segunda-feira, 19 de fevereiro de 2024

Crítica: Os Colonos (2023)


Representante do Chile no Oscar de filme internacional em 2024, Os Colonos (Los Colonos) marca a estreia de Felipe Gálvez na direção de um longa metragem, e que grande começo. O silêncio na sala em que eu estava após a sessão acabar diz tudo, pois é um filme realmente duríssimo, que resgata uma parte da história chilena que havia sido esquecida, mas que de maneira geral trata do genocídio praticado pelos colonizadores europeus contra os povos nativos de toda a América do Sul.


O filme se passa em 1901, no sul do Chile, mais especificamente na região onde fica o arquipélago da Terra de Fogo. Neste local, três homens partem rumo à fronteira com a Argentina para realizar uma tarefa ordenada por José Menendéz (Alfredo Castro), um rico proprietário de terras que quer proteger suas propriedades dos indígenas, já que segundo ele, um grupo de nativos teria invadido suas terras e se alimentado de dezenas de suas ovelhas.

O comandante da jornada é Alexander McLennan (Mark Stanley), ex-tenente do exército britânico e um grande mercenário, que ficou conhecido posteriormente como um dos mais mortais “caçadores de indígenas” da época. Ele leva junto na comitiva um capataz de Menendéz, Bill (Benjamin Westfall), além de Segundo (Camilo Arancibia), um mestiço que era conhecido pela ótima pontaria com armas de fogo. Segundo, aliás, é o personagem mais enigmático da trama, pois ao perceber que a ideia principal da jornada era assassinar a maior quantidade possível de indígenas, ele se vê num conflito interno muito grande. Ele evidentemente não quer fazer parte disso, mas ao mesmo tempo não tem escolha, então de certa forma ele tenta, no mínimo, não ser responsável direto por nenhuma atrocidade. Porém, ver tudo com os próprios olhos e não poder fazer nada já é algo que ele vai carregar pra sempre com ele, independente da sua culpa ou não.


Os selk'nam, também conhecidos como ona ou onawo, eram um povo indígena que vivia no sul da Argentina e do Chile, em especial, na Terra do Fogo, e foram um dos últimos grupos nativos na América do Sul a ser encontrados por colonizadores europeus. O genocídio se deu não apenas por meio da violência extrema, mas também pela destruição de toda a sua cultura, dos seus meios de subsistência e através de epidemias trazidas pelo homem branco. Uma das histórias contadas no filme, inclusive remete a um banquete de carne envenenada que teria sido oferecido por Alexander McLennan aos indígenas, onde de uma só vez mais de 300 indígenas foram mortos. Os métodos eram muitos, mas a finalidade era um só, e a mais cruel possível.

Outro detalhe que o filme mostra, e que também foi verídico, era que os brancos sempre cortavam uma parte do corpo dos indígenas mortos para mostrar aos chefes e receberem suas recompensas, o que os motivava a matar cada vez mais, já que o retorno financeiro seria maior. Como disse no início, o filme é realmente duríssimo de assistir em alguns momentos, mas extremamente necessário como resgate histórico de um povo que foi apagado dos livros de história. Apesar do ponto de vista narrativo ser bem diferente, é impossível não lembrar vagamente de Assassinos da Lua das Flores, do Martin Scorsese, que também faz um resgate histórico de um massacre ocorrido contra um povo originário.

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2024

Crítica: Todo Mundo Ama Jeanne (2024)


Dirigido por Céline Devoux, Todo Mundo Ama Jeanne usa uma roupagem descontraída para abordar temas profundos como a depressão, as frustrações da vida adulta, e os conflitos internos que nos bloqueiam e nos autossabotam.


O filme conta a história de Jeanne (Blanche Gardin), uma mulher que ficou famosa por criar um projeto audacioso para recolher plástico dos mares e diminuir drasticamente a poluição dos oceanos. No entanto, o projeto fracassou logo na inauguração, e além das críticas e das piadas na internet feitas em cima do caso, ela ainda ficou praticamente insolvente, já que colocou tudo que tinha de dinheiro neste projeto.

