sexta-feira, 30 de agosto de 2024

Crítica: The Monk and the Gun (2024)


Pawo Choyning Dorji é um cineasta butanês que logo em sua estreia como diretor de longa-metragem lançou o sensível e belíssimo Lunana: A Yak in the Classroom, traduzido no Brasil como "A Felicidade das Pequenas Coisas", que surpreendeu ao ficar entre os cinco finalistas do Oscar de melhor filme internacional em 2022. Dois anos depois ele volta às telas com The Monk and the Gun, uma sátira política ousada e divertida, ambientada no ano de 2006, quando o Reino do Butão fez a transição para se tornar a democracia mais jovem do mundo.


O Butão foi o último país a permitir internet e televisão, e em 2006 finalmente estava seguindo os passos para se tornar uma democracia, da maneira como conhecemos, depois de séculos de monarquia absolutista. Para nós, viver numa democracia parece algo natural, mas sabemos que nem sempre foi assim. Nossas gerações passadas passaram pelo mesmo processo no século passado,  onde também tiveram que passar por todo um processo de aprendizagem sobre o que é viver dentro de um sistema onde o povo pode escolher seus representantes. Os butaneses não tinham nenhuma experiência e não sabiam sequer como agir diante desta mudança, e ao ter que aprender a votar, muitos inclusive se tornam contra, principalmente por não entenderem o motivo e preferirem viver na comodidade de antes.

É preciso dizer que apesar de não ser uma democracia até 2006, o país não vivia um regime ditatorial que tolhia a liberdade do seu povo. Aliás, o pequeno país ficou conhecido por criar o conceito de Felicidade Interna Bruta (FIB), um indicador sistêmico baseado na ideia de que o progresso de uma população não deve ser medido apenas pelo fator econômico, mas considerar sobretudo o cuidado com o meio ambiente e o bem estar das pessoas. Justamente por isso, é um país que até hoje rechaça majoritariamente as grandes tecnologias internacionais, e muitos moradores se orgulham disso.


Voltando ao enredo do filme, acompanhamos o processo de democratização através de uma eleição simulada, onde os eleitores terão que escolher entre três candidatos diferentes: o azul representando liberdade e igualdade, o vermelho representando o desenvolvimento industrial e o amarelo representando a preservação. No meio disso, o velho Lama (Kelsang Choejey) pede para que o seu monge assistente (Tandin Wangchuck) encontre uma arma  em algum lugar da região e traga para ele, pois ele tem planos de usá-la no dia das eleições, ou segundo ele mesmo, "usar para consertar o país no dia em que os olhos do mundo estarão voltados para ele". 

No entanto, o plano é uma incógnita, e nisso o diretor acertou em cheio ao brincar com a nossa perspectiva e atiçar nossa curiosidade, criando um fascínio sobre o que exatamente está passando pela cabeça do Lama. Inevitavelmente pensamos no pior cenário possível, mas o que vai acontecer de fato só é revelado na apaixonante cena final. Ao mesmo tempo, acompanhamos também um colecionador de armas norte-americano (Harry Einhorn), que viaja até o país para comprar um raríssimo exemplar usado na guerra civil americana, e que inexplicavelmente está na posse de um homem local. Inevitavelmente, o caminho dele se cruza com o do monge, já que aparentemente esta é a única arma existente em centenas de quilômetros.

 

O filme tem um humor muito peculiar, como por exemplo na própria reação do monge ao ganhar a tarefa quase impossível de achar uma arma em um país onde isso praticamente não existe, ou a maneira como essa busca se cruza com a do estrangeiro. É engraçado perceber também que o valor de uma arma é tão irrisório no país, que um artefato de séculos atrás acaba sendo trocado por algumas sementes e frutas em um dado momento. Por fim, o Butão é, de fato, um país único e singular, e é interessantíssimo conhecer mais um pouco dele pelas lentes de Dorji. Que venha o próximo.


domingo, 25 de agosto de 2024

Crítica: Motel Destino (2024)


Após lançar seu primeiro filme em língua inglesa, Firebrand (2023), que convenhamos, não tinha nada da sua forma conhecida de fazer cinema, o diretor cearense Karim Aïnouz volta às suas raízes com Motel Destino, filme que foi ovacionado em sua estreia no Festival de Cannes deste ano, e que finalmente chegou aos cinemas brasileiros neste último dia 22.



