quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

Crítica: Não Há Mal Algum (2019)


Vencedor do Festival de Berlim de 2020, Não Há Mal Algum (There is no Evil), do diretor Mohammad Rasoulof, é mais um exemplar do ótimo cinema iraniano que vem sendo um dos mais expressivos deste século 21.



O enredo conta quatro histórias de personagens distintos, que tem por trás uma ligação: todos são responsáveis, de alguma maneira, pela execução das penas de morte no país. Já foram feitos vários filmes sobre o tema da pena de morte, mas eu verdadeiramente não lembro de algum que tenha abordado a vida e os sentimentos de quem precisa fazer o trabalho sujo de apertar o botão. E é interessante analisar como cada um deles reage a essa tarefa, que na maioria das vezes é imposta sem que eles possam dizer não. O peso que carregam de ter que tirar uma vida não é algo fácil de carregar, e nem todos lidam bem com isso.

O filme faz uma dura crítica ao sistema de execução do Irã, e traz à tona discussões necessárias sobre o assunto. Por exemplo, o que difere o acusado de assassinato que está sendo executado do seu executor, se não uma lei arbitrária escrita por homens? Sem contar que, muitas vezes, são inocentes e presos políticos que estão na fila da execução, sem terem passado por um julgamento justo e imparcial.



Não Há Mal Algum é, no final das contas, um filme extremamente corajoso, tanto pelo que se propõe a debater quanto pela dificuldade encontrada para ser realizado, já que o diretor estava proibido de filmar no país e precisou fazer tudo às escondidas.


terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

Crítica: Judas e o Messias Negro (2020)


Uma das melhores sensações que existe é a de terminar um filme e ficar olhando os créditos finais totalmente impactado por tudo que acabou de ver. Fazia alguns meses que isso não me ocorria, e aconteceu hoje ao terminar de assistir Judas e o Messias Negro, filme do diretor Shaka King.



Baseado numa história real, o enredo se passa em 1968 e começa acompanhando William O'Neal (Lakeith Stanfield), um ladrão de carros que usa uma estratégia peculiar para atacar suas vítimas: se passar por um agente do FBI. Um dia ele acaba sendo capturado pelo próprio FBI, indo parar nas mãos do agente Roy Mitchell (Jesse Plemons), que lhe dá duas opções: ir para a cadeia por alguns anos ou realizar uma missão como infiltrado no partido dos Panteras Negras em troca da sua liberdade.

Na mesma época, o presidente dos Panteras Negras em Illinois era Fred Hampton (Daniel Kaluuya), um jovem de 21 anos com ideais muito fortes e discursos efusivos. Aos poucos, William vai conquistando seu espaço no grupo e ganhando a confiança do próprio presidente, para quem ele passa a dirigir. Embora o roteiro foque nessa relação entre Fred e William, que como o nome do filme já sugere termina em uma tragédia bíblica, o diretor se preocupa em abordar muitas outras questões. A principal delas talvez seja a forma como o governo dos EUA tratava na época qualquer forma de resistência que surgia, com extrema violência e repressão. É interessante analisar também, que por mais odiosa que tenha sido a atitude de William de aceitar fazer parte desse plano, ele na verdade não passou de mais uma vítima do governo estadunidense, e apenas mais uma peça nesse jogo sujo.



As atuações são fantásticas, com destaque para Kaluuya e Stanfield. O primeiro mostra mais uma vez o porque de ser considerado um dos melhores atores atuais, apresentando um personagem intenso e que é responsável pelas falas mais impactantes do longa (e não são poucas). Já Stanfield consegue transparecer no rosto o quanto seu personagem foi ficando cada vez mais incomodado de estar naquela situação, e o resultado final é fantástico. Trata-se, com certeza, de um dos melhores filmes do ano, não só pela qualidade técnica mas pela força que tem.


Crítica: Nós Duas (2020)


Representante da França no Oscar 2021 de melhor filme em língua estrangeira, Nós Duas (Deux) é um drama emocionante sobre duas mulheres fortes que precisam esconder seus sentimentos numa sociedade que ainda é coberta de preconceitos e tabus.


Madeleine (Martine Chevallier) e Nina (Barbara Sukowa) são vizinhas, e mantém um relacionamento amoroso em segredo há mais de uma década. Para os familiares elas são apenas grandes amigas, que na solidão da terceira idade fazem companhia uma à outra. Cansadas de viver essa "mentira", elas planejam se mudar para viverem juntas na Itália, porém um infortúnio acaba deixando Madeleine numa cadeira de rodas, tirando totalmente sua independência e dificultando a realização desse sonho.

A primeira parte do filme foca principalmente em Madeleine e na sua relação com a família, que ainda a julga por, aparentemente, não ter sido tão amorosa quanto deveria com o falecido pai de seus filhos. A todo momento "Mado" tenta contar aos filhos sobre a mudança para outro país, mas sempre acaba sendo silenciada por assuntos de "maior relevância" para eles, sem contar, obviamente, do medo que sente da reação deles ao assunto.
 