Enquanto o título dá a entender que todos amam Jeanne, ela mesma parece se odiar, e mais do que isso, ela sente que todos ao redor a detestam e que sua presença não é bem vinda. Por conta disso, ela acaba criando uma espécie de capa protetora em volta de si, evitando contatos e interações. No entanto, ao viajar para Lisboa na tentativa de vender o apartamento que era de sua falecida mãe, ela conhece Jean (Laurent Lafitte), um homem de caráter extremamente duvidoso, mas que faz ela passar a enxergar as coisas com um pouco mais de lucidez.


Usando toda a sua criatividade, a diretora optou por usar um boneco animado como forma de transcrever as “vozes na cabeça” da personagem, e por vários momentos esta animação aparece (às vezes até demais), deixando claro o que passa na mente da personagem e toda a confusão que há dentro dela. Particularmente achei este artificio muito interessante, pois nos faz conhecer ainda mais as ideias e os pensamentos de Jeanne, e mostrar que ela é suscetível a erros e acertos igual a todos nós. Apesar dos temas abordados, é um filme leve, que encanta pela simplicidade.

domingo, 11 de fevereiro de 2024

Crítica: Mamonas Assassinas - O Filme (2023)


Como bom fã dos Mamonas e de tudo que eles representaram para quem viveu a infância dos anos 1990, eu naturalmente criei boas expectativas para um filme que contaria a história de Dinho, Samuel, Sérgio, Bento e Julio nas telas. E justamente por ser fã, posso dizer com propriedade que Mamonas Assassinas - O Filme é um dos piores (se não o pior) filmes nacionais que eu já assisti na minha vida, e quase um desrespeito com a história dos cinco. São tantas coisas ruins no filme que é até difícil saber por onde começar, mas vamos lá.


Começo pelo roteiro, que é uma bagunça generalizada, e parece um filme feito por um grupo de estudantes para apresentação de algum trabalho (e se eu fosse o professor daria nota zero). Só vendo para crer, mas absolutamente nada funciona desde o primeiro minuto. A transição entre uma cena e outra é absurda, e quem já assistiu Malhação na Rede Globo vai conseguir identificar rapidamente alguns artifícios idênticos que o diretor utiliza aqui nestas transições, que é a tal da musiquinha em volume decrescente que aparece em cada nova troca de cenário. Além disso, nada evolui, e nenhuma cena tem ligação com a próxima, sendo assim continuamente até o final.


Os saltos temporais também não fazem o menor sentido, e há inúmeros erros de sequência, como um personagem segurando um copo e dois segundos depois sua mão estar vazia. Erros totalmente amadores. E por falar em amadorismo, o que são as atuações deste filme? Apesar dos atores principais serem fisicamente parecidos com os personagens reais, é difícil escolher quem está mais superficial em seu papel. A caracterização também está preguiçosa, como nas perucas ridículas que os personagens usam no início do filme, e até mesmo a cenografia se mostra extremamente relaxada, como se tivesse sido tudo filmado em cenários feitos para programas de comédia de baixo orçamento da televisão.



A trilha sonora, que na cinebiografia de uma banda era para ser no mínimo o ponto positivo, também é uma desgraça. O que dizer daquela sanfoninha da música do cantor Rubel, que o diretor insiste colocar em duas cenas dramáticas do filme? Além disso, todo o processo de criação da banda é mostrado da maneira mais artificial possível. É como se as composições tivessem surgido para eles como uma dádiva, pois do absoluto nada eles começam a “improvisar” e saem com as letras prontas, sendo cantada por todos. O roteiro ainda coloca algumas situações pontuais como justificativa para a escolha dos nomes de músicas, como um político chamado Celestino (Jumento Celestino), um xingamento (Cabeça de Bagre), ou até mesmo o apelido do homem que "roubou" a namorada de um deles (Lá vem o Alemão).


