terça-feira, 28 de fevereiro de 2023

Crítica: Batem à Porta (2022)


Em geral, posso dizer que não sou fã da filmografia de M. Night Shyamalan, com exceção das obviedades O Sexto Sentido e Sinais, mas é curioso como ainda assim sempre paro para admirar suas obras, até porque por mais que eu não goste do resultado final, elas sempre acabam tendo algo interessante a dizer nas entrelinhas. Em Batem à Porta (Knock at the Cabin), no entanto, faltou até mesmo isso.


O filme inicia com uma doce menininha, Wen (Kristen Cui), que está caçando gafanhotos no quintal de uma cabana. Ela está ali passando férias junto com seus pais, Éric (Jonathan Groff) e Andrew (Ben Aldridge), mas a tranquilidade logo é cortada com a chegada de Leonard (Dave Bautista), que se aproxima sorrateiramente e tenta puxar conversa com ela de forma amigável. Ao perceber que ele está acompanhado de outras três pessoas, e que as intenções não parecem ser as melhores, ela corre para dentro de casa para avisar os pais, que trancam a cabana e tentam achar uma maneira de fugir.

De uma maneira simplória, podemos dizer que se trata de um clássico filme de invasores chegando a uma propriedade para fazer mal a quem está lá, mas não sabemos exatamente quem eles são, o que querem, e muito menos o porquê desse casal ter sido o escolhido. E enquanto isso não é desvendado, Shyamalan consegue criar um clima muito interessante de mistério e tensão. Finalmente aos poucos vamos descobrindo a motivação dos quatro invasores, e que isso tem a ver com a chegada de um provável apocalipse. Para evitar esse "fim do mundo", o casal deve escolher qual deles deve ser sacrificado para salvar a humanidade, e em cada negação, alguma tragédia aparentemente ocorre no mundo, como um terremoto ou um vírus legal.

Se no início o enredo prendeu minha atenção acerca da chegada desses indivíduos, logo comecei a perder o interesse na medida que os personagens foram sendo aprofundados, pois não comprei a ideia de nenhum deles. O grande mistério do filme é saber se esses quatro "cavaleiros do apocalipse" estão falando a verdade ou se não passam apenas de lunáticos movidos por algum culto religioso. E assim como o espectador, o casal também não sabe no que acreditar.


O filme tem boas atuações, com destaque para Jonathan Groff, Ben Aldridge e Dave Bautista. A menininha por sua vez começa bem, mas é uma pena que sua personagem fique totalmente obsoleta no decorrer da trama. Algumas escolhas narrativas de Shyamalan também parecem meio perdidas, como os flashbacks que mostram momentos cruciais na vida do casal Éric e Andrew antes deles irem passar as férias na cabana, e que não possuem força suficiente para se criar uma empatia por eles. Aliás, o roteiro até tenta pincelar sobre um possível crime de ódio por se tratar de um casal homossexual, mas isso também não é muito aprofundado e fica solto no ar. Uma pena que o material tenha sido tão descuidado pelo diretor já que o início parecia promissor, mas dessa vez não tem como defender.


domingo, 26 de fevereiro de 2023

Crítica: A Baleia (2022)


Darren Aronofsky é um diretor bastante divisivo, e eu mesmo posso dizer que tenho uma relação de amor e ódio com suas obras. Gosto muito de O Lutador (2008) e considero Réquiem para um Sonho (2000) uma obra-prima, mas em contrapartida detestei alguns de seus filmes mais recentes como Cisne Negro (2010) e Mãe! (2017). Por conta disso, tentei não criar muita expectativa antes de assistir A Baleia (The Whale), mas desta vez já adianto: apesar de algumas ressalvas, eu gostei bastante do que vi.


O filme acompanha uma semana na vida de Charlie (Brendon Fraser), um homem obeso que pesa mais de 250 quilos e vive recluso em seu pequeno apartamento, onde ganha a vida dando aulas online de redação. De cara já percebemos que ele sente muita vergonha do próprio corpo, já que sequer liga a câmera na hora das aulas, dando a desculpa para os alunos de que ela está estragada. Ele também evita encontrar o entregador de comida, e obviamente não gosta de receber visitas. A única pessoa que o acompanha diariamente é Liz (Hong Chau), que leva mantimentos e o ajuda fazendo as tarefas básicas de casa, já que a mobilidade dele está extremamente reduzida. Em um primeiro momento ela até parece ser alguém contratada para o serviço, mas pouco a pouco vamos entendendo o grau de parentesco que existe entre eles, na medida em que o passado de Charlie começa a vir à tona.

