domingo, 4 de fevereiro de 2024

Crítica: Pobres Criaturas (2023)


Acompanho a filmografia do cineasta Yorgos Lanthimos desde Dente Canino (2009), mas confesso que não me atraía tanto o formato mecânico e exagerado com que ele sempre usou o "esquisito" para chocar o público. A única exceção até então era O Lagosta (2015), que eu sempre achei o seu trabalho mais maduro. Dito isso, que grande satisfação é poder sair da sessão de Pobres Criaturas (Poor Things) e ver que ele finalmente soube mesclar perfeitamente o seu surrealismo com uma história narrativamente excitante, apresentando aquela que não somente é disparado o seu melhor filme, como possivelmente é a grande experiência cinematográfica do ano.


A trama acompanha Bella Baxter (Emma Stone), uma jovem que é "ressuscitada" por um médico excêntrico e nada convencional, Godwin Baxter (Willem Dafoe), numa história que remete automaticamente ao clássico "Frankenstein" de Mary Shelley. Não entrarei em detalhes de como foi feito o processo para evitar spoilers, mas agora ela é literalmente uma criança no corpo de uma mulher adulta, e precisa voltar a conhecer o mundo que a rodeia pelos olhos de um ser em desenvolvimento. Nas cenas iniciais, onde o diretor usa uma fotografia preto e branco, é possível ver Bella neste seu processo de aprendizagem, onde ensaia suas primeiras palavras e até mesmo desenvolve aos poucos a habilidade de andar, ao mesmo tempo em que teima violentamente quando é contrariada e proibida de fazer coisas simples, como sair na rua e brincar.

Enclausurada nesta mansão gigantesca, mas que ao mesmo tempo parece extremamente claustrofóbica, Bella passa a querer descobrir outros prazeres da vida, e a curiosidade dela em torno do que acontece fora das quatro paredes da mansão só aumenta na medida em que ela vai amadurecendo seus pensamentos. Isso faz com que ela se junte ao advogado Duncan Wedderburn (Mark Ruffalo), que nitidamente só quer se aproveitar dela, sobretudo na parte sexual, e decide levá-la para uma aventura por vários cantos da Europa com a desculpa de fazê-la ter novas experiências.


Nesta aventura, Bella descobre acima de tudo os prazeres do corpo, mas ao mesmo tempo também vai aprendendo conceitos básicos de uma vida em sociedade. Esta parte do filme em especial é engraçadíssima, pois temos uma personagem que ainda está aprendendo sobre a "polidez" da sociedade, sobre o que pode ou não pode falar em público, e sobre o que é aceitável ou não fazer em frente a outras pessoas, e enquanto ela aprende tudo isso, acaba constrangendo todos ao redor. Consigo enxergar uma crítica mordaz de Lanthimos à forma como vivemos moldados em nossos próprios tabus e regras bobas de etiqueta.

E por falar em tabu, eu tenho presenciado um fenômeno estranho nas redes sociais ultimamente, onde os jovens parecem estar ficando cada vez mais conservadores em relação a cenas de sexo em filmes e séries, algo que eu nunca tinha visto igual. Basta uma rápida pesquisa com o nome do filme no "twitter" para ver opiniões puritanas e vazias sobre esta questão. Sim, Pobres Criaturas tem muitas cenas de sexo, tanto que o filme ganhou classificação +18 na sua distribuição, mas absolutamente nenhuma cena é gratuita. O sexo, inclusive, é parte crucial no desenvolvimento da personagem e no que o diretor quer passar em relação a isto, e não há nada de apelativo, pelo contrário.


É fascinante assistir o desenvolvimento em tempo real de Bella através dos novos sentidos e do confronto direto que ela tem com a realidade à sua frente, e perceber principalmente o quanto isto vai mudando a sua visão de mundo. Ao mesmo tempo que ela testemunha as coisas belas e simples da vida humana, como a bondade e o valor da amizade, ela simultaneamente descobre o lado ruim e cruel, quando por exemplo se depara com uma favela onde crianças estão morrendo de fome e ninguém do "lado de fora" parece se importar. Este episódio, inclusive, é um divisor de águas na personalidade da protagonista, e posso dizer que é onde ela verdadeiramente se torna humana, de fato. Além disso, ela passa a enxergar com o passar do tempo o quanto pessoas ao seu redor podem ser manipuladoras e o quanto ela mesmo está sendo vítima da exploração dos outros, sobretudo do próprio Duncan, e ao bater de frente com isso acaba sendo taxada de louca e demoníaca.

Se o roteiro por si só já é provocador e muito bem elaborado para manter a nossa atenção, a parte estética é definitivamente o que faz o filme ser tão impactante. Nada aqui é convencional, desde o uso de câmeras angulares e "olho de peixe", até os cenários impecáveis em cada um dos seus detalhes. Temos a mansão onde Bella foi "criada", cheia de curvas nas paredes e nos tetos e recheada de animais bizarros que também foram criados em laboratório por Godwin, temos uma Lisboa pré-modernista com carros voadores, temos um navio luxuoso e cheio de salas grandiosos e cheias de cores vivas, uma Alexandria desértica cuja formação lembra as cidades suspensas de Os Senhor do Anéis, e por fim uma Paris cinzenta e nevada. É um trabalho brilhante da direção de arte, que faz o filme ser uma experiência inesquecível e absurdamente imersiva na tela grande.


Se o papel de Bella necessitava de uma atriz que fizesse ela soar verdadeira em meio aos seus exageros, Emma Stone não poderia ter sido uma escolha mais acertada. É inacreditável o quanto ela se doa para o papel, e o quanto ela muda de acordo com cada nova experiência e descoberta da personagem. Apesar de não ser o coadjuvante com mais tempo em tela, Willem Defoe também tem uma presença única e impactante, e em cada aparição sua o filme se engrandece.Gostei também da participação do Mark Ruffalo, apesar de ser um personagem deveras caricato. Por fim, Pobres Criaturas é muito mais do que uma história de autoconhecimento e amadurecimento, mas um filme que nos faz sair da zona de conforto ao nos propor algo que foge completamente do habitual.

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