E se na comédia o filme já estava penoso de aguentar, quando ele tenta apelar para o drama, focando na história de “redenção” do Dinho, fica ainda mais cafona. Em uma das primeiras cenas do filme, ele é largado pela namorada no meio da rua supostamente por ser um "zé ninguém", numa cena digna de novela mexicana, onde ele sai gritando que um dia será famoso. E é basicamente isso que o faz perseguir a fama a partir de então. Há também outra cena dele com o pai cujos diálogos basicamente são retirados de uma palestra de coach motivacional. Ai, tenha santa paciência, viu. Para não ser injusto, a atuação do Ruy Brissac na segunda parte do filme, quando as cenas são mais centradas nos shows da banda, talvez seja a única parte boa do filme. Ele realmente incorpora aquela loucura já conhecida do Dinho nos shows, e isso acaba sendo legal de ver. No entanto, o desgaste já era tanto, que nem isso conseguiu salvar o filme de ser um desastre completo.



Por fim, para selar o que já estava intragável, temos a adição de uma personagem feminina que namora um dos membros da banda, mas que dá em cima de outro de uma maneira grotesca. Eu confesso que eu ri demais do filme, mas não com ele. São tantas bizarrices que é até difícil imaginar que isso passou por alguma aprovação antes de chegar ao público. Certamente apostaram na nostalgia dos fãs, e o resultado nas bilheterias está aí para comprovar que de certa forma deu certo. Mas uma coisa é preciso dizer: os Mamonas não mereciam uma homenagem tão desagradável e mal feita como essa.


domingo, 4 de fevereiro de 2024

Crítica: Pobres Criaturas (2023)


Acompanho a filmografia do cineasta Yorgos Lanthimos desde Dente Canino (2009), mas confesso que não me atraía tanto o formato mecânico e exagerado com que ele sempre usou o "esquisito" para chocar o público. A única exceção até então era O Lagosta (2015), que eu sempre achei o seu trabalho mais maduro. Dito isso, que grande satisfação é poder sair da sessão de Pobres Criaturas (Poor Things) e ver que ele finalmente soube mesclar perfeitamente o seu surrealismo com uma história narrativamente excitante, apresentando aquela que não somente é disparado o seu melhor filme, como possivelmente é a grande experiência cinematográfica do ano.


A trama acompanha Bella Baxter (Emma Stone), uma jovem que é "ressuscitada" por um médico excêntrico e nada convencional, Godwin Baxter (Willem Dafoe), numa história que remete automaticamente ao clássico "Frankenstein" de Mary Shelley. Não entrarei em detalhes de como foi feito o processo para evitar spoilers, mas agora ela é literalmente uma criança no corpo de uma mulher adulta, e precisa voltar a conhecer o mundo que a rodeia pelos olhos de um ser em desenvolvimento. Nas cenas iniciais, onde o diretor usa uma fotografia preto e branco, é possível ver Bella neste seu processo de aprendizagem, onde ensaia suas primeiras palavras e até mesmo desenvolve aos poucos a habilidade de andar, ao mesmo tempo em que teima violentamente quando é contrariada e proibida de fazer coisas simples, como sair na rua e brincar.

Enclausurada nesta mansão gigantesca, mas que ao mesmo tempo parece extremamente claustrofóbica, Bella passa a querer descobrir outros prazeres da vida, e a curiosidade dela em torno do que acontece fora das quatro paredes da mansão só aumenta na medida em que ela vai amadurecendo seus pensamentos. Isso faz com que ela se junte ao advogado Duncan Wedderburn (Mark Ruffalo), que nitidamente só quer se aproveitar dela, sobretudo na parte sexual, e decide levá-la para uma aventura por vários cantos da Europa com a desculpa de fazê-la ter novas experiências.


