terça-feira, 23 de junho de 2020

Crítica: Be Natural - A História Não Contada da Primeira Cineasta do Mundo (2020)


"Você já ouviu falar em Alice Guy-Blaché?". Esta pergunta é feita para cineastas como Ava DuVernay, Peter Bogdanovich, Michael Hazanavicius, Julie Delpy, Marjane Satrapi, Julie Taymor, entre muitos outros, e a resposta é sempre a mesma: "nunca". Partindo desta questão, a diretora Pamela B. Green investiga quem foi Alice, considerada a primeira cineasta mulher do mundo, e o porque dela não ter sido citada em nenhum livro sobre a história do cinema até os dias de hoje.


O documentário já começa com uma retrospectiva visual magnífica, que nos coloca diretamente no ano de 1895, quando os irmãos Auguste e Louis Lumière apresentaram ao público o primeiro filme da história, gravado com seu cinematógrafo. Alguns meses antes da exibição pública, eles já haviam mostrado a invenção para um grupo seleto de convidados, e entre eles estava Alice Guy-Blaché, que na época trabalhava como secretária na empresa de fotografia Gaumont.

Alice ficou encantada de cara com o que viu, e com a possibilidade de contar histórias através do cinema. Enquanto os Lumière filmavam a vida cotidiana de forma documental e acreditavam no uso do cinematógrafo como algo expressamente científico, Alice acreditava que havia muito potencial a ser explorado com a técnica, e contando com apoio de seu chefe, Léon Gaumont, filmou aquele que viria a ser o primeiro filme ficcional da história, A Fada dos Repolhos, baseado num antigo conto francês.


A diretora filmou uma sequência impressionante de filmes nos anos seguintes, de todos os estilos, e foi responsável por criar técnicas que mudaram para sempre a sétima arte, como os closes, os fotogramas coloridos (feitos à mão) e o som sincronizado (as chamadas photoscénes). Mesmo numa realidade extremamente conservadora, ela conseguiu ganhar seu espaço com filmes bastante ousados para aquele tempo, que sempre colocavam a mulher com papel de destaque na sociedade. Mais do que isso, a diretora também quebrou paradigmas ao filmar o primeiro filme com um elenco totalmente composto por pessoas negras, já que na época os atores brancos se negaram a trabalhar juntos no filme para "não manchar sua carreira".

Após se casar com Herbert Blaché, Alice criou sua própria empresa junto com o marido, a Solax Company, com sede em Nova Jersey. Por 20 anos, a diretora produziu e dirigiu mais de mil filmes no local, que na época era o maior estúdio cinematográfico do mundo. Após o divórcio entre Herbert e Alice, eles tentaram seguir numa parceria por algum tempo, mas com o declínio da indústria na costa leste e a mudança para o que se tornaria Hollywood, os separou de vez. Ao voltar a morar na França em 1922, Alice abriu mão da carreira e nunca mais filmou e nem produziu nenhum filme até a sua morte, em 1968.


O trabalho de investigação deste documentário é realmente louvável. As imagens de arquivo da época são extraordinárias, e só por isso já valeria muito a pena assistir. As entrevistas com a própria Blaché, feitas nos anos 1960, assim como as entrevistas com sua filha Simone e outros familiares, só engrandecem ainda mais o espírito da obra. É elogiável também o trabalho de restauração feito nos seus filmes, que por muito pouco não se perderam para sempre no tempo. Há um momento em que o documentário volta aos locais que serviram de cenário para alguns dos trabalhos mais famosos de Alice, e isso também foi emocionante.

Uma pergunta ficou na minha cabeça após o filme terminar: o que teria motivado, de fato, o sumiço do nome de Alice dos livros sobre o assunto até então? O machismo da sociedade? Alguma sabotagem? Isto é algo a se pensar e se discutir por muito tempo, mas o importante é que, antes tarde do que nunca, sua importância para o cinema foi finalmente reconhecida. O documentário faz questão de colocar várias vezes o nome de Alice Guy-Blaché junto com os irmãos Lumière, o também francês George Méliès e o norte-americano Thomas Edison como os pilares da criação do cinema, quase como uma espécie de reparação histórica.


Por fim, Be Natural (que vem do letreiro que Blaché mantinha na entrada de seu estúdio para que os atores agissem com total naturalidade durante as filmagens) é um documentário obrigatório para qualquer amante do cinema, não somente por apresentar a história desta grande mulher ao mundo e discutir o seu legado, mas também por mostrar como foram os primeiros anos da indústria cinematográfica.

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