fora. É o caso de Ângela, dirigido por Hugo Prata (de Elis), que mostra um recorte na vida da socialite brasileira Ângela Diniz, assassinada pelo companheiro na sua casa em Armação dos Búzios no ano de 1976. A tentativa de usar a história deste crime que chocou o Brasil para trazer à tona um tema atual e importante como o feminicídio infelizmente acaba sendo vazia e apelativa, o que deixa em cheque a verdadeira intenção do diretor por trás de tudo isso.


O roteiro inicia em um período conturbado na vida de Ângela (Isis Valverde), onde ela acabou de perder a guarda dos filhos e embarcou em um relacionamento com Raul "Doca Street" (Gabriel Braga Nunes), após conhecê-lo em uma social na mansão da sua, até então, esposa. Não há nenhuma explicação sobre o passado de Ângela em Minas Gerais, sobre o porquê dela ser chamada de "Pantera Mineira" pelo repórter que cobre o evento, sobre a perda da guarda dos filhos, e muito menos sobre esse relacionamento que se cria abruptamente entre ela e Raul. Tudo é apenas jogado, de forma superficial, esperando que o público já conheça de antemão quem foi a socialite e o que ela representou para a época.

A seguir, já somos levados à casa em Armação de Búzios que Ângela acabou de adquirir (como, por que, para quê?), e que passou a dividir com o novo namorado. Assim como na primeira parte, aqui também é tudo muito raso, frio e distante, não existindo a mínima preocupação em fazer com que o público crie empatia pela personagem. Ângela acaba sendo mostrada até mesmo como uma pessoa arrogante e fechada, como na sua relação inicial com a empregada (Alice Carvalho). Sua vida é basicamente resumida nessa relação confusa com Raul, além dela ser excessivamente sexualizada em cenas de extremo mal gosto. Não há, em nenhum momento, algo que justifique em tela a influência que ela possuía na época, o que mostra ainda mais como essa personagem foi mal explorada.

Após a fatídica cena do assassinato de Ângela, eu esperava que o filme tentasse ao menos mostrar as consequências do ato e usasse isso para finalmente abordar o quanto a imprensa e a justiça na época foram misóginas ao tratar o caso, mas na verdade o que se vê aqui são apenas algumas legendas finais explicando o que aconteceu e nada mais do que isso. O cineasta perde aqui uma grande chance de mostrar o julgamento de Raul e trazer à tona a discussão sobre o machismo estrutural, já que na vida real ele ganhou uma pena levíssima e chegou a ser considerado um "herói" por boa parte da sociedade, sob o argumento de que teria agido em "legítima defesa da honra".  Sua pena só foi aumentada após vários protestos feministas, que usavam o famoso slogan "Quem Ama não Mata". Pois sim, nada disso foi mostrado, sendo apenas pincelado nos créditos finais. Um grande desperdício.


Sendo assim, o que poderia ser um filme para abraçar a causa de tantas mulheres que sofrem violência doméstica e tem fins trágicos como o de Ângela, acaba sendo transformado apenas em um entretenimento erroneamente picante e insosso. É, sem dúvida alguma, uma das grandes decepções do ano no cinema brasileiro.

domingo, 8 de outubro de 2023

Crítica: Coração de Neon (2023)


Febre nos anos 1990, os carros de telemensagens se espalharam rapidamente pelo Brasil inteiro, animando milhares de pessoas em datas especiais para elas. Hoje em dia isso virou raridade e até mesmo motivo de piada entre amigos, que "ameaçam" enviar um destes veículos para fazer a outra pessoa passar vergonha, mas apesar do sumiço eles ainda existem por aí. A história de Coração de Neon acompanha um pai e um filho que juntos mantém esta tradição pelas ruas do bairro Boqueirão, em Curitiba, mas infelizmente derrapa em um roteiro absurdamente mal conduzido.


Fernando (Lucas Estevan) e seu pai Laudércio (Paulo Matos) ganham a vida a bordo de um velho Chevette, todo enfeitado com balões, corações e luzes neon, no maior estilo "lata velha do Luciano Huck", que carinhosamente é apelidado de "Coração de Neon". Aos trancos e barrancos eles vão utilizando o veículo para levar alegria às pessoas que recebem telemensagens de terceiros, até que uma tragédia acaba envolvendo Laudércio, deixando o filho sozinho nos rumos do negócio e da casa.

Primeiramente, é preciso dizer que apesar de enxergar as boas intenções do filme, a direção é irritantemente amadora. Foi como se, em diversos momentos, eu estivesse assistindo a um filme feito por estudantes de um colégio primário, que estavam tendo contato pela primeira vez com uma câmera e sem noção alguma do que estavam fazendo. Algumas cenas beiram o inadmissível, e os diálogos são de uma pobreza realmente inexplicável. A tentativa de forçar o sotaque curitibano, e principalmente a palavra "piá", beira o constrangedor, assim como as tomadas musicais em que o ator/diretor tenta mostrar sua (in)aptidão musical. Tudo horroroso, sem propósito e sem coesão alguma. Depois de já ter perdido a paciência completamente com tudo que estava vendo, ainda dei uma chance e fui até o fim, esperando que pelo menos o arco de luto do personagem principal e sua maneira de lidar com as transformações drásticas em sua vida ganhassem uma abordagem mais interessante, mas o filme foi ficando cada vez pior.