Alguns anos atrás, Charlie largou sua esposa e sua filha de oito anos para viver com um ex-aluno, que um tempo depois veio a falecer. Desde sua morte, Charlie nunca mais foi o mesmo, tendo se afundado em uma depressão profunda que o levou a condição de obesidade. Sua filha (Sadie Sink), quando o reencontra depois de tanto tempo, nem o reconhece, e sente um misto de desprezo por ele ter se deixado chegar nessa situação e raiva, por ele ter abandonado ela pequena. Essa relação conflituosa vai ganhando forma quando, em troca da companhia dela durante o dia, ele a oferece dinheiro, e também promete fazer seus deveres de casa.

 
Poucos personagens aparecem além do trio principal e da ex-mulher de Charlie (Samantha Morton). Um deles é um missionário evangélico, Thomas (Ty Simpkins), que aparece na casa de Charlie e decidi que, de alguma maneira, ele precisa salvar a alma dele. Confesso que esse personagem e seu arco narrativo me pareceram um tanto quanto desconectados com o restante da trama, assim como também não gostei do desenvolvimento da personagem da filha, que é mostrada quase como um "monstro". Ela tem atitudes odiáveis o filme inteiro, algumas que inclusive beiram ao completo exagero, para então chegar no final e do nada resolver ter empatia. Isso definitivamente não foi nada verossímil.

Na parte técnica, é interessante analisar como Aronofsky usa uma tela 4x3 durante todo o filme, o que ajuda a criar um ambiente claustrofóbico e retrata ainda mais o sentimento de angústia do personagem. São espaços pequenos, escuros e melancólicos, assim como é a vida de Charlie. Mas é curioso também como apesar de todo o trauma e sofrimento, o personagem ainda continua com o coração puro, vendo bondade no mundo e sempre tendo uma visão otimista das coisas. A atuação do Brendon Fraser é, de fato, magistral, mas destaco também Hong Chau e Samantha Morton. Já Sadie Sink não me convenceu, mas creio que isso também seja culpa da sua personagem mal construída.
 
 
A Baleia (por sinal, o nome é dado por conta do livro que o personagem trabalha em suas aulas = Moby Dick) vem sofrendo duras críticas e está sendo até mesmo apontado como "gordofóbico", mas na minha visão foi totalmente o contrário disto, e na minha compreensão o tema da obesidade foi abordado com muito respeito. A obesidade mórbida, como a que o personagem possui, infelizmente é uma situação grave e complicada, que leva a muitas outras doenças, e o filme não foge de tratar essa questão como deve ser tratada. Ainda assim, é certo que o filme ainda irá render boas discussões nas próximas semanas, sobretudo com a chegada do Oscar e a boa possibilidade de Fraser vencer como melhor ator.
 

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2023

Crítica: Contratempos (2022)


A realidade, quando mostrada na tela, muitas vezes pode ser mais angustiante do que um enredo de terror. Com uma estrutura que me lembrou muito os filmes do Ken Loach ou dos irmãos Dardenne, Contratempos (À Plein Temps), do francês Éric Gravel, acompanha a rotina desgastante de uma mulher que tem dois filhos pequenos e precisa lutar diariamente para cuidar deles e ainda manter seu emprego em um hotel cinco estrelas de Paris.

Julie (Laure Calamy) acorda todo dia mais cedo do que o normal para poder arrumar as crianças e deixá-las com a vizinha, que cuida delas durante o dia e também fica responsável por levá-las para a escola. Por morar em um vilarejo distante da capital francesa, ela precisa enfrentar o transporte público lotado por um longo período, o que faz sua jornada ser ainda mais cansativa. Para piorar, a região metropolitana de Paris está vivendo um caos por conta de uma greve geral contra o aumento da carga horária dos trabalhadores, o que ironicamente dificulta a vida de quem mais precisa de locomoção para ir trabalhar. No meio disso tudo, Julie também está tentando um novo emprego, que promete pagar melhor e ter mais dinamismo nos horários, o que permitiria ela passar mais tempo com os filhos.


