domingo, 21 de julho de 2024

Crítica: Ainda Temos o Amanhã (2023)


Considerado um fenômeno de bilheteria em 2023, onde levou mais de 5 milhões de pessoas às salas de cinema da Itália, Ainda Temos o Amanhã (C'è Ancora Domani) é o filme de estreia como diretora da já conhecida atriz de comédia Paola Cortellesi, e ela não poderia ter começado de melhor forma. Com uma visão perspicaz e uma sensibilidade ímpar, Cortellesi apresenta em tela uma história simples mas belíssima que versa sobre o papel da mulher na sociedade italiana pós-Segunda Guerra e a luta por direitos.


A própria diretora é quem protagoniza o filme e dá vida à dona de casa Delia, uma mulher que não tem um segundo sequer de paz dentro de sua própria residência. Além do cuidado com os filhos e com o sogro acamado (interpretado pelo veterano comediante Giorgio Colangeli), ela passa os seus dias lidando com os afazeres domésticos e fazendo pequenos bicos para arranjar dinheiro, principalmente como costureira. O problema maior de Delia, no entanto, é o seu marido Ivano (Valerio Mastandrea), um homem hostil, violento, e que abusa dela fisica e psicologicamente todos os dias, e torna o ambiente dentro de casa um verdadeiro inferno.

Em resumo, a vida de Delia não tem nenhum respiro, nenhum afago, nenhum afeto. O mais próximo que ela chega disso é com sua filha mais velha, Marcella (Romana Maggiora Vergano), que por sua vez não admite ver a mãe ser tão passiva diante dos abusos do pai e promete que nunca será igual a ela. Porém, quando Marcella assume um namoro e pretende se casar, Delia passa a se preocupar com ela, pois enxerga a sucessão dos mesmos problemas neste relacionamento da filha, quase como se fosse algo passado naturalmente de forma cultural. Neste meio tempo, a Itália também passa por mudanças significativas, e uma delas é a conquista das mulheres ao voto pela primeira vez na história. Este fato se encaixa com o enredo através de uma carta que Delia recebe, e serve para trazer esperança, tanto para Delia como para todas as mulheres da cidade, de que dias melhores virão e que elas finalmente terão voz e direitos.


São muitos os aspectos que fazem o filme de estreia de Cortellesi uma surpresa e tanto. A começar pela fotografia em preto e branco, que não apenas deixa o filme belíssimo esteticamente falando, mas também serve para homenagear o cinema feito na Itália na década de 1940. Por alguns momentos, é impossível não sentir que estamos vendo um filme do neorrealismo italiano "perdido" em pleno século XXI, até mesmo pela construção das cenas dentro e fora de casa, que me lembraram muito algumas produções do Vittorio de Sica, por exemplo. A diferença é o viés feminista, algo impensável para os filmes daquela época, mesmo que tais obras tenham sido socialmente relevantes em diversos outros temas.

Gosto também da forma criativa que a diretora aborda as partes mais pesadas do longa, como as cenas em que Delia apanha do marido, que são transformadas em cenas de dança. Talvez seja difícil explicar em palavras a ideia, mas na prática o resultado é muito interessante, pois serviu para dar leveza em momentos tão difíceis de assistir, porém, sem tirar o peso e a relevância que tais imagens tem. Por fim, posso dizer que fui realmente surpreendido por esse filme e pelo seu roteiro, que conseguiu desenvolver seus personagens de maneira muito orgânica, e abordou temas feministas importantes sem jamais ser apelativo. Sem dúvidas, um dos melhores trabalhos do ano.

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