Nesta aventura, Bella descobre acima de tudo os prazeres do corpo, mas ao mesmo tempo também vai aprendendo conceitos básicos de uma vida em sociedade. Esta parte do filme em especial é engraçadíssima, pois temos uma personagem que ainda está aprendendo sobre a "polidez" da sociedade, sobre o que pode ou não pode falar em público, e sobre o que é aceitável ou não fazer em frente a outras pessoas, e enquanto ela aprende tudo isso, acaba constrangendo todos ao redor. Consigo enxergar uma crítica mordaz de Lanthimos à forma como vivemos moldados em nossos próprios tabus e regras bobas de etiqueta.

E por falar em tabu, eu tenho presenciado um fenômeno estranho nas redes sociais ultimamente, onde os jovens parecem estar ficando cada vez mais conservadores em relação a cenas de sexo em filmes e séries, algo que eu nunca tinha visto igual. Basta uma rápida pesquisa com o nome do filme no "twitter" para ver opiniões puritanas e vazias sobre esta questão. Sim, Pobres Criaturas tem muitas cenas de sexo, tanto que o filme ganhou classificação +18 na sua distribuição, mas absolutamente nenhuma cena é gratuita. O sexo, inclusive, é parte crucial no desenvolvimento da personagem e no que o diretor quer passar em relação a isto, e não há nada de apelativo, pelo contrário.


É fascinante assistir o desenvolvimento em tempo real de Bella através dos novos sentidos e do confronto direto que ela tem com a realidade à sua frente, e perceber principalmente o quanto isto vai mudando a sua visão de mundo. Ao mesmo tempo que ela testemunha as coisas belas e simples da vida humana, como a bondade e o valor da amizade, ela simultaneamente descobre o lado ruim e cruel, quando por exemplo se depara com uma favela onde crianças estão morrendo de fome e ninguém do "lado de fora" parece se importar. Este episódio, inclusive, é um divisor de águas na personalidade da protagonista, e posso dizer que é onde ela verdadeiramente se torna humana, de fato. Além disso, ela passa a enxergar com o passar do tempo o quanto pessoas ao seu redor podem ser manipuladoras e o quanto ela mesmo está sendo vítima da exploração dos outros, sobretudo do próprio Duncan, e ao bater de frente com isso acaba sendo taxada de louca e demoníaca.

Se o roteiro por si só já é provocador e muito bem elaborado para manter a nossa atenção, a parte estética é definitivamente o que faz o filme ser tão impactante. Nada aqui é convencional, desde o uso de câmeras angulares e "olho de peixe", até os cenários impecáveis em cada um dos seus detalhes. Temos a mansão onde Bella foi "criada", cheia de curvas nas paredes e nos tetos e recheada de animais bizarros que também foram criados em laboratório por Godwin, temos uma Lisboa pré-modernista com carros voadores, temos um navio luxuoso e cheio de salas grandiosos e cheias de cores vivas, uma Alexandria desértica cuja formação lembra as cidades suspensas de Os Senhor do Anéis, e por fim uma Paris cinzenta e nevada. É um trabalho brilhante da direção de arte, que faz o filme ser uma experiência inesquecível e absurdamente imersiva na tela grande.


Se o papel de Bella necessitava de uma atriz que fizesse ela soar verdadeira em meio aos seus exageros, Emma Stone não poderia ter sido uma escolha mais acertada. É inacreditável o quanto ela se doa para o papel, e o quanto ela muda de acordo com cada nova experiência e descoberta da personagem. Apesar de não ser o coadjuvante com mais tempo em tela, Willem Defoe também tem uma presença única e impactante, e em cada aparição sua o filme se engrandece.Gostei também da participação do Mark Ruffalo, apesar de ser um personagem deveras caricato. Por fim, Pobres Criaturas é muito mais do que uma história de autoconhecimento e amadurecimento, mas um filme que nos faz sair da zona de conforto ao nos propor algo que foge completamente do habitual.

