sábado, 21 de outubro de 2023

Crítica: Assassinos da Lua das Flores (2023)


Poucos diretores conseguem abordar a sede pelo poder e a ganância, e sobretudo a violência que surge disto, como Martin Scorsese. Quem acompanha a filmografia dele há décadas já sabe que seus roteiros costumam brincar com a ambiguidade e a linha tênue que existe entre o bem e o mal, geralmente apresentando anti-heróis complexos e controversos. Em Assassinos da Lua das Flores (Killers of the Flower Moon), o diretor resgata uma das páginas mais sombrias da história dos Estados Unidos, que ficou conhecida como "Reinado do Terror", onde dezenas de indígenas da nação Osage foram mortos pela ganância inescrupulosa do homem branco. Baseado no livro homônimo de David Gran, o filme traz à tona os acontecimentos e a investigação destes casos, fazendo acima de tudo uma bonita homenagem ao povo nativo americano e seus costumes.


O filme se passa nos anos 1920 em Oklahoma, mais especificamente no condado de Fairfax, onde vive grande parte do povo nativo americano Osage após terem sido expulsos do estado do Kansas. A população local vive em uma época de extrema prosperidade após a descoberta de petróleo na região, o que automaticamente faz com que os Osage se tornem o povo com maior renda Per Capita de todo o país. Obviamente que isso chama a atenção de gananciosos, trazendo uma invasão enérgica mas quase sutil do homem branco. Digo sutil pois eles não chegaram invadindo e tomando as terras para si de um dia para o outro, mas criando uma espécie de armadilha que foi, pouco a pouco, encurralando estes indígenas em seu próprio território. A maioria destes homens brancos acaba casando com mulheres nativas, donas ou herdeiras de terras petrolíferas, e é até curioso perceber como no começo do filme a maioria deles se apresenta dizendo o nome seguido de "sou marido de fulana", pois a figura feminina era literalmente a "galinha dos ovos de ouro" dos homens brancos e por isso eram tão exaltadas. 

Uma coisa me chamou a atenção no início do filme. Assim como na vida real os Osages ficaram ricos praticamente da noite para o dia, o roteiro também não se importa em apresentar um prólogo ou explicar toda a situação neste começo, já mostrando os nativos aproveitando desta riqueza. Essa trajetória de enriquecimento é rapidamente mostrada em pequenas imagens em preto e branco, com uma perspectiva 3x4, que remete aos filmes mudos, mas nada mais do que isso. Confesso que senti falta de algumas nuances que o livro traz neste momento, principalmente quando se refere a curatela do dinheiro destes indígenas, que ficava a cargo do governo americano. Segundo uma lei federal, os indígenas eram considerados incapazes de gerirem sua própria riqueza, e por isso não podiam usar o dinheiro sem ter autorização de seus curadores: homens brancos. Essa visão que considerava os indígenas como sub humanos está a todo momento nas palavras e nas ideias dos personagens de fora, que enxergavam eles como meras ferramentas manipulativas para alcançar o seu objetivo principal: o dinheiro e as concessões das terras deles.


Um deles é Ernest Burkhart (LeonardoDiCaprio), que chega na cidade para trabalhar com seu tio, William Hale (Robert De Niro). Ernest é um personagem extremamente contraditório, e é brilhante a forma como o diretor trabalha isso junto ao ator, que tem aqui mais uma das suas melhores atuações na carreira. Hale, por sua vez, não é chamado à toa de "o rei das colinas Osage", pois tudo que acontece na cidade gira em torno dele. Rico criador de gado, ele é visto como um pai por todos, que com seu dinheiro não só ajuda diretamente algumas pessoas, como também indiretamente, na construção de escolas e hospitais. Enquanto isso, no entanto, está por trás das maiores crueldades contra o mesmo povo que o admira. Essa complexidade do personagem não poderia exigir um ator melhor do que Robert De Niro, que está brilhante em mais uma parceria sua com Scorsese (a décima em cinquenta anos).

Com um empurrãozinho cheio de interesses do tio, Ernest acaba se apaixonando por Mollie (Lily Gladstone), uma mulher Osage que é a principal herdeira da fortuna da mãe, Lizzie. O mais interessante nesta relação entre Ernest e Mollie é que é possível identificar de longe que existe amor e ternura entre os dois, e diferente de outras relações cobiçosas entre brancos e nativas, aqui o sentimento era de verdade. O grande problema é que Ernest sempre foi absurdamente manipulado pelo tio, e o casamento acaba se transformando em uma relação sórdida e recheada de mentiras quando Ernest aceita passivamente ajudar Hale em suas tramoias ardilosas, inclusive contra a própria Mollie e sua família.


Quando uma série de vítimas fatais começa a aparecer no povo Osage, sem que haja nenhum tipo de investigação delas, o clima de terror toma conta da pequena cidade. Para piorar, quem tenta investigar acaba tendo o mesmo fim trágico, deixando a população não só temerária mas também sem respostas. São inúmeras mortes, desde envenenamentos disfarçados e doenças misteriosas, até assassinatos brutais com uso de armas de fogo, entre elas a de Anna (Cara Jade Myers), irmã de Mollie, cujo corpo é encontrado na beira de um riacho, criando ainda mais comoção entre todos.

A virada de chave no roteiro acontece quando uma outra irmã de Mollie, Rita, é morta após uma explosão destruir completamente a casa onde vivia com o marido, Bill. Este fato faz com que Mollie viaje para Washignton D.C afim de pedir ajuda ao Presidente na solução dos casos. É quando entra na história Tom White (Jesse Plemons), um agente federal que trabalha para o recém criado Bureau of Investigation, órgão comandado por J. Edgar Hoover que posteriormente viria a se tornar o que hoje é conhecido como FBI. Agora com alguém de fora investigando sem interferências dos criminosos, cresce a esperança dos Osage de finalmente descobrirem quem está por trás das mortes e obterem justiça.


É notório que a grande intenção do diretor era filmar uma obra que fizesse jus à importância dos povos originários na América, falando principalmente da tentativa covarde de invisibilidade destes povos ao longo dos anos, seja na cultura, nos costumes, ou até mesmo no idioma que falavam. Por isso, é tão importante este resgate histórico, onde Scorsese mostra até mesmo os rituais e os elementos místicos que faziam parte deste povo, sempre com muita sensibilidade e respeito. Só não considero um filme perfeito pois senti falta de alguns elementos importantes tratados no livro, não gostei de algumas escolhas cronológicas, e esperava um pouco mais de desenvolvimento do personagem vivido por Jesse Plemons (novamente tendo como referência o livro). Porém, terminando com um epílogo original e diferente de tudo que eu havia visto até então (e uma participação especial que me pegou desprevenido), Assassinos da Lua das Flores é mais um filme lindo e esteticamente impecável deste cineasta extraordinário.

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