Na segunda parte, com Madeleine já debilitada por um AVC, o foco muda para Nina, que tenta manter contato a todo custo com o seu grande amor, que agora está sendo acompanhada 24h por dia por uma cuidadora. Gostei muito da forma que o diretor Fillippo Meneghetti aborda essa parte, usando até mesmo de uma certa comicidade nas partes onde Nina tenta se esconder da cuidadora para ficar perto de Madeleine. Logo, no entanto, o cômico vira drama, já que é impossível não nos colocarmos na pele dela e de alguém que enfrenta tudo e todos só para estar próximo de quem ama.

 

Amor e libido na terceira idade ainda são de fato um tabu, e quando se fala na orientação sexual das personagens, esse tabu se torna ainda mais forte. Com ótimas atuações das atrizes e um bom desenvolvimento do enredo, Nós Duas me surpreendeu positivamente e já é para mim um dos melhores filmes do ano.
 

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2021

Crítica: A Febre (2020)


Grande vencedor do último Festival de Brasília, A Febre marca a estreia da diretora carioca Maya Da-Rin no mundo dos longa-metragens. Filmado quase inteiramente em um dialeto indígena da Amazônia, o enredo se passa em Manaus e acompanha Justino (Regis Murupi), um indígena que deixou sua aldeia há anos para viver na cidade grande, e hoje trabalha como segurança no porto de cargas da capital amazonense.


 

Desde a morte de sua esposa, Justino vive apenas com sua filha Vanessa (Rosa Peixoto), que é enfermeira em um posto de saúde da região e acaba de ser aprovada para estudar medicina na Universidade de Brasília. Essa saída da filha de casa para um lugar distante deixa Justino um pouco perdido quanto ao seu futuro, mesmo que esteja feliz pela filha conseguir realizar um grande sonho.

O longa é um pequeno retrato de como vivem os povos indígenas nos dias de hoje, inseridos na civilização "branca" mas tentando manter suas tradições e sua cultura vivas, mesmo debaixo de muito preconceito. Alguns momentos me marcaram muito, como a cena em que um colega de Justino chama os índios que vivem em aldeias de "índios de verdade", praticamente invalidando que Justino seja um deles pelo fato dele viver na cidade. Até mesmo familiares de Justino tem um pouco desta visão, de que ao viver na zona urbana ele deixou de fazer parte do seu povo. Essa perda de identidade também é algo que fere Justino e o deixa bastante confuso quanto ao que ele é de verdade.


 
Apesar da surpreendente qualidade técnica, as atuações do filme me pareceram um pouco amadoras. Porém, entendo que talvez seja algo proposital e consciente da direção, para dar um ar mais documental para a obra. É importante frisar que numa época em que os indígenas vem perdendo cada vez mais os seus direitos e suas terras, A Febre se torna um filme necessário por trazer questões importantes a respeito do assunto. Qual é o espaço que o índio tem hoje na nossa realidade, além de viver de subempregos e à margem da sociedade? A gente precisa urgente de mais políticas públicas voltadas a eles, e essa é a lição que fica no final de tudo.
 

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

Crítica: Adam (2020)


Representante do Marrocos no último Oscar de melhor filme em língua estrangeira, Adam é um filme potente e sensível sobre relações humanas e mulheres fortes em meio a uma cultura machista e que parece ter parado no tempo.

 

Na trama, Samia (Nisrin Erradi) está grávida, sem teto, e procurando desesperadamente por um emprego que possa também servir como um abrigo. Batendo de porta em porta, ela se oferece para trabalhar como empregada, mas só recebe não atrás de não. Após muita insistência, ela é acolhida por Abla (Lubna Azabal), que tem uma filha e comanda sozinha uma padaria em Casablanca.


Abla é uma mulher rígida, fechada e de poucas palavras, que carrega consigo um semblante de tristeza desde a morte do marido alguns anos atrás. Aos poucos, no entanto, com seu jeito jovial e conversador, Samia vai conseguindo fazer com que ela passe a se abrir mais, e consequentemente vamos descobrindo coisas de seu passado e sentimentos que permeiam sua cabeça e que a impedem de tentar ser feliz novamente.



A diretora estreante Maryam Touzani desenvolve aqui uma trama muito humana e delicada. Ao mesmo tempo que Samia ajuda Abla a se abrir novamente para a vida, Abla a ajuda a entender melhor o papel de uma mãe, principalmente uma mãe solteira, em uma sociedade que ainda não enxerga isso com bons olhos. Com personagens tão complexas e cheias de camadas, o filme não poderia deixar de apresentar boas atuações, sobretudo de Lubna Azabal, que já havia me conquistado em Incêndios (2010). Impossível não se emocionar com a jornada dessas duas mulheres que lutam, nas coisas mais simples, por uma vida digna.