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2024

Crítica: Todos Nós Desconhecidos (2023)


De todas as sensações que o cinema pode nos proporcionar, acredito que uma das melhores é a surpresa. Aquilo que acontece quando você não espera absolutamente nada de um filme e sai da sessão completamente arrebatado, como se tivesse acabado de ver algo que irá mudar a sua vida. Exageros à parte (ou não), Todos Nós Desconhecidos (All of Us Strangers) realmente que me deixou sem palavras durante os créditos finais, e tenho certeza que ainda vai reverberar muito tempo dentro da minha cabeça.


Tratando a solidão da vida adulta de uma maneira melancólica e poética,o filme acompanha Adam (Andrew Scott), um roteirista que mora em um prédio recém construído nas proximidades de Londres. Ele passa seus dias escrevendo e bebendo sozinho, dentro do seu próprio mundo particular e isolado. O prédio em que vive ainda é pouco habitado, e certo dia ele conhece o seu único vizinho, Harry (Paul Mescal), que mora em outro andar. Imediatamente surge uma química entre eles e ambos passam a fazer companhia um para o outro, unindo as suas próprias "solidões".

Paralelo a este relacionamento que surge entre os dois, Adam faz visitas constantes a um casal (Jamie Bell e Claire Foy), que aos poucos se revelam ser na verdade os pais de Adam. No entanto, logo dá para perceber algo estranho: eles aparentam ser mais novos do que ele. A partir de então fica bastante claro a relação de Adam com seus pais, mas não entrarei em mais detalhes para não lançar spoilers. O que posso dizer é que o "retorno" que Adam faz ao seu próprio passado traz uma conexão única com os pais, abordando traumas e assuntos não resolvidos de anos atrás. Um deles é o próprio fato dele ser homossexual e ter finalmente a chance de "sair do armário" para a mãe. Esta, inclusive, é uma das cenas mais bonitas do longa, principalmente pela reação dela. Alguns outros temas também vem à tona, como o bullying que ele sofria na escola e escondia do pai, ou até mesmo segredos pequenos da infância mas que se tornaram muito maiores após a vida adulta. Tudo isso tendo por trás uma atuação incrível e segura de Andrew Scott, e uma trilha sonora que para mim já está entre as mais belas do ano. Apesar da pouca aparição em tela, eu também gostei muito da atuação da Claire Foy (mais conhecida pela série The Crown).


Por fim, Todos Nós Desconhecidos é um filme sobre as nossas memórias, sejam elas felizes ou dolorosas, e o quanto elas nos moldam a ser quem somos. Um mergulho no subconsciente do ser humano, com um final dilacerador. Brilhante trabalho do diretor Andrew Haigh, que com poucos recursos e um elenco de apenas quatro atores, conseguiu fazer um dos trabalhos mais grandiosos e comoventes do ano.

Crítica: Inshallah a Boy (2023)

 
Com histórias muito humanas e personagens bastante complexos, o cinema realizado nos países do Oriente Médio sempre me impressionou positivamente, e é indiscutivelmente um dos melhores do mundo. Não por acaso, muitos dos filmes lançados na região tem em comum o fato de trazerem mensagens diretas sobre as injustiças cometidas contra as mulheres diante de leis arcaicas e dominadas pelo machismo, provando que o cinema pode sim ser uma ferramenta de mudanças e avanços sociais. Inshallah a Boy, submissão da Jordânia ao Oscar de filme internacional deste ano, é mais um ótimo exemplo disto.



O filme acompanha a história de Nawal (Mouna Hawa), uma mulher que acabou de perder o marido repentinamente. Diante do luto, ela ainda precisa cuidar da filha pequena e lutar para garantir os seus direitos à herança, pois de acordo com as leis do país, a família do marido falecido tem direito a praticamente tudo que ele possuía já que o casal não teve um filho homem. O caso vai parar na justiça, em uma ação perpetrada pelo seu cunhado, Rifqi (Hitham Omari). A partir desse fato inicial, acompanhamos a protagonista em uma verdadeira “descida ao inferno”, como é absolutamente comum nesse tipo de filme, onde precisa enfrentar tudo e todos para ter o mínimo do que lhe é de direito.