Absolutamente nada no roteiro funciona, e até mesmo a suposta "investigação" que Fernando faz sobre o causador da morte do pai é de uma superficialidade vergonhosa. A adição de um relacionamento amoroso entre Fernando e Andressa (Ana de Ferro), a mulher que de alguma forma foi algoz da morte de Laudércio, foi a gota d'água de absurdos atrás de absurdos. Arrisco a dizer que este foi o pior filme dentre todos que assisti neste ano de 2023.

sexta-feira, 6 de outubro de 2023

Crítica: When You Finish Saving the World (2023)


Jesse Eisenberg já possui uma carreira de relativo sucesso como ator, e agora no alto de seus 39 anos decidiu se arriscar também na direção com "When You Finish Saving the World", um drama morno mas bastante sincero que mergulha nas relações familiares contemporâneas e no distanciamento emocional que é cada vez mais comum dentro delas.


A trama nos coloca dentro de uma família cuja comunicação parece simplesmente não existir dentro das quatro paredes, enquanto ironicamente todos buscam aprovação do mundo exterior. Ziggy (Finn Wolfhard), por exemplo, vive fechado em seu quarto, onde toca músicas que ele mesmo compõe para pessoas do mundo todo através de uma plataforma chamada Hi Hat, com o nome artístico de TheRealZiggyTiger. Ali ele se sente querido e amado pelos "fãs" que o apoiam e lhe dão boas gorjetas, o que faz ele sonhar ainda mais alto com uma futura carreira na música.

Sua mãe, Evelyn (Julianne Moore), trabalha em um lar que abriga mulheres vítimas de violência doméstica, mas apesar de cuidar dessas pessoas em situação de vulnerabilidade e até mesmo salvar a vida delas em muitas ocasiões, parece tratar tudo com certa frieza, fugindo daquela figura ativista que luta por uma causa digna e um "mundo melhor". Este comportamento de distanciamento emocional da personagem também é refletido em casa, onde tudo parece muito hostil. O filho xinga os pais, que passivos apenas acatam suas palavras sem confrontar, criando um filho cada vez mais mimado e irrepreensível. O pai, aliás, não tem nenhum desenvolvimento, sendo quase um mero figurante apático e indiferente neste ambiente confuso.

O roteiro logo tenta desvirtuar essa imagem que ele mesmo cria de Ziggy, quando o garoto faz amizade com Lila (Alisha Boe) e passa a frequentar reuniões políticas de estudantes, mostrando um lado seu que até então era desconhecido. A mãe, por outro lado, se apega ao filho de uma das mulheres que acolheu, Kyle (Billy Brik), como se buscasse preencher a lacuna que a relação com o filho deixa na sua vida, incentivando o jovem desconhecido a entrar para a faculdade e ter o futuro que ela sempre sonhou para o seu filho.


Apesar do ritmo cadenciado, o grande acerto do filme são as atuações de Moore e Wolfhard, que conseguem ser muito seguros mesmo na pele de personagens extremamente intragáveis. No fim das contas, When You Finish Saving the World é um retrato fidedigno deste distanciamento que há dentro das famílias, que só se encontram na mesa para comer, trocam poucas palavras de afeto e não se importam em saber o que o outro esta pensando e fazendo da vida. Um sintoma cada vez mais comum, infelizmente.

quarta-feira, 4 de outubro de 2023

Crítica: Som da Liberdade (2023)


Me surpreendi dias atrás quando vi um vídeo onde muitas pessoas cantavam louvor em um corredor de shopping enquanto se encaminhavam ao cinema. Independente de qualquer ideologia, credo ou posição política, é inegável que Som da Liberdade (Sound of Freedom) vem levando uma multidão aos cinemas brasileiros, ainda que os métodos que fizeram isso acontecer sejam discutíveis. E esse fenômeno pode ser facilmente explicado: a publicidade cristã em torno dele tem sido algo jamais visto, e acontece desde o lançamento do filme nos Estados Unidos, onde foi abraçado pela extrema-direita do país de maneira enérgica. Polêmicas à parte, o fato é que o roteiro aborda, sim, um tema repulsivo e importante, mas a maneira que o faz acaba soando um tanto quanto superficial.


