domingo, 17 de setembro de 2023

Crítica: Retratos Fantasmas (2023)


A vida é feita de mudanças. Seja na nossa vida particular, seja no mundo de uma forma geral, o fato é que estamos sempre em constante mutação. O que hoje existe, amanhã talvez não exista mais, o que hoje é moda amanhã deixa de ser, e o que hoje importa amanhã é facilmente esquecido. Em um projeto íntimo e pessoal, o cineasta Kléber Mendonça Filho fala destas mudanças implacáveis do tempo traçando um paralelo entre a sua própria trajetória e o centro de sua amada Recife, tendo como pano de fundo os cinemas de rua que fizeram história no local e que hoje praticamente não existem mais, e mostrando sobretudo como essas transformações no cenário urbano ao longo dos anos refletiram na sua vida e na sua filmografia.


O documentário é dividido em três capítulos, sendo todos narrados de forma quase informal pelo próprio diretor. Eles servem para nos orientar, mas não seguem uma ordem cronológica propriamente dita, uma vez que o filme é composto por vários recortes soltos que montam uma grande colcha de retalhos. No primeiro destes capítulos, denominado "O Apartamento de Setúbal", Kléber nos conta um pouco de suas memórias no local em que viveu com a mãe e os irmãos durante muitos anos. O apartamento também foi se transformando com o tempo, com algumas mudanças mais sucintas e outras mais drásticas, e acabou sendo cenário dos dois primeiros filmes de Kléber, O Som ao Redor e Aquarius. O diretor também aproveita para exaltar a sua paixão pelo bairro onde cresceu, que também serviu como inspiração e cenário para estes mesmos filmes. Aliás, também é interessante acompanhar nesta parte algumas situações da vida real que Kleber levou para suas obras, e perceber o tanto que a vida no bairro influenciou elas.

Os "retratos fantasmas" do título nada mais são do que a captura que fazemos dos momentos, dos lugares, e das pessoas, que muitas vezes não existem mais, mas ainda permanecem conosco através de fotos, vídeos ou simplesmente incrustados na memória. O cinema tem muito isso, como o caso do cachorro Nico, vizinho de Kleber no apartamento, que apareceu em dois filmes seus (um propositalmente e outro sem querer), e que mesmo após a sua morte continuou tendo seu latido reverberando pelo bairro através do som das televisões. Kléber também cita um prédio que abrigava uma escola e que foi demolido para a construção de um shopping, e cujas únicas imagens internas do local são de um filme independente que foi rodado lá. Ou seja, a ficção acabou sendo o retrato de uma realidade, que neste caso não existe de nenhuma outra forma.


Após essa introdução bastante pessoal, somos levados ao segundo capítulo, onde o diretor nos apresenta o mundo dos cinemas de rua de Recife nos anos 1970, 1980 e 1990, e que hoje tem apenas um sobrevivente entre todos, o clássico cinema São Luiz. A grande maioria, assim como aconteceu em tantas outras cidades (inclusive na minha), deixaram de ser salas de exibição para se tornarem centros comerciais, isso quando não viraram apenas um dentre os muitos prédios abandonados que fazem parte da paisagem urbana. Com uma excelente coleção de imagens de arquivo, o diretor nos coloca literalmente dentro destes ambientes, tanto no antes como no agora, e faz uma analogia não somente sobre as mudanças estruturais dos locais citados, como também a mudança nos próprios costumes da população e na sua maneira de consumir cinema.

Esta segunda parte foi a que mais me tocou, pois mostra muito bem a decadência que tomou conta dos cinemas com o passar das décadas, onde salas que faziam isso com dedicação e amor deram lugar a salas que fazem isso de maneira mecânica e visando apenas o dinheiro. Não é uma visão anticapitalista, ou talvez em sua essência até seja, mas o fato é que é triste ver como o cinema foi transformado quase em um entretenimento de luxo (vide o preço dos ingressos nas grandes salas), quando nas décadas passadas chegou a ser o grande entretenimento das famílias de todas as classes. Toda a graça e elegância dos letreiros manuais, que continham frases de efeito (e algumas de duplo sentido) para fisgar o público, deram lugar aos televisores digitais com cartazes dos filmes e uma frieza quase burocrática no processo de assistir um filme. Sim pode ser uma visão nostálgica exagerada minha, mas é o que o filme me fez refletir, e muito.


Alguns trechos em específico também me deixaram bastante emocionado, como nos momentos em que o diretor mostra o dia a dia do seu Alexandre, um projetista que trabalhou por muitos anos no extinto cinema Trianon. As filmagens feitas dele por Kleber nos anos 1990 mostram um pouco de como era feito o processo com os rolos dos filmes e do funcionamento das salas, e termina com um emocionado Alexandre falando sobre a sua última exibição no dia em que o cinema fechou as portas. O último capítulo mostra principalmente o destino final destes cinemas, alguns deles virando lojas de eletrodomésticos, outros virando igrejas evangélicas, mas todos perdendo completamente aquela alma pulsante que possuíam anos atrás.

O filme termina com um ato ficcional bem simbólico, onde o diretor interage com um motorista de Uber (um dos tantos trabalhadores "invisíveis" que fazem a cidade funcionar) enquanto olha pela janela do carro as ruas tomadas por farmácias. Somos obrigados a nos acostumar com a paisagem urbana atual, mas jamais podemos esquecer de como tudo era tempos atrás. Assim como a nossa vida, onde também precisamos nos acostumar com o panorama atual, sem jamais esquecer o que nos levou até ali. Porque a vida muda, as cidades se transmutam, mas as memórias "fantasmas" são eternas.

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