A trama de Motel Destino se passa no litoral do Ceará e gira em torno de três personagens, começando por Heraldo (Igor Xavier), um jovem que está com planos de ir para São Paulo atrás de uma vida melhor. Para sair da cidade, no entanto, ele precisa antes acertar contas com a chefe do tráfico local, que lhe dá uma missão em troca do perdão de uma dívida: matar um estrangeiro que vive na cidade. A missão dá errado por culpa de um atraso de Heraldo após uma noitada tórrida mas ao mesmo tempo trágica com uma mulher em um motel, e para piorar, ele ainda perde uma pessoa muito querida nesta empreitada mal sucedida. O único jeito é sair foragido, e nessa fuga ele acaba indo parar no mesmo motel de beira de estrada da noite passada, onde é acolhido por Dayana (Nataly Rocha), que comanda o lugar junto com o seu marido Elias (Fabio Assunção).

Em troca de uma cama e de um lugar seguro para se manter escondido dos criminosos, Heraldo passa a oferecer pequenos serviços de conserto no motel, até que passa a trabalhar como um verdadeiro funcionário do local, trocando roupas de cama, limpando os quartos e cuidando da recepção. O problema começa quando Heraldo e Dayana passam a se relacionar de maneira intensa, criando um triângulo amoroso perigoso, que é um verdadeiro barril de pólvora prestes a explodir.


Dayana sonha com o dia em que poderá se livrar das mãos de Elias, um homem que é extremamente abusivo, violento, e que já tentou matá-la ao não aceitar uma separação no passado. Porém, os negócios do motel, do qual ela também é sócia, impedem que ela largue tudo e siga em frente, pois sabe que além de ter que conviver com o medo de ser encontrada e morta por Elias, ainda teria que recomeçar a vida totalmente do zero. E é em Heraldo que ela vê a oportunidade de finalmente escapar desta "prisão" física e psicológica, ainda que não saiba como e nem por onde começar.

Gostei muito da construção dos personagens, bem como a crescente tensão que passa a existir entre eles à medida em que os segredos vão se afunilando. A forma passional com que Heraldo e Dayana se ajudam, transcende o próprio desejo carnal que um tem pelo outro, e dá para sentir que existe entre eles uma conexão mútua forjada intrinsecamente no desejo interno de liberdade, cada qual à sua própria maneira. E nisso, cabe um grande elogio ao ótimo trabalho de Igor Xavier e Nataly Rocha. Não posso deixar também de elogiar a atuação do Fábio Assunção, que brilha na pele desse personagem hostil, violento, mas que no fundo se torna extremamente carismático na tela.


Motel Destino é filme que pulsa tesão, tanto nas imagens como no som, mas que em momento algum se torna forçado neste sentido. Gostei demais da forma como o motel se transforma em um ambiente claustrofóbico, quase como se fosse um quarto personagem, onde passamos boa parte do tempo andando entre seus corredores e quartos, e onde o trabalho de som é o ponto alto, com os diferentes barulhos dos hóspedes (gemidos, gritos, etc etc) servindo como fundo quase o tempo inteiro das ações. Um grande trabalho de Aïnouz em sua "volta para casa".

quarta-feira, 21 de agosto de 2024

Crítica: Mais Pesado é o Céu (2023)


Sempre gosto de lembrar em minhas críticas de filmes brasileiros o quanto o nosso país, de dimensões continentais, é rico em sua pluralidade cultural. O termo pode até soar repetitivo, mas realmente me impressiona como somos uma nação de tantas faces, tantos sotaques, e de milhares e milhares de histórias que se cruzam pelo meio do caminho. Mais Pesado é o Céu, do diretor cearense Petrus Cariry, é a cara do Brasil, e apresenta um retrato atroz e bastante melancólico da dura realidade que muitas pessoas enfrentam todo os dias, sobretudo no interior do país.


A trama gira em torno de Antônio (Matheus Nachtergaele) e Teresa (Ana Luiza Rios), dois andarilhos da vida que se encontram por acaso no interior do Ceará. Antônio passou a vida trabalhando em bicos informais para sobreviver, e através de caronas pela estrada, está voltando de São Paulo com planos de ir rumo ao Piauí, onde pretende trabalhar como catador de caranguejos em um mangue após um antigo amigo dizer que o negócio é promissor. Teresa, por sua vez, está sem eira nem beira após a cidade que morava ter sido alagada pela construção de uma represa, cidade esta que o próprio Antônio também morou há muitos anos atrás. Quando se encontram, Teresa leva uma criança no colo que sequer possui um nome, e que Antônio logo acredita ser o filho dela.

Juntos, os dois procuram a cidade mais próxima em busca de um pouco de alimento, especialmente para o bebê, que agora é carinhosamente chamado de "menino". Lá, eles encontram Fátima (Silvia Buarque), uma mulher que vive sozinha e imediatamente se compadece com o que, em um primeiro momento, ela acredita ser uma família precisando de ajuda. Sem perceber, e de uma maneira natural, Antônio e Teresa de certa forma acabam formando, sim, uma família improvável, principalmente pelo afeto que criam com a criança e a necessidade que sentem de fazer algo por ela. 

