quinta-feira, 28 de maio de 2020

Crítica: O Pássaro Pintado (2020)


Desbravar o mundo através do cinema é um dos grandes prazeres que eu tenho na vida, pois me possibilita garimpar verdadeiras obras de arte pelo caminho, muitas das quais nem chegam ao nosso circuito comercial. O Pássaro Pintado (The Painted Bird), do tcheco Václav Marhoulé mais um ótimo exemplo do que estou falando. Representante da República Tcheca no último Oscar de filme internacional, o filme apresenta uma das fotografias mais impressionantes e bonitas que eu já vi no cinema, ao mesmo tempo em que apresenta uma das narrativas mais perturbadoras.


Baseado em um livro homônimo lançado nos anos 1960, o enredo acompanha um menino judeu que foi deixado aos cuidados da avó durante a Segunda Guerra Mundial, em um vilarejo hostil, isolado e no meio do nada em um país qualquer do leste europeu. Após sua vó falecer, ele começa a perambular pelas florestas e vilas da região, encontrando todo o tipo de pessoas e situações e sofrendo com a brutalidade e selvageria do ser humano.

O roteiro é pesadíssimo, com cenas que, confesso a vocês, me deixaram até mesmo sem ar, e esse é justamente um dos principais motivos do filme ter sido bastante criticado após exibição no festival de Veneza, onde teve a sala esvaziada após uma cena específica de mutilação. Particularmente não achei forçado, pois toda a violência e escatologia me pareceu bastante real e plausível, já que, afinal de contas, estamos falando do ser-humano, e das coisas que ele é capaz.


O nome do filme se dá por uma cena em específico, quando o garoto é incentivado por um homem a pintar de branco as asas de um pássaro preto, que logo depois é solto em meio a uma revoada. O Pássaro é rechaçado pelos demais da sua espécie por estar "diferente", e cai em queda livre, indo a óbito. A cena nada mais é do que uma analogia ao próprio menino, que no meio de tanta maldade, tanta barbárie, tanta desgraça, é um ponto de pureza que destoa, e por isso mesmo acaba nunca sendo aceito em lugar algum.

Aliás, o menino Petr Kotlár está magistral em cena, numa atuação mirim que certamente poderia estar em qualquer aula de atuação daqui para a frente. O elenco ainda contra com participações de nomes famosos em meio a atores tchecos, como o de Harvey Keitel, Stellan Skarsgard e Udo Kier. Mas o que verdadeiramente chama a atenção desde o primeiro segundo da exibição do longa é a fotografia de Vladimír Smutný, que beira a perfeição. Toda em preto e branco, ela encaixa perfeitamente com a história contada, criando uma atmosfera ainda mais melancólica e intensa, e algumas das cenas mais bonitas do cinema nos últimos anos.


Por fim, dilacerante seria a palavra certa para definir este trabalho extraordinário do cinema tcheco. Me vi paralisado acompanhando os créditos até o final, tentando de alguma forma digerir tudo que vi, e ainda levei esse sentimento por alguns dias. A cena final, inclusive, tem uma beleza única, que só coroou tudo que se passou nas suas quase 3 horas de duração. Uma verdadeira obra de arte, no mais puro sentido da expressão.

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