O filme se baseia em uma história real (ou pelo menos promete isso), e conta a história do ex-agente do governo americano Tim Ballard (Jim Caviezel), que monta uma ONG para investigar e prender criminosos envolvidos com o tráfico sexual de crianças na América Latina. O tema, por si só, já seria suficiente para mexer com o emocional do espectador, já que fala de uma das práticas mais abomináveis que o ser humano é capaz de cometer, mas o filme faz questão de utilizar isso da forma mais forçada possível, como se precisasse. Veja bem, não estou falando que um tema como este deveria ser tratado com leveza, mas a tentativa de fazer o público se emocionar a todo custo é visível até mesmo na trilha sonora, colocada incisivamente para ditar as emoções de quem assiste.

Outro ponto que costuma ser incômodo neste tipo de filme enlatado é o famoso "homem branco salvador", aqui na figura do protagonista. É como se sempre existisse um norte-americano pronto para restaurar a ordem no mundo e acabar com os problemas sozinho, quase como se fosse um "justiceiro do bem". Ele se debulha em lágrimas ao dizer que faz de tudo para "salvar os filhos de Deus", e todos os recortes em que ele aparece são detalhadamente trabalhados para fazer dele esta figura quase sobre humana, perfeita. Outro problema do roteiro é apontar os problemas mas não apresentar as soluções. Afinal, não vemos o combate a pedofilia de uma maneira crítica, real e palpável, mas como uma ação heroica de um indivíduo só, e a mensagem que deveria ser de atenção a uma causa, acaba sendo apenas alarmista. Para não dizer que só há defeitos, as cenas de ação durante a perseguição de Ballard ao grupo de criminosos no meio da selva colombiana são bem construídas e relativamente criam o clima de tensão necessário para a trama.


Em resumo, trata-se de um filme ruim em sua essência, que não consegue sustentar o discurso que defende e apela demais para presepadas narrativas, e diálogos rasos. Ao ver a extrema-direita abraçar o filme e declarar que é um "filme que a esquerda odiou", fica ainda mais evidente que a proposta por trás era muito mais política do que qualquer outra coisa, esvaziando a temática que deveria estar acima de tudo: a vida das crianças. Utilizado como massa de manobra para levantar bandeiras e jogar a culpa em teorias conspiratórias absurdas, o filme acabou ganhando notoriedade mais pelas polêmicas envolvidas em torno de si do que pela qualidade, que não tem. E se você tem dúvidas que hoje em dia é isso que dá ibope, seja no cinema seja ou em qualquer outro tipo de entretenimento, as salas cheias estão aí para comprovar.

terça-feira, 3 de outubro de 2023

Crítica: Mona Lisa e a Lua de Sangue (2023)


A cineasta Ana Lily Amirpour chamou muita atenção em 2014 quando lançou Garota Sombria Caminha pela Noite, seu longa de estreia que acompanhava uma vampira solitária que andava pelas ruas de uma cidade fictícia do Irã, e que com o passar dos anos foi sendo considerado um dos filmes de terror independente mais impactantes da década. Quase dez anos depois ela traz novamente uma personagem solitária que também vaga pela noite, porém com uma roupagem completamente diferente, em mais uma história original que já nasce fadada a também se tornar um jovem clássico do gênero.

 

Mona Lisa e a Lua de Sangue (Mona Lisa and the Blood Moon) gira em torno de Mona Lisa Lee (Jeon Jong-seo), uma garota com poderes paranormais que consegue fugir de uma instituição psiquiátrica onde estava internada há mais de dez anos. Neste período encarcerada, ela sofreu inúmeros abusos físicos por parte dos funcionários da instituição, e que acabou criando não somente um trauma irremediável como também perdeu completamente o discernimento. Vagando pelas ruas de New Orleans, ela vai criando relações no mínimo curiosas pelo caminho.

Completamente sem noção de como agir em situações normais do ser humano, e principalmente desconhecendo conceitos básicos de certo e errado, Mona Lisa vai agindo do jeito que pode para se manter livre, inclusive ferindo quem tentar se meter em seu caminho, como a própria polícia. Tudo isso até ser acolhida pela stripper Bonnie (Kate Hudson) em sua casa, que tem um filho pequeno rebelde e inquieto, Charlie (Evan Whitten), que logo faz uma amizade incomum com a garota, por ambos sentirem que possuem em comum o fato de serem "descolados" da realidade. Nesta relação "familiar", Mona Lisa vai finalmente aprender um pouco de como nós humanos agimos e pensamos, e por ter o poder psíquico de manipular qualquer pessoa a fazer o que ela quer, acaba sendo usada por Bonnie para cometer delitos e ganhar dinheiro com isso.


Se no filme de 2014 a diretora usou o preto e branco, aqui ela usa e abusa da fotografia em Neon, usando muitas cores vivas, tanto nos cenários como nos figurinos. A trilha sonora também é bem marcante, e a atuação da Jeon Jong-seo é hipnotizante (perdão pelo trocadilho). Gostei muito do tom cômico do filme, principalmente nas cenas em que a protagonista usa seus poderes e as situações engraçadas que isso acarreta. Leve e divertido, Mona Lisa e a Lua de Sangue me surpreendeu bastante, pois confesso que eu não esperava nada dele antes de apertar o play.