O ritmo do filme é extremamente frenético, o que passa ainda mais a ideia de sufocamento que Julie enfrenta diariamente, desde a hora que o despertador toca pela manhã até a hora em que chega em casa, já tarde da noite. O trabalho de construção da personagem é elogiável, é muito se deve à excelente atuação de Laure Calamy, premiada como melhor atriz em Veneza. Ela é o retrato de milhões de pessoas que saem todo dia de casa para trabalhar e que precisam tirar forças de onde menos se espera para enfrentar todas as dificuldades que aparecem pelo caminho. E o que nos resta é apenas torcer para que, pelo menos no filme, isso tenha alguma recompensa no final.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2023

Crítica: Bruno Reidal, Confissões de um Assassino (2022)


Baseado em um caso real ocorrido em Cantal, na França, no ano de 1905, "Bruno Reidal: Confissões de um Assassino" conta a história do personagem que dá nome ao filme, interpretado por Dimitri Doré, que na primeira cena do filme vai até a delegacia para confessar um crime horrendo que cometeu contra outro jovem do seu vilarejo.

Para tentar entender a motivação para o crime e desvendar a mente do assassino, três médicos ordenam que Bruno escreva suas memórias enquanto está na prisão, reconstituindo com detalhes sua infância e adolescência. Com isso, decidirão se ele deverá continuar como um preso comum ou se deverá ser internado em uma clínica psiquiátrica. Através dos relatos escritos pelo jovem, eles vão identificando as anomalias no comportamento do acusado e os eventos específicos que foram moldando sua forma violenta de ser, e vamos acompanhando toda essa reconstituição através de flashbacks.

Em uma família de mais cinco irmãos, Bruno desde cedo precisou trabalhar para ajudar no trato dos animais e na colheita, e a perda do pai aos 10 anos, única fonte de afeto que ele teve na vida, ainda que pouco, foi algo que pesou demais no seu comportamento. Seus primeiros pensamentos sobre a morte começaram quando ele via os porcos sendo mortos no quintal de casa, e o impulso foi crescendo quando ele se tornou bolsista em um seminário e passou a sofrer descriminação por ser o único aluno de classe baixa no local. Diante disso, ele imaginava a morte de seus colegas com requintes de crueldade, mas nunca havia chegado às vias de fato.

Na medida em que foi amadurecendo, uma série de novas situações violentas foram aumentando ainda mais esse seu desejo mórbido. Mais do que isso, foi misturando o desejo de matar com um incontrolável desejo sexual. Para contar a história, o diretor usou os próprios escritos de Bruno e os laudos médicos da época, e o filme acaba sendo uma viagem imersiva muito intensa através da mente de um assassino. E por ser extremamente realista, possui cenas bem pesadas, como a cena em que Bruno sofre um abuso sexual na infância ou a própria cena do assassinato que ele cometeu.


Muito mais que um filme biográfico ou um filme de crime real, é uma verdadeira anatomia de uma mente psicopata. O diretor indaga até quando o contexto social e os traumas afetam a mente de alguém na juventude, ao ponto da pessoa adquirir estes traços de psicopatia, e o quanto disso já vem de berço e da própria personalidade do assassino quando criança. É fascinante acompanhar essa escalada da violência na cabeça de Bruno, mas também amedrontador.
 

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2023

Crítica: Joyland (2022)


O Paquistão ainda é um país extremamente conservador, principalmente quando se fala em direito das mulheres e na causa LGBT. Para se ter uma ideia, lá a homossexualidade ainda é ilegal e pode ser punível com prisão, em pleno 2023. E em relação às mulheres, os direitos são extremamente limitados pelo fundamentalismo religioso, como o direito de ir e vir, a decisão sobre o casamento, e até mesmo sobre a própria aparência. Dito isso, fica ainda mais surpreendente o fato de Joyland ter sido o escolhido para representar o país no Oscar de melhor filme internacional este ano, já que o filme critica justamente o preconceito de gênero e o machismo existente nesse sistema patriarcal. E vendo por este lado, apesar de não ter ficado entre os cinco finalistas do prêmio, ele já pode ser considerado um vencedor.


Com uma direção firme do estreante Saim Sadiq, a trama acompanha Haider (Ali Junejo), um homem que está desempregado e vive com a esposa Mumtaz (Rasti Farooq) na casa do pai. Ela trabalha como maquiadora e ama o que faz, e seu sucesso na carreira tem lhe permitido guardar dinheiro e sonhar com uma vida mais confortável. Porém, cansado de ser julgado por ser sustentado pela mulher, o que não é bem visto pela sociedade e muito menos pela própria família, Haider vai atrás de um emprego, e no desespero acaba aceitando uma proposta para trabalhar como dançarino em um teatro da cidade, que é conhecido pelas apresentações de danças eróticas.

No mesmo local, Biba (Alina Khan) sente na pele todo o preconceito do público e dos próprios donos do teatro por ser uma mulher trans. Eles a colocam em horários alternativos e muitas vezes forjam problemas técnicos para interromper seu show no meio. Além disso, o público em sua grande maioria deixa o teatro na hora em que ela aparece no palco. Na tentativa de fazer uma apresentação que prenda o público, ela chama vários dançarinos homens, e entre eles está Haider, que cai de paraquedas no grupo mesmo sem nunca ter dançado na vida. A partir de então, aos poucos, a relação de Haider e Biba vai se intensificando para além da relação profissional.

Apesar de pincelar algumas situações a respeito do preconceito contra pessoas transgênero, considero que a principal crítica do filme na verdade é contra o patriarcado que existe dentro das famílias muçulmanas. Isso fica bem nítido quando Haider consegue o emprego e a esposa automaticamente se vê obrigada a largar a carreira de maquiadora, que fazia tão bem para ela, porque agora precisam dela o tempo todo em casa para ajudar na criação das crianças da família. Crianças que, por sua vez, não são nem mesmo filhos dela, mas da cunhada. Sem ter poder nenhum de escolha, a ela só resta acatar a decisão, e aceitar largar o sonho para viver uma vida que não queria, em troca deste "bem estar familiar".


O ponto positivo do filme é a atuação visceral de Alina Khan como Biba, e o fato dos personagens serem muito humanos, já que praticamente todos eles tem atitudes bem questionáveis e controversas durante a exibição. Apesar de ser um filme que aborda temas pesados, ele também possui momentos cômicos, como a cena em que Haider dirige sua motocicleta pelas ruas da cidade com um cartaz gigantesco contendo a foto de Biba. Por fim, Joyland é um filme muito maduro que fala sobre relações, sobre pertencimento, mas principalmente sobre o sufocamento de se sentir anulado por costumes e tradições ultrapassadas. Não é à toa que o filme venceu o prêmio do júri em Cannes na mostra "Un Certain Regard", que premia diretores estreantes, pois é realmente impressionante o trabalho de Sadiq na condução.


sexta-feira, 10 de fevereiro de 2023

Crítica: To Leslie (2022)


A indicação de Andrea Riseborough ao Oscar de melhor atriz pegou a todos de surpresa e gerou uma grande polêmica por conta da forma como foi feita a sua campanha de divulgação: através do famoso boca a boca entre os membros da Academia e também pelas redes sociais, o que foge totalmente da regra. Discussões à parte, o fato é que se analisarmos apenas a sua atuação, a indicação acaba sendo realmente merecida, já que ela realmente brilha em uma história simples mas bastante tocante.


Em "To Leslie", filme do diretor Michael Morris, Riseborough interpreta uma mãe solteira que ganhou 190 mil dólares em uma loteria local. O filme logo dá um salto de seis anos, onde vemos Leslie totalmente desequilibrada, sendo despejada de um quarto de motel por não pagar o aluguel, e sofrendo duramente as consequências de suas escolhas erradas do passado. Ela nitidamente não soube administrar a bolada que recebeu e torrou tudo em muito pouco tempo, sobretudo com álcool. Sem emprego, sem casa, e portando apenas uma maleta com seus objetos pessoais, ela vive uma realidade decadente e sem futuro, e quando recebe oportunidades parece fazer questão de jogar tudo fora.

Após passar por situações muito delicadas e chegar a ter que dormir na rua, Leslie acaba recebendo a grande chance de finalmente reencontrar um rumo na vida ao ser admitida para trabalhar como arrumadeira em um motel de estrada, em troca de um pequeno salário e de poder dormir no local. A partir de então se cria uma relação amigável e curiosa entre ela e Sweeney (Marc Maron), o homem que lhe dá o emprego e que administra o local junto com o dono, Royal (Andre Royo).