 

Com a intenção de ajudá-los, Fátima empresta as chaves de uma casa abandonada para que eles possam se abrigar e passar os próximos dias, enquanto decidem os seus rumos dali em diante. Enquanto Antônio fica responsável pelo cuidado da criança, Teresa sai de casa para procurar trabalho, porém sem opções, ela acaba optando por vender o próprio corpo na beira da estrada, onde encontra o pior lado do ser humano ao ser humilhada e até mesmo violentada pelos "clientes".

O roteiro apresenta uma veracidade que dói, pois o que acompanhamos durante uma hora e meia de filme é a melancólica degradação de pessoas que precisam tomar decisões desesperadas para conseguir sobreviver. Ao mesmo tempo, no entanto, ele apresenta seus personagens com muita humanidade, desenvolvendo-os com primor. As atuações de Matheus Nachtergaele e Ana Luiza Rios ajudam demais neste processo, pois os dois possuem uma química em cena que é louvável. E quando falo de química, não falo no sentido romântico, mas no sentido de enxergarmos neles duas pessoas perdidas, que se encontram e enfrentam juntas a agonia de viver sem saber como vai ser o próximo dia.


Se há algo que pesou negativamente no filme para mim, foi a construção de um personagem misterioso, interpretado por Marcos Duarte. Ele aparece em dois momentos no início, primeiro oferecendo dinheiro para ver Teresa nua no banheiro do posto de gasolina, e outra dirigindo velozmente seu carro pela estrada, e depois volta a reaparecer apenas no ato final, em uma cena um tanto quanto divisiva. As notícias de um assassino à solta pela região, que soam nos radinhos de pilha, dão indícios de que se trata do mesmo personagem, mas isso nunca é devidamente trabalhado, deixando em mim um sentimento de que faltou algo. No entanto, isso de forma alguma atrapalha o resultado final, pois saí da sala de cinema com a certeza de ter visto um dos trabalhos mais honestos e viscerais do nosso cinema este ano.

domingo, 4 de agosto de 2024

Crítica: Thelma (2024)


Escrito e dirigido por Josh Margolin, Thelma é uma prova concreta de que uma comédia não precisa ser recheada de piadas bobas e de "quinta série" para ser engraçadíssima. Com uma história extremamente simples, o filme consegue arrancar boas risadas de maneira natural, graças principalmente a atuação da atriz June Squibb na pele de uma senhorinha que foi enganada por vigaristas e decide se vingar.


Na trama, Thelma (June Squibb) é uma "vovózinha" doce de 93 anos de idade, que passa os dias tricotando e tentando aprender a usar a internet com a ajuda do neto Daniel (Fred Hechinger). Certo dia ela recebe uma ligação onde criminosos encenam que sequestraram Daniel, e ao acreditar nos criminosos, ela acaba enviando para eles cerca de dez mil dólares. Após a família descobrir o que aconteceu, Thelma se sente culpada por ter acreditado no golpe e ter sido lesada, mas mesmo a polícia dizendo que é bem difícil recuperar a quantia, ela não quer deixar isso barato.

Ao visitar um antigo amigo em uma casa de repouso, Thelma decide pegar a scooter dele emprestada para ir ela mesma atrás dos bandidos, e este é o pontapé inicial de uma aventura divertida e pouco convencional. A aparição de "Missão Impossível" na televisão é a inspiração ideal para ela, que decide que a idade não irá impedi-la de procurar justiça com as próprias mãos. E só quem já conviveu com um idoso sabe que a teimosia é um combustível e tanto para eles. O amigo, Ben (Richard Roundtree), vai com ela, e juntos eles passam por situações perigosas mas ao mesmo tempo cômicas, e o humor do filme reside justamente no fato deles terem uma série de limitações pela questão da idade.


A atriz June Squibb, que havia ficado conhecida em Nebraska, do diretor Alexander Payne, volta às telas em mais um filme extremamente sensível. Sua personagem é a mais típica imagem de uma avó que podemos imaginar, e a prova disso é que toda a ação do filme acontece porque depois de receber a ligação do suposto sequestro do neto, ela não mediu esforços para salvá-lo. E apesar das cenas engraçadas envolvendo ela, em nenhum momento a personagem é motivo de piada, pois a direção trata de apresentá-la com muita singeleza. Interpretando sua companhia na viagem, o ator Robert Roundtree infelizmente não chegou a ver o filme pronto, pois faleceu em outubro do ano passado, vítima de um câncer no pâncreas. O filme ainda tem a participação especial de Malcolm McDowell, o eterno Alex DeLarge, de Laranja Mecânica (1971). Por fim, Thelma é aquele tipo de filme carismático que não exige tanto do seu espectador, mas que nem por isso cai em um lugar comum.