Nawal trabalha como cuidadora de idosos, e na residência onde ela está trabalhando no momento, acaba conhecendo Lauren (Yumma Marvan), uma mulher de espírito livre que rechaça viver da maneira tradicional, não aceita ser submissa ao marido, e tem voz ativa na defesa dos direitos das mulheres. Quando Lauren descobre estar grávida de um menino, logo a história das duas mulheres se conectam fortemente, em um roteiro que aparentemente é previsível mas que leva a vários caminhos tortuosos.

 
Em seu filme de estreia, o diretor Amjad Al Rasheed segue uma linha quase convencional, mas de forma alguma soa superficial. Pelo contrário, o filme consegue pôr o dedo na ferida e nos causar um sentimento de revolta diante de um sistema tão desigual para homens e mulheres. E por mais que o tema já pareça batido, ele ainda é extremamente necessário. Se aqui no Brasil algumas leis ainda são ultrapassadas, como a lei da laqueadura que foi alterada só no ano passado e que até então exigia o consentimento de um cônjuge para ser feito o procedimento, imagina em países onde mulheres não tem direito nem mesmo a escolher o que vestir.
 

quinta-feira, 1 de fevereiro de 2024

Crítica: Ferrari (2023)


Conhecido por seus thrillers policiais (Fogo Contra Fogo, O Informante, Inimigos Públicos), o diretor Michael Mann desta vez resolveu se aventurar no mundo das cinebiografias, trazendo um filme tão enérgico quanto qualquer um dos seus outros trabalhos, mas focando no drama e na paixão do italiano Enzo Ferrari pela alta velocidade ao contar um recorte na vida do empresário e criador da scuderia Ferrari.


O roteiro se passa em 1957, momento em que Enzo (Adam Driver) e sua esposa Laura (Penélope Cruz) enfrentam a iminente falência da empresa que haviam construído há 10 anos atrás. Além disso, eles acabaram de passar pela trágica perda do filho pequeno, e também estão tendo que lidar com o luto em meio a todo o caos. Logo fica evidente que o casal tem uma relação praticamente de fachada, já que não existe mais nada entre eles além dos negócios. Enzo inclusive tem uma vida dupla com Lina (Shailene Woodley), às escondidas de Laura, onde possui um outro filho.

A figura de Enzo apresentada por Michael Mann é de um homem extremamente frio, egocêntrico e inescrupuloso. Nada empático, ele só quer ver o resultado dos seus negócios, doa a quem doer. Quando um dos pilotos morre em um grave acidente, ele imediatamente já tem um substituto nas mãos, pois não pode perder tempo e nem dinheiro. Sua ambição em 1957 era ganhar a icônica “Mille Miglia”, uma corrida de longa distância que atravessava várias regiões da Itália, já que isso era crucial para vender mais carros e impulsionar novamente a montadora. Curiosamente, a edição de 1957 foi a última da corrida, já que após um acidente fatal que vitimou o piloto Alfonso de Portago e vários outros espectadores na beira da estrada, o governo italiano resolveu proibi-la de vez.


O grande destaque do filme é a atuação firme e segura de Penélope Cruz como Laura Ferrari. Adam Driver por sua vez está quase no piloto automático, mas não compromete. O mesmo não se pode dizer de Shailene Woodley, que é uma verdadeira decepção (mais uma vez em sua curta carreira) em um papel completamente deslocado. Tecnicamente o filme tem cenas muito bem feitas, com vários planos aéreos e câmeras frenéticas durante as corridas, mas uma das cenas em específico me causou um enorme estranhamento, com o uso de um CGI inacreditavelmente ruim para um filme de orçamento tão grande. Por fim, Ferrari acaba sendo um filme que nitidamente poderia ter ido muito mais além, sobretudo quando falamos em estudo de personagem, mas ainda assim entretém pelo alto nível de adrenalina e imersão para quem gosta de automobilismo.