A protagonista é muito humana e divide os sentimentos do espectador a todo momento. É interessante como você acaba torcendo para que ela se encontre e consiga ter uma vida melhor, mas ao mesmo sente repulsa por algumas das suas atitudes, sobretudo com o filho James (Owen Teague). Ao voltar para a sua terra natal, todos a olham com um certo desprezo, quase como se a considerassem uma louca, o que acaba sendo até justificável pela sua própria conduta.


Durante as duas horas do filme, Leslie é usada por outras pessoas, mas de certa forma também se aproveita de outras, e sempre carrega uma amargura muito grande do mundo que a cerca, que é bem perceptível em seu olhar. E é aí que entra a grande atuação de Riseborough, que conduz com maestria essa personagem tão complexa e de personalidades tão contrastantes, e que por si só já faz valer o filme inteiro. Diferentemente da indicação, se ela ganhar o prêmio no Oscar não será surpresa alguma.


quinta-feira, 9 de fevereiro de 2023

Crítica: Carvão (2022)


Marcando a estreia em longa metragem da diretora Carolina Markowicz, Carvão nos leva para o mais profundo interior do Brasil, e acompanha uma família que vive em uma casa muito simples e sobrevive de uma pequena carvoaria que possui no pátio. Irene (Maeve Jinkings) é quem comanda tudo com pulso firme, mas junto dela vive o marido Jairo (Rômulo Braga), o filho pequeno do casal (Jean Costa) e o pai dela, que está em uma cadeira de rodas praticamente inválido.


A vida desta família humilde muda quando eles recebem uma proposta um tanto quanto inusitada: abrigar um estrangeiro, chefe do tráfico no seu país, que precisa se esconder em um lugar ermo após algo aparentemente dar muito errado com seu negócio. Vendo como uma oportunidade de ganhar um dinheiro em troca, eles aceitam abrigar o homem (Cesar Bordón), e tem uma única missão: mantê-lo longe da vista da vizinhança.

A tarefa parece fácil, mas é justamente aqui que as características da vida em uma cidade tão pacata começam a ganhar força. Em um lugar isolado e pequeno desse jeito, todos os moradores acabam se conhecendo, e consequentemente tem a liberdade de entrar e sair da casa um do outro, como se fossem todos membros de uma grande família. Mas como mudar este comportamento de uma hora para outra e impôr limites para que ninguém veja o visitante em casa, sem parecer estranho aos demais?

A atuação de Maeve Jinkings é espetacular na pele dessa mãe de família que possui muita autoridade, mas ao mesmo tempo muita doçura. O menino também é um personagem adorável, e acaba sendo responsável pelos diálogos mais engraçados do filme. É um humor bem inocente e nada forçado. Outro destaque é o argentino Cesar Bordón, que eu já conhecia do cinema feito no país vizinho e que aqui tem uma participação muito marcante. Seu personagem acaba despertando sentimentos diversos em cada um dos membros desta família, inclusive no menininho, que enxerga nele uma figura paterna de afeto, já que o pai é bem distante disso.

Assim como em Marte Um, o filme que acabou sendo o escolhido para representar o Brasil no Oscar, aqui também temos um retrato bem realista de uma típica família brasileira, com seus problemas, seus medos e seus segredos, e tudo feito de uma maneira muito orgânica, sobretudo pela ótima ambientação. Algumas escolhas narrativas me pareceram um pouco forçadas do meio para o final, o que justifica o filme não levar a nota máxima aqui. Também queria ter visto um pouco mais de desenvolvimento dos personagens secundários, como o da Camila Márdila. Ainda assim, trata-se de mais um grande exemplar do nosso cinema atual, cheio de camadas e extremamente envolvente.

terça-feira, 7 de fevereiro de 2023

Crítica: EO (2022)


Novo filme do veterano diretor polonês Jerzy Skolimowski, "EO" estreou no Festival de Cannes de 2022 e deu o que falar, levando inclusive o Prêmio do Júri nesta edição. Acompanhando a jornada de um burro por lugares ermos da Polônia, o diretor tenta mostrar, pelos olhos do próprio animal, como é dura, melancólica e solitária a vida de um ser que, de uma maneira geral, só é "usado" por nós humanos.


