sábado, 20 de abril de 2024

Crítica: O Livro da Discórdia (2023)


Imagine que você seja um escritor e decida contar a história íntima de sua família em um livro, porém sem eles saberem. Mais do que isso, imagine que o livro atinja um êxito inesperado e venda muitas cópias. Qual seria a reação das pessoas citadas quando descobrissem que os seus segredos foram expostos? Como eles reagiriam ao ter a vida e seus segredos lidos por tanta gente? Esses são questionamentos que surgem ao longo de O Livro da Discórdia (Youssef Salem a du succès), uma comédia inteligente e deliciosa de assistir, dirigida pela francesa Baya Kasmi (de Os Nomes do Amor).


A trama gira em torno de Youssef Salem (Ramzy Bedia), um aspirante a escritor que acabou de lançar um livro sobre o qual ele coloca grandes expectativas de finalmente alcançar o sucesso na carreira. Ele chega a ser convidado para um importante programa literário da televisão, e está esperançoso em relação ao que vêm pela frente. No entanto, ao mesmo tempo, Youssef tenta a todo custo esconder o lançamento do livro de seus pais, pois mesmo jurando não se tratar de uma autobiografia, fica evidente que os personagens retratados através de pseudônimos são, na verdade, a sua própria família. A intenção de Youssef é evitar que eles se sintam expostos, e o bom humor do roteiro reside justamente nestas tentativas quase fracassadas dele tentar ocultar a sua obra deles. 

Descendentes de argelinos, os membros da família de Youssef vivem em Paris há décadas, e sempre foram, de certa maneira, bastante conservadores. O livro que Youssef escreveu, chamado Choque Tóxico, retrata um pouco da sua infância e adolescência neste ambiente amoroso mas cheio de tabus, principalmente em relação à sexualidade. O próprio nome do livro, por exemplo, nasceu de uma história que a mãe de Youssef contava quando ele era pequeno, sobre um casal que morreu de um "choque tóxico" após fazer sexo antes do casamento, história esta que influenciou negativamente a sexualidade de Youssef por anos. Outra questão abordada pelo filme é a homossexualidade da irmã de Youssef, Lena (Vimala Pons), que sempre teve que esconder isso dos pais, e que no livro acaba sendo descrita como um irmão gay que passa pelas mesmas dificuldades de aceitação.


Com o sucesso inesperado do livro, Youssef acaba sendo indicado a um importante prêmio literário francês, e inevitavelmente seus pais acabam sabendo disso. A princípio a alegria toma conta deles, que sem saber o teor do livro, ficam orgulhosos do filho ter alcançado o que sempre almejou. Mas é justamente aí que a mentira começa a ficar ainda mais difícil de ser sustentada. Como se não bastasse todas as inverdades em torno do livro, Youssef também criou uma vida paralela para os pais, omitindo por exemplo, que se separou da esposa há dois anos e que vive numa casa muito mais simples do que eles esperavam.

Eu gostei muito do teor cômico do filme, e da forma como o roteiro vai dissecando todas as camadas de mentiras de Youssef até criar uma situação onde o personagem se vê preso dentro do que ele mesmo criou. Por trás de tudo, ainda é possível perceber uma crítica sucinta mas muito perspicaz sobre a forma com que os imigrantes são tratados na França, mesmo aqueles que viveram sua vida inteira no país. Um filme leve e despretensioso, mas muito competente nas discussões que propõe.

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