Eo é o nome do burrinho, que acaba sendo o grande protagonista do filme. Mas não se engane, pois não se trata de um filme "hollywoodiano" em que animais falam e fazem coisas além do que se espera deles. Diferentemente disto, a forma com que o diretor nos apresenta Eo é extremamente realista e ao mesmo tempo humana, com foco em suas expressões e principalmente nos seus olhares, e é impossível não criar uma empatia com ele logo de cara.

Apesar do roteiro ser centrado em um personagem que não fala, o filme apresenta muitos humanos que no decorrer da trama vão interagindo com o burro, de uma forma boa ou ruim. No início, ele fazia parte de uma atração circense, onde fazia dupla com a jovem Kasandra (Sandra Drzymalska). E apesar de ser um ambiente de maus tratos, foi onde ele acabou sendo mais amado, já que Kasandra lhe dava muito amor e carinho. Após a dissolução do circo, Eo foi vendido para uma fazenda, mas logo consegue fugir do local tentando justamente ir atrás da menina. Sem conseguir, ele fica apenas vagando sem rumo por aí, passando de mãos em mãos, e virando até mesmo uma espécie de "mascote da sorte" de um time de futebol. Tudo isso antes de sentir na pele toda a violência e a maldade que o ser humano é capaz.


Não é um filme fácil, sobretudo para quem gosta de animais e consegue enxergar em Eo toda a dor de uma vida esvaziada. O final, confesso, me deixou arrasado, ainda que já fosse o esperado. Durante uma hora e meia, Eo "grita" na tentativa de se comunicar com o mundo exterior e com os demais animais, e principalmente para ser ouvido. Mas, assim como a causa animal, ele também é muitas vezes ignorado, e esta é a grande reflexão que fica no final.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2023

Crítica: Os Banshees de Inisherin (2022)


Já imaginou se o seu melhor amigo decide, de uma hora para outra, que não gosta mais de você e que a amizade precisa chegar ao fim porque você é um "chato"? Términos de relacionamentos amorosos já fazem parte do cotidiano do cinema, mas um término de amizade é algo que, confesso, eu nunca havia visto. Pelo menos não desta forma. O novo filme do diretor Martin McDonagh, do excelente Três Anúncios para um Crime, usa este insólito acontecimento para versar sobre a fragilidade dos relacionamentos pessoais de uma forma melancólica mas ao mesmo tempo engraçada e muito, muito peculiar.


Os Banshees de Inisherin se passa em uma ilha remota da Irlanda, onde os poucos moradores vivem uma vida extremamente pacata no final dos anos 1920. Neste cenário vive Pádraic (Colin Farrell), que inicia o filme indo buscar o seu velho amigo Colm (Brendan Gleeson) para eles beberem juntos no bar local, algo que aparentemente fazem todos os dias. Colm, no entanto, começa a agir de forma estranha e demonstra não querer mais a presença de Pádraic, o que deixa o rapaz cada vez mais intrigado, principalmente por não ter feito nada que justificasse isso.

A partir de então, começam a surgir vários questionamentos. Quais seriam os motivos de Colm para não querer mais a companhia do amigo de tantos anos? E será mesmo que eles eram tão amigos assim? Pouco se sabe, já que não temos nenhuma informação do que ocorreu antes disto, mas naturalmente há uma predisposição natural de sentirmos pena de Pádraic, afinal de contas, a rejeição de alguém que a gente gosta pode ser um sentimento terrível e cair como uma bomba para um personagem que demonstra ser bastante sensível. No entanto, na medida em que os dias vão passando, é possível entender melhor os motivos de Colm, que apenas está em outra sintonia no momento, querendo focar em fazer uma música nova com seu violino sem ter ninguém em volta para incomodá-lo com "conversas jogadas fora".

O dilema passa a ficar perigoso quando Pádraic nitidamente não aceita bem esse fim de amizade e começa a correr atrás do amigo, forçando uma reaproximação. O embate que surge logo no começo é sustentado por duas horas de uma forma muito competente, absorvendo o espectador com o uso de um humor muito sutil e perspicaz. A fotografia fria e melancólica é encantadora, com destaque para as belas paisagens bucólicas da ilha. É interessante perceber que, por ser um espaço pequeno, nós acabamos fazendo um mapa mental de onde os personagens circulam, sabendo exatamente para onde estão indo ou de onde estão voltando.


As atuações, no meu ponto de vista, acabam fazendo toda a diferença aqui. Colin Farrell está incrível no papel principal, mas quem brilha de fato é Gleeson, que nos apresenta um dos melhores personagens coadjuvantes do cinema nos últimos anos. Ainda destaco Siobhán Condon, que faz a irmã de Pádraic, e Barry Keoghan, que faz o personagem tido como "louco" da vila, e que também tem ótimas aparições. Por fim, com um ritmo lento mas extremamente instigante, Os Banshees de Inisherin acaba sendo uma das melhores surpresas neste início de ano, e merece todo o reconhecimento que vem tendo na temporada de premiações.


quarta-feira, 1 de fevereiro de 2023

Crítica: As Bestas (2022)


Indicado em dezessete categorias no prêmio Goya 2023, As Bestas, do espanhol Rodrigo Sorogoyen, tem sido um fenômeno e não é à toa. O thriller psicológico, ambientado na zona rural da Espanha, é intenso, sufocante e até mesmo desconfortável em muitos momentos, mas é extremamente brilhante em tudo o que propõe.


Antoine (Denis Ménochet) e Olga (Marina Foïs) formam um casal de agricultores franceses que moram há poucos anos em uma aldeia rural na região da Galícia. Eles vivem de maneira simples, cultivando seus legumes e seus frutos, e vendendo-os na feirinha todo final de semana. Ao mesmo tempo, eles também estão reformando e construindo novas residências, na tentativa de povoar essa região que aparentemente andava meio abandonada. No entanto, o clima entre eles e os vizinhos mais próximos parece ser bastante hostil, sobretudo com os irmãos Xan (Luis Zahera) e Lorenzo (Diego Anido). Antoine até tenta uma aproximação amigável no bar local, mas logo percebemos que essa rixa tem motivos muito fortes e não deve ser dissipada tão facilmente.

Xan e Lorenzo são moradores da região desde que nasceram, há pelo menos cinco décadas. Inclusive, Xan é visto como uma espécie de líder comunitário dos habitantes, e sua opinião vale muito para todos. E aos poucos, através dos diálogos, vamos descobrindo o porquê dos irmãos odiarem a presença de Antoine e de sua esposa na localidade. Isso tem a ver com o fato deles terem sido os únicos que se recusaram a assinar a favor da instalação de uma usina eólica nas montanhas locais, o que traria um pouco de dinheiro para os moradores que em sua grande maioria sempre viveram na miséria. E esse ódio vai, a conta gotas, se tornando algo cada vez mais perigoso e violento, já que os irmãos passam a amedrontar cada vez mais o casal e a transformar a vida deles em um inferno.

 


O trabalho de construção dos personagens é incrível, tanto que eu não consegui ficar totalmente contra os irmãos, tidos como "vilões" da história, justamente porque o argumento e os motivos deles agirem da forma como agem são muito plausíveis e até aceitáveis, ainda que isso não justifique algumas de suas ações. O que se vê são duas pessoas que viveram a vida toda no mesmo lugar e que perderam a chance de ter um pouco de esperança no futuro só porque alguém que chegou há pouco tempo não aceitou assinar um simples papel. Por outro lado, Antoine também levanta importantes questões ambientais a respeito das usinas, o que torna toda discussão muito relevante acerca do assunto.


O ponto máximo da produção são de fato as suas atuações. Denis Ménochet e Luis Zahera se destacam muito na primeira parte, em um duelo extremamente instigante. Destaque para uma cena em plano sequência na mesa de um bar, que me deixou totalmente boquiaberto. O personagem de Ménochet é mais quieto, pacato, enquanto o de Zahera fala muito (inclusive quando está em silêncio) e dá a impressão de que a qualquer momento vai agir de forma violenta, pois sua personalidade nos faz crer nisso. Já a personagem de Marina Foïs aparece mais no terceiro ato, mas quando tem o tempo de tela praticamente todo pra ela, simplesmente rouba a cena.


Com um ritmo que vai crescendo pouco a pouco e prendendo a atenção nas minúcias, As Bestas é certamente uma das grandes surpresas do ano. Diante de conflitos de interesses, sobretudo envolvendo dinheiro, o homem muitas vezes perde sua humanidade e se torna um animal quase irracional, ou uma "besta", e é basicamente sobre isso que o filme trata de